18 de maio de 2014

Manifeste Incertain. Frédéric Pajak (Éditions Nour sur Blanc)

Em que medida é que podemos narrar a vida? Até que ponto é a vida narrável? Se aceitarmos, com Freud, em Para além do princípio do prazer, que a “finalidade da vida é a morte”, então talvez apenas esse último ponto, inevitável e inultrapassável, possa então dar uma forma definitiva e, mais importante, recontável da vida. Mas seja qual for o esforço para construir uma forma narrativa (e que neste sentido muito específico, da sua própria condição de possibilidade de narração, incluirá todas as formas de resistência à narrativa, incluirá mesmo as anti-narrativas e as recusas e intervalos da narrativa), informada por mais leve que seja com a mediação permitida (ou forçada) pelas formas da arte, há sempre, nesse mesmo esforço, uma mediação. Há sempre um trabalho de mitigação (Milderung), de disfarce (Verhüllung), de derivação (Ableitung), de revestimento (Verkleidung), sendo esses mesmos os termos recorrentes de Freud, cujo dictum é claro: “Mas o tratamento poético é impossível sem que haja mitigação e disfarce”. (Mais)

A consciência do acto, todavia, pode ser extremamente variada, da mais ingénua crença de sermos “objectivos” para com a “verdade” da experiência, até à mais liberta das construções, que procura criar caminhos alternativos da narratibilidade da(s) vida(s). Estamos em crer que a obra de Frédéric Pajak se inscreve num campo mais inclinado para o segundo pólo. Não se tratam de campos totalmente distintos e separados, mas um território acidentado, e até minado, através do qual se cartografam muitos caminhos e atalhos, obstáculos e buracos.

Manifeste Incertain tem, até à data, dois volumes, mas outro se seguirá, ou mais. Podemos descrevê-lo como um espaço de encontro, de convergência, em que vários géneros estão presentes, lado a lado, complementando-se e reforçando-se mutuamente de uma forma transversal. Dividido em variadíssimos capítulos, de tamanhos diversos, encontraremos aqui uma biografia de Walter Benjamin, uma análise de vários momentos e ideias que informam a noção de “França”, enquanto nação, unidade política e de identidade cultural (e transcultural), espaço de disputas históricas e de trânsito de pessoas, bateria de impressões associadas à cultura do autor, da literatura ao cinema à canção à filosofia à pintura, e, também, ou subsumindo tudo isto, uma espécie de autobiografia intelectual. Vários momentos da vida de Pajak são recordados, desde a infância à idade madura, mas abordando as raízes longínquas e emigrantes da sua família, como se procurasse auscultar os traumas e comunicações intergeracionais herdados, os seus outros gestos criativos, e relações com o tempo. Seja como for, mesmo as “confissões” directas da sua vida parecem ser sempre dadas lateralmente, como uma brevíssima menção, uma pequena dança em torno dos acontecimentos e não uma directa exposição.

Cada uma dessas linhas de desenvolvimento, como dissemos, informa a outra. A biografia intelectual (isto é, que não apenas se dedica a uma re-apresentação de factos e datas, mas procura compreender o desenvolvimento e desdobramento de conceitos lavrados pelo autor) de Benjamin serve tanto de modelo como de contraste da do próprio Pajak. Se a noção de uma história redentora de Benjamin faz cada vez mais sentido, sobretudo à luz das crises que assolam a Europa contemporânea e colocam em causa da (verdadeira) espinha democrática que terá fundado uma certa ideia de comunidade moderna, ela é electrificada por Pajak precisamente nas suas experiências hodiernas. No que ele observa, no que ele odeia, no que ele ama. A miséria material da vida de Benjamin contrastava com a vida riquíssima do seu intelecto, e ela não é apenas sinal de uma certa penúria do seu tempo, a sua específica e trágica biografia, mas um símbolo para a trágica vida dos nossos dias, ainda mais inimiga do pensamento, do diálogo, da empatia e da ética responsável. Manifeste incertain não é apenas um gesto literário como também é político, no seu mais profundo sentido. E de uma maneira que re-funda todos os pedaços das vidas e impressões que são contadas, como se fossem peças as quais, coordenadas nesta nova tessitura, restabelecessem uma nova potencialidade. Como escreve em perífrase Jean-Michel Rey, ainda a propósito de Freud, “Onde sei, não escrevo; onde escrevo, só posso saber depois do facto, como se num contexto diferente”.

Não é apenas a vida de Benjamin que se reconta, se bem que seja essa a vida que ocupa um lugar de importantíssimo destaque, se não o centro nevrálgico da obra, mais do que a do próprio Pajak. Fala-se também de Breton, e a aventura com Nadja, fala-se de Beckett e de Hohl, da história da França escrita por Augustin Thierry. Não há fio condutor explícito senão a própria condição de concorrer num mesmo espaço, numa mesma consciência da obra. Há um diálogo de afectos mas também profundamente intelectual, uma afinidade de mentes, que se vai confirmando. Como Giorgio Colli tece a metáfora do ciconte em Assim Falava Zaratrusta, é como se estes fragmentos fossem triturados para fora do contínuo e fossem depois ligados pelo mel da narração (Escritos sobre Nietzsche).

