Alberto é condutor de um camião de recolha de lixo em
Lisboa. Vive sozinho, pobremente, acumulando caixas de papelão no seu abetesgado
quarto, cheios de tudo o que tem salvaguardado desde a sua infância, tal como
uma bola de trapos. A senhoria, dona Fernanda, vai colocando perguntas
estratégicas, que vão abrindo a sua vida de concha fechada. Mas Alberto é um
homem de poucas palavras. Mas não de poucas memórias.(Mais)
A acção no presente da narrativa, feito da rotina do
trabalho, conversa de circunstância, e a coabitação com Dona Fernanda e o seu
gato, é constantemente “interrompida” por aquilo que parecem ser segmentos de
uma vivência feérica, onírica, fantasiosa, de Alberto enquanto criança num
espaço irreal mas de fortíssima carga simbólica maternal: uma espécie de útero,
de espaço de conforto e segurança, pasto de fantasias, feito de fios, tecidos
flutuantes, ondas que se fecham em seu torno. É certo que num momento parece
também ser origem de um temor de enclausuramento, um labirinto sem saída, uma
forma de corte, mas essa é também uma trepidez sentida de quando em vez em
relação às figuras maternais. E tampouco é importante o facto de que essa
figura, descobrir-se-á, se tratar do avô, pois em termos simbólicos não se
procura uma inscrição literal.
No seu famoso tratado Estudos
sobre a Histeria, de 1895, S. Freud e J. Breuer chegavam a uma conclusão,
tornada frase célebre: “os histéricos sofrem sobretudo de reminiscências”. A
palavra “histéricos” aqui terá de ser entendida de uma forma plástica, uma vez
que a validade médica desse termo viria a sofrer muitas mudanças, ora de
expansão ora de contracção, e pouco tem a ver com o seu sentido mais popular. De
forma curta, diria respeito a toda e qualquer pessoa assaltada por traumas,
desvios da “normalidade” (seja como ela for definida e diagnosticada). Isso
cria a ideia de um sujeito cuja constituição é uma linha sólida que atravessa o
presente, e subitamente sobre cortes e desvios feitos de memórias.
Nesse enquadramento, e em termos estruturais, Deixa-me entrar é uma espécie de
ilustração literal desses súbitos ataques de reminiscências, interrompendo o
fluxo do presente junto a Alberto. Como o próprio diz, no fim, o seu passado
perseguia-o, não o deixando viver o presente. Mas tendo o livro final feliz, as
formas serpenteantes e orgânicas desse passado são substituídas, em termos
simbólicos, pelas plantas que crescem no seu antigo quadro, até mesmo com o
proibitivo vermelho sendo substituído pelo verde prometedor.
Não sendo propriamente uma estreia para Joana Afonso tomar
conta das rédeas da escrita num projecto por si desenhado (“escrita” num
sentido restrito, evidentemente, já que todo e qualquer artista de banda desenhada
contribuí fulcralmente para a escrita
de um projecto, mesmo na existência de um argumentista prévio), este é o seu
maior projecto enquanto trabalhando a sós. Ainda assim, é quase inevitável
encontrar afinidades com Nuno Duarte e André Oliveira, com quem trabalhara
anterior e respectivamente em O Baile
e Living Will, em algumas
características. No que diz respeito a uma inscrição das narrativas numa leve
mas sólida ideia de referencialidade do real, para mais, neste caso, na Lisboa
dos nossos dias, mas sem se prender ao presente noticioso, mas tampouco
abandonando-se a devaneios de fantasia. Além disso, também na forma como
constrói um pequeno mas efectivo elenco de personagens idiossincráticas mas
realistas, para depois lhes perscrutar os cantos mais abscônditos das suas
mentes e emoções, a autora parece partilhar preocupações com alguns dos autores
que correspondem a uma constelação que lhe está mais ou menos associada em
termos pessoais, até por trabalhar no seio do The Lisbon Studio: além de André Oliveira, Rui Lacas e Pedro Brito,
por exemplo, seriam referências possíveis.
Apesar do retrato das personagens ser sólido, e o ambiente
em que vivem plausível, há porém, em termos estritamente “psicológicos”, algo
que parece sub-desenvolvido ou “trocado”. Afinal de contas, Fernanda é aquela
que desde a primeira cena parecia convidar Alberto a entrar na sua vida. A circunstância
da mudança de quarto apenas espoleta um convite mais directo, ao qual se
sucedem outros: comerem juntos, verem televisão juntos, trocarem mais do que as
palavras circunstanciais do habitual, e até mesmo o abuso dela em entrar no seu
antigo quarto e vasculhar os seus velhos objectos. Tudo isso são passos,
paulatinos mas constantes, de “entrar na vida” de alguém, à qual Alberto
levanta vários obstáculos, sobretudo na sua própria mente. Entendendo-se que o
súbito e quase inesperado rebentamento de emoções no final se deverá à
concatenação dos factores, eventos e memórias acumuladas na vida de Alberto (e
que não são explicados de forma expositiva nem cabal, o que menos do que deixar
“insatisfeito” o leitor, reforça a realidade da narrativa), não deixamos de ler
as palavras finalíssimas que Alberto diz como mais propriamente pertencendo a
Fernanda, em relação a todo o comportamento de ambos ao longo do livro. É um
estranho e subtil desequilíbrio, a nosso ver, mas que convida igualmente a uma
procura por outras interpretações.
Como se pode notar por esta imediata comparação entre a
prancha a “lápis” e aquela finalizada – retiradas do blog da autora e aqui “coladas”
–, Joana Afonso elegeu ou atingiu um grau de proficiência do desenho de uma
maneira que lhe permite uma singela rapidez. Isto é, não sendo propriamente
esboços, existem muitos traços nestes desenhos que fazem parte de uma velocidade
manual própria da primeira tradução da mente para o papel, das ideias visuais
que deseja. Na segunda versão, fazem-se escolhas, correcções, é certo, e as
cores ainda vêm trazer texturas e volumes, mas elas, as escolhas, fazem-se sem
abdicar dessa “primeira linha”. É um método, entre outros, que além da rapidez
que poderá proporcionar, incute na figuração – altamente estilizada, reminiscente
de uma construção tipificada e simplificada da animação, de uma anatomia
caricatural concentrada, como já indicámos em relação a obras anteriores,
começando por O Baile – uma espécie
de fugacidade dos corpos, uma entrega urgente à narrativa que constroem, não
obstante os sólidos contornos a negro.
Mas há ainda a camada da cor. Cores térreas, enferrujadas,
da família dos vermelhos e castanhos sobretudo, contidas, aplicadas de forma
expressiva e célere, sem preocupações de exactidão do comportamento da luz em
termos realistas, mas consciente dos efeitos que esta abordagem gráfica
permite. Essa constrição, por assim dizer, encontra-se reforçada pela narrativa
em si, a qual decorre sobretudo durante a noite ou em interiores. Mesmo em
cenas exteriores e diurnas – o grande plano sobre o Rossio, uma vinheta
panorâmica da rua de Alberto – a atmosfera é permanentemente plúmbea.
É como se se visse sobretudo o escuro húmus, de onde
desponta nova vida.
Nota final: agradecimentos ao editor pela oferta do livro;
as imagens foram colhidas do próprio blog da autora, aqui.
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