Uma jovem mulher
emerge de uma estação abandonada de metro numa qualquer cidade dos Estados
Unidos. Está nua e parece falar em estranhos fraseados rimados, como se
estivesse presa a uma leitura de Alice no País das Maravilhas. Desperta
imediatamente a concupiscência de alguns transeuntes, inclusive membros do que
parece ser um gangue local, provavelmente envolvidos em negócios como a droga e
a prostituição, típicos atalhos de moralidade. A estranheza está presente na
narrativa desde o início, e as suas primeiras páginas aumentarão o grau dessa
estranheza: a mulher é “salva” por um dos membros do gangue, bem-intencionado, mas
depois é ela quem o salvará da violência inevitável, e nesse acto revela um mundo
paralelo e mágico. Veil cria desde
logo um quadro de referências dignos de um Taxi
Driver aberto à fantasia. (Mais)
Como é mester de
Rucka, a personagem principal é uma figura feminina (e a cena derradeira da
série abre espaço a uma outra ainda). Veil, esperamos não estragar parte da
surpresa, não é apenas a jovem mulher que parece perdida neste mundo urbano, mas
um demónio provindo dos fundos dos Infernos, mas a quem é dada uma oportunidade
única, sob a forma da intervenção de um “cavaleiro branco” (são palavras da
personagem mesmo), Dante, que é negro. Se Rucka gosta de jogar este tipo de
referências sócio-políticas nos seus projectos, aqueles que ele constrói de
formas mais realistas evitam estes trajectos tão nítidos, permitindo-nos ler
então Veil quase num tom de alegoria,
ou de conto mais juvenil.
Aliás, podemos
mesmo acrescentar que a descrição total da narrativa permitiria uma sua
exploração bem mais curta, mas a sua publicação em 5 comic books como capítulos de 22 pranchas cada permite que se
“estendam” algumas das suas partes precisamente para preencher esse formato, e
assim providenciar-nos com cliffhangers,
plot points e mecanismos quejandos.
Isso não a torna numa obra tão complexa e madura como a série Lazarus, ou mais concentrada como Stumptown (todas escritas por Rucka),
mas torna-a de uma legibilidade simples. Trata-se de uma ideia que funcionaria
mais enquanto um breve conto, mas trabalhando no seio da indústria
norte-americana, há que alimentar a máquina… E isto mesmo tendo em conta que
Dark Horse produz toda a sorte de séries limitadas (integradas em
enquadramentos diegéticos maiores ou não), ou mesmo contos isolados, sob a
forma de comic books one-shots, ou
séries de dois números, ou três, ou oito, etc. em todas as variações possíveis
em termos de tamanho.
Dificilmente se
poderá chamar esta série de “horror”. Se entram ingredientes que possam advir
desse género, e haja suficientes elementos referenciais que o associariam a um
sub-Lovecraft, ou uma Vertigo mais
aberta à crueldade, estaremos mais no lado da fantasia negra do que qualquer
outra coisa. O policial tem também o seu inevitável papel, como não poderia
deixar de ser, mas todos esses elementos convergem na história relativamente
linear da personagem principal e da sua relação com o seu Dante, ou Orfeu, no
sentido em que este paga um preço para que se salve a sua Eurídice (ao
contrário do mito grego, há aqui a possibilidade de um final feliz, mesmo que a
última página abra igualmente a hipótese de uma continuação mais turbulenta).
O contributo do
artista sérvio, mas que vive em Espanha, Toni Fejzulah é reminiscente, ao mesmo
tempo, de um Matthias Schultheiss e de um Oscar Zarate, sobretudo quando estes
produzem trabalho a cores. Há uma afinidade do tipo de texturas conseguidas nas
superfícies delineadas por vários tons ou mesmo cores diferentes no interior de
um contorno, mas se se poderá dizer que, na sua estilização, Schultheiss e
Zarate acabam por procurar alguns efeitos de realismo, de equilíbrio
referencial, Fejzulah abandona-se a efeitos mais fantasiosos e, conforme a
necessidade do dramatismo das cenas, aumenta o diminui o intervalo desse
cromatismo. Há páginas mesmo em que não tem um intuito de providenciar uma
ilusão qualquer de realidade, mas de eficiente significado na narrativa.
Isto é reforçado
pela figuração, igualmente próxima daqueles dois artistas referenciados, no
sentido em balançar-se entre uma abordagem naturalista e instrumentos mais
estilizados (vejam-se os olhos das personagens). Há também algumas estratégias
relativamente interessantes, como o facto de todos os capítulos se iniciarem
com uma grelha de 3x3 vinhetas, em que cada uma é uma espécie de fragmento ou teaser do que ocorrerá na acção.
A publicação do trade paperback está anunciada para
Janeiro do próximo ano, e desconhecemos se essas páginas estarão presentes, ou
se se alterará algo que procure tornar a leitura corrida desta narrativa mais
concentrada. Seja como for, não foi sem prazer que seguimos esta série,
precisamente na sua natureza capitular mensal.
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