Se temos dado conta de
alguma produção académica em língua inglesa, não queremos porém
dar a ideia de que a produção noutras línguas é menos regular. Se
bem que algumas dessas produções estejam fora do nosso alcance ora
por não lermos a língua (o caso alemão) ou pura ignorância (o que
se passa na Argentina ou na Suécia?), sabemos que é contínua,
mesmo que em diferentes graus de intensidade. O campo francófono,
por exemplo, é exemplo disso. Mais ou menos recentemente, não
apenas pequenas editoras especializadas (PLG, Les Moutons
Eléctriques, entre outras) como editoras académicas propriamente
ditas (a PUF, acima de todas) têm lançado livros da mais diversa
natureza, mas todas unidas pela ideia de dar a lume leituras críticas
e analíticas da banda desenhada. A produção é de tal ordem que
permite uma edição anual do SoBD, um salão quase exclusivamente
dedicado a obras sobre banda desenhada, mais do que dela-mesma. Este
ano, por exemplo, instituíram mesmo um prémio à melhor obra do ano
transacto (prix Papiers Nickelés), que calhou a Thierry Groensteen, pelo seu volume sobre Töpffer. (Mais)
De uma forma
particularmente dedicada, neste campo, surge então a colecção
Iconotextes, da Université François-Rabelais. Trata-se de uma
colecção de volumes dedicadas a toda a espécie de artes nas quais
o encontro entre a produção visual e a narrativa seja mais
evidente, ou mesmo os seus desvios, e contam com obras colectivas e
assinadas por um só autor, monografias sobre um nome ou uma obra ou
espalhadas em torno de um tema, etc. Falemos então, e brevemente, de
dois desses títulos.
L'engendrement des
images en bande dessinée. Henri Garric, dir. Este
volume reúne 12 ensaios divididos em três partes, que se procuram
apresentar como núcleos particulares da questão principal do
volume, expressas literalmente no seu título: como é que se
geram as imagens na banda desenhada? Como é que as imagens
geram a banda desenhada? Partindo da ideia, correctíssima, de
que a esmagadora maioria dos estudos existentes sobre a banda
desenhada focam sobretudo a sua dimensão social e cultural, e quando
se centram no domínio estético, as mais das vezes a subsumem à
literatura, ou pelo menos bebendo da narratologia – como o fazemos
nós, ainda que não exclusivamente – para a ler, o editor e
autores procuram oferecer uma colecção de textos que procura
regressar ao domínio da imagem. Não apenas à questão do desenho,
linha e traço, o esboço preparatório, mas a composição da
página, a coordenação das vinhetas como elementos a um só tempo
isolados e conjugados, a gestão dos intervalos e elipses, os
desarranjos possíveis com os elementos diegéticos apresentados
visualmente, etc.
No prefácio, Henri Garric
cita os estudos de B. Peeters sobre Töpffer, num entendimento –
veja-se Mr Pencil – que “o movimento do desenho e as suas
metamorfoses presidem à geração da narrativa”. Importa portanto
interrogar esse domínio, nas suas várias dimensões, na leitura e
compreensão da emergência do(s) sentido(s). Essas dimensões estão
então presentes nas partes do volume, a primeira dedicada a autores
particulares, a segunda a “formas, meios, géneros” e a terceira
ao “processo criativo” (Benoît Peeters participa aqui então,
menos como teórico do que como escritor de banda desenhada),
revelando-se um lado mais empírico.
Um aspecto importante de
notar é que não há aqui um grupo de objectos de estudo constrito,
por exemplo a livros que explorem de alguma forma meta-linguística
as capacidades expressivas ou estruturais da banda desenhada
(Marc-Antoine Mathieu está ausente, apenas a título de exemplo), se
bem que possamos dizer que Little Nemo, Les Cités Obscures
e The Cage pertençam a esse campo alargado. Ou então,
podemos ver as coisas por outro prisma: a de procurar, em todos os
livros, onde está encerrado o segredo do desenho gerador. A
constelação de objectos engloba então L'ascension du haut mal
e Gaston Lagaffe, autores como Jacovitti, Alan Moore e Milton
Caniff, tipos de banda desenhada como a dita “muda”, géneros
como o steampunk e novas formas de trabalho como as
proporcionadas pelas tecnologias digitais.
Cada um destes núcleos,
disposto sobre um tema diferente, procura demonstrar como a geração
das imagens (isto é, toda a estrutura da banda desenhada) pode ter
na sua origem os mais diversos mecanismos: a estrutura do folhetim
obrigará Milton Caniff a procurar uma escrita que é bem diversa
daquela de Franquin, com Gaston, onde o gag obriga a tornar
clara a mecanização da estrutura, mas essa própria clareza é
geradora do gag (é esse o artigo de Garric), tal como para
Moore a possibilidade de retrabalhar e citar a própria materialidade
histórica da banda desenhada se torna um elemento de trabalho.