Pajak é autor de uma série de livros, e quase sempre faz cruzar a escrita e o desenho. Tendo desenvolvido trabalho na pintura, desviar-se-ia dessa arte visual para chegar ao desenho, mas sempre cultivando-o como uma actividade gémea da escrita. Não se pode dizer que os seus livros sejam simplesmente ilustrados. As imagens não “ilustram” nem “iluminam” as palavras, não as ancoram particularmente, tal como os textos tampouco “desvendam” as imagens. Se há trechos em que existem associações mais literais – a imagem “mostra” aquilo de que se fala, seja uma paisagem, um rosto, um evento, um local singular, um objecto -, há outros momentos em que a união hipotética é mais fluida, etérea ou complexa. De certa forma, é apenas uma outra maneira de criar um auto-retrato, que parece ser uma das forças recorrentes e inevitáveis da sua obra, tão contínua e unida entre si como no caso de Edmond Baudoin ou Marco Mendes.

Esta actividade, esforço e interesses, estendem-se para além da sua própria lavra, uma vez que ele é editor da excelente chancela Cahiers dessinés, da Buchet-Chastel, que tanto publica a revista homónima, como monografias (Alechinsky, Quenau, Gébé, Di Rosa, Steig, Bramanti, Quenau) ou livros colectivos (havíamos falado de L'un pour l'autre, por exemplo), sempre estendendo estes territórios mesclados do desenho e da escrita, e do contínuo entre ambos. Pajak, neste livro, no seu programa biográfico de Benjamin – que era particularmente interessado por livros ilustrados infantis, pelo desenho, pela questão da imagem, nas “marcas” da feitura da arte, etc. - , cita um pequeno episódio passado com o filho do filósofo alemão: aos oito anos o filho Stefan escrevera um feuilleton, “editado” à noite e de manhã, composto por textos e desenhos. O pai apelidaria esta obrinha de Opiniões e pensamentos, mas o próprio Stefan advertia o leitor nos seguintes termos: “Compreenderão que poderão chamar isto romance”. Pois bem, Manifeste incertain não é menos um romance. Mesmo que se o apelide de “anti-romance”, como o faz a sua apresentação oficial, esse fantasma de género, estrutura e gesto mantém-se no centro da sua consideração.

Uma descrição... Textos em blocos (prosa, na sua esmagadora maioria, mas há casos de poemas), imagens sempre quadradas, centradas nas páginas onde se encontram, algumas páginas apenas ocupadas pela escrita, capítulos titulados e imagens, no seio desses capítulos, mais ou menos ordenadas por uma série tópica: retratos de cães, de bosques, de panoramas rurais, de pormenores rochosos, de paisagens de Paris, de Veneza, da ilha de Ibiza nos anos 1930, quase sempre desprovidas de seres humanos, quadros de um quotidiano qualquer, retratos de escritores e intelectuais que povoam estas crónicas, de judeus expostos pelo regime nazi, pessoas anónimas e outras levemente identificadas ou identificáveis, tudo sempre no traço sólido de Pajak que parece respirar um respeito para com um estilo realista, até mesmo de referência fotográfica, para encontrar o seu levíssimo desvio manual: as tramas de linhas cruzadas, as manchas de tinta pingada, um traço não-referencial que atravessa o ícone, um desequilíbrio anatómico, o preto retinto que impõe uma sombra sólida, a incompletude de um detalhe, a técnica aparentemente cândida de um outro.

Seguida de uma integração... banda desenhada, livro ilustrado, prosa ilustrada? A sua colação ao território da banda desenhada só é problemática se a considerarmos, à banda desenhada, incapaz de elasticidade na sua forma. Se considerarmos Charlotte Salomon, Warren Craghead III, Eduardo Batarda, entre tantos outros exemplos, como modos de expandi-la, Frédéric Pajak é igualmente um desses agentes que a abre, tanto por dentro como por fora. De uma forma inquieta, e até insegura, interroga os seus contornos. Não promete o que pode expandir, confirma a expansão.

Se a vida, e a sua narração, ou seu fito, é incerto, não será decerto o caminho que percorre. 

2 comentários:

Anónimo disse...

Mas Frederic Pajak, para desconsolo do critico de BD, nao pretende expandir a banda desenhada, nem por dentro nem por fora, segundo um qualquer movimento redentor desse meio que o critico tanto gostaria de assistir pela assimilacao a autores como Pajak. A tematica, a linguagem ou os meios nao sao de forma alguma herdeiros do Rafael Bordalo Pinheiro, de Herriman, ou de Mauricio de Sousa. E preciso ter honestidade intelectual. A verborreia nao pode ser terreno fertil ao absurdo.

Pedro Moura disse...

Caro anónimo,
Vejo que, pela quantidade de comentários que deixou no meu blog num só dia (presumo que seja a mesma pessoa), terá uma estranha paixão pela "verborreia".
Bom, mas vamos ao assunto central. É certo que, se perguntarmos a Pajak directamente qual a sua afiliação, é bem possível que ele não diga querer estar nas mesmas prateleiras que os álbuns de banda desenhada franco-belga ou as revistinhas MSP. Mas será esse um argumento suficiente? E se olhássemos para outros trabalhos do Bordalo, ou para Charlotte Salomon, Frans Masereel, Milt Gross, Lynd Ward, Sue Coe e tantos outros, não começaríamos a ver um território algo mais expandido? Não se trata de comparar directamente a "Turma da Mônica" ao "Manifeste Incertain", se bem que isso seria possível. No seio do trabalho tentado neste espaço, com tantas referências, não vejo onde falha a "honestidade intelectual" ou o "absurdo".
O que é engraçado é que a temática, a linguagem e os meios" entre Bordalo e Mauricio também poderiam ser vistos como antagónicos, afinal, e hoje vemo-los na mesma "área criativa".
Pedro Moura