Encontraremos, portanto,
nomes mais conhecidos do campo de estudos em questão, como Peeters,
Groensteen (que volta a abordar a obra-chave de Martin Vaughn-James),
Smolderen, como outros que importa seguir pela qualidade destes
textos, mesmo quando temos posicionamentos antagónicos, ou pelo
menos diversos, no que diz respeito à compreensão histórica,
estrutural, estética e social da banda desenhada. Mas isso é sinal,
não tanto de que alguma das posições estaria “errada”, mas de
que, enquanto arte, não poderá surpreender-nos essa possibilidade.
O artigo sobre as novas tecnologias, e as suas potencialidades, por
exemplo, poderá vir a mudar no espaço de, imaginamos, dez anos, mas
isso não impede que qualquer consideração sobre esse aspecto não
deva tomar em conta, agora, o texto de Elsa Caboche. Na
verdade, um contrastes entre este curto artigo e a monografia de Delporte de que falámos mostraria como é que se podem seguir
caminhos mais consolidados, ainda que mais curtos.
O artigo de Morgane
Parisi, que parte de uma série de entrevistas para construir uma
abordagem antropológica da criação contemporânea, e uma
entrevista ao jovem autor Boulet, no final do volume, pelo editor e
Caboche, permite que as questões abordadas teoricamente no volume
possam ser postas em discussão directamente em inquirições sobre a
prática.
Em traços largos, há
toda uma série de pequenas novas abordagens que aumentarão,
seguramente, a “caixa de ferramentas” analíticas desta forma de
expressão.
Hergéologie.
Cohérance et cohésion du récit en images dans les aventures de
Tintin. Pierre Fresnault-Deruelle. Este autor é precisamente
um dos nomes-charneira para a inauguração, logo no início dos anos
1970, para essa tal “caixa de ferramentas” de forma
verdadeiramente teórica, baseada num saber intelectual e disciplinar
(e não somente sinal de uma “sabedoria” de factos). Tendo já
publicado um número substancial de obras incontornáveis, e artigos
absolutamente decisivos, algumas das quais dedicadas em exclusivo a
esse autor maior belga, este volume é na verdade uma colecção de
alguns ensaios que estavam espalhados em antologias ou publicações
menores, com pequenas reescritas e adaptações, hoje mais ou menos
de difícil acesso. Apenas a título de exemplo, a leitura magistral
(em todas acepções desta palavra) Les mystères du Lotus Bleu,
publicado como caderno independente em 2006 pela Moulinsart, é
integrado aqui como um capítulo de um discurso corrido. De resto, o
autor usa mesmo a palavra “prolongamento” dos seus estudos sobre
o autor de Tintim para definir estes ensaios.
O livro encontra-se
dividido em duas partes, a primeira intitulada “A inteligência
gráfica de Hergé” e a segunda “Vinhetas postas em evidência
[en exergue]”. Compreende-se, de atacado, o exercício
intelectual diferenciado do teórico. O programa geral do semiólogo
é, como sempre, o de sublinhar a natureza absolutamente gráfica, se
não mesmo pictórica, de Hergé. Afastando-se de leituras que o
aproximassem de considerações que confundam a banda desenhada com
meios fotográficos (incluindo o cinema), Fresnault-Deruelle (FD)
quer sempre que se atente em particular à “profundeza das imagens
planas”, para citar uma sua obra anterior (que persegue o mesmo
exercício que a segunda parte deste volume), até mesmo à redução
de cada vinheta isolada a uma espécie de quadro, a qual permite, nas
suas próprias palavras, a “um lugar de descentramento sempre
produtor de sentido. No entanto, se isso parece tratar-se de um
exercício de reductio ad absurdum, totalmente desligado de
todos os outros factores, desenganem-se os leitores apressados, uma
vez que esse, digamos, processo analítico serve precisamente para
compreender um nível mais alargado de criação, a que FD dá o nome
de “scénariographie”. Esta é uma palavra composta de difícil
tradução, uma vez que mescla os termos de “scénario”, isto é,
escrita ou argumento na banda desenhada, e cenografia;
“argumentografia” seria uma hipótese, mas é palavra bera. O
autor explica: “num autor de banda desenhada [é] o efeito
produzido pela inventividade das atitudes, dos enquadramentos, da sua
conjunção e daquilo que, para além do que é mostrado ou dito
directamente, nos é sugerido a 'meia-imagem'” (nesta última
expressão, o autor remete a uma sua obra anterior, que havíamos
debatido aqui).
Apesar do autor citar
outros episódios, é consabido como muitos leitores criaram “imagens
que não estão lá”, terceiras imagens de ausência no espaço
inter-icónico das cenas apresentadas por Hergé. Se bem que essas
imagens fantasmáticas sejam complexas (a queda de Haddock do avião
em Tintim no Tibete é um caso estudado bastas vezes), elas
são sinal de alguma espécie de dinamismo mental que é possível
nesta forma de arte, e que é mais efectiva em Hergé do que noutros
autores. FD pretende, portanto, explorar essas capacidades
específicas precisamente para as jogar contra uma ideia de
que o dinamismo que é proposto em Tintim é já um
meio-caminho pronto à sua, supostamente perfeita, adaptação a
meios de imagens em movimento (animação, cinema, o encontro
mesclado entre as duas da sua versão Spielberg). Bem pelo contrário,
o autor pretende sublinhar de forma acérrima o dinamismo particular
das imagens “paradas” e fragmentadas da banda desenhada.
De facto, ao estudar-se
Hergé com tranquilidade e balizando-nos em estudos teóricos
informados e consolidados (e não somente nas hagiografias, textos
celebratórios, ou meros empilhamentos de factos), poder-se-ão
descobrir os modos como a obra foi sendo alterada à medida que Hergé
vinha entrando em contacto com vários outros autores ou pessoas
influentes: Benjamin Rabier, George McManus e Alain de Saint-Ogan
para a camada visual, a missão “católica” para os primeiros
passos de pedagogia paternalista, uma bateria de escritores
literários para os “temas”, o verdadeiro Chang para uma
preocupação com o real e o político, Jacobs para uma maior textura
dos cenários e do uso de efeitos de referencialidade, Van Melkebeke
para uma complexificação da intriga [recordemos este livro], etc. Não obstante, a
“mecânica”, a “legibilidade”, a “escrita estrutural”,
essa, é totalmente de Hergé e em muitos casos são suas invenções
certos processos que depois seriam vistos quase como “fundadores”
da própria linguagem artística.
Cada ensaio pode ser lido
de forma isolada, uma vez que se tratam de temas dispersos (por
exemplo, uma crítica ao livro de Peeters, Lire Tintin, Les Bijoux
Ravis, um artigo sobre a questão
do conceito “linha clara”, uma leitura das capas, etc.),
mas eles acabam por contribuir para aquilo que Laurent Gernier, no
posfácio, chama de “Fraxinologie”, aliás, um excelente e curto
artigo para apresentar o percurso do semiólogo. Se FD está no campo
precisamente criticado pelo prefácio de L'engendrement, mais
uma vez se demonstra que não podemos ver as coisas de modo separado
ou absoluto. O percurso de FD, que tem nestes textos não apenas uma
continuação mas um aboutissement
da sua missão, digamos assim, da transformação do visível
no legível.
Curiosamente, por razões
sobejamente conhecidas, a reprodução de imagens da personagem belga
levanta sempre problemas complexos, e para mais, na segunda parte,
pela questão económica da reprodução de cores. Assim sendo, e por
contraste à primeira parte em que se reproduzem uma dezena de
imagens, a segunda, com algumas excepções (não é compreensível a regra), não apresentam as
vinhetas correspondentes às micro-leituras (as quais podem prender-se a significados semióticos, psicanalíticos, ou mesmo de genealogia e famílias estilísticas, comparando-se a trabalhos publicitários de Hergé, de outros autores de banda desenhada, etc.). Assim aparece um
quadrado com a referência precisa (sempre em relação à “última”
versão, o que nem sempre corresponde à numeração da edição portuguesa corrente), onde se lê “ilustre você mesmo este livro: cole aqui a
vinheta correspondente”, quase transformando este volume numa
espécie de caderneta de cromos (bem diferente dos seus próprios
livros publicados pela Moulinsart, bien sûr). Assim, há como
que uma promessa que desabrocha uma materialidade potencial que a
associa a toda uma série de gestos e realidades sociais que não
deixam de estar ligadas a um imaginário infantil, coleccionista,
obsessivo, que não estaria previsto nas próprias leituras. Não
sendo Fresnault-Deruelle um hagiógrafo (ou apenas em parte) de
Hergé, há aqui como que uma aproximação mais popular à obra.
Nota final: agradecimentos
à editora, pela oferta de ambos volumes.
Sem comentários:
Enviar um comentário