Remetendo
os leitores ao que dissemos sobre os números anteriores desta série (1, 2 e 3),
escusamo-nos de repetir muitas das ideias e noções que ainda têm lugar neste
quarto número, à medida que fazemos este exercício de leitura capitular. (Mais)
Encontramo-nos
agora no âmago da trama daquela história que pretende ainda revelar segredos
desta personagem, recuando ao seu mais recuado passado, quase mesmo à sua
“origem” – como se se tratasse de um número, ainda que não tipificado, de Secret Origins, ou Year One… -, ainda que não se abstenham os autores de também
relevar implicações do “presente”, sob a forma do avatar-Daniel de Morfeus. Aliás,
esta convivência de “presentes narrativos” que têm complexas relações com o
presente cronológico do conhecimento dos leitores é por demais uma das facetas
mais buriladas por Gaiman, precisamente numa compreensão de que uma “mitologia”
se cria não apenas na constante construção linear progressiva, mas na sua
densificação retrospectiva, ma criação de elementos laterais, nos
desenvolvimentos interrompidos ou somente indicados, de maneira a que a sua
completação, virtual, conceptual, seja feita “fora dos textos”.
Esta
desarrumação temporal é, aliás, a ideia principal que preside a este número,
que vem recuperar o fim prometido do número 2 e do número 3. Se no primeiro
caso, os Sandman (o humano e o felino) haviam prometido um encontro com o pai,
que não teve lugar logo a seguir, no segundo viam a inexorável aproximação das
estrelas, de cujas portas da cidade se preparavam para franquear. Ora são esses
encontros que têm lugar neste número, mas qual é a precedência de uma sobre a
outra? Qual a ordem entre eles? Qual a causa, qual a consequência? Os autores
tentam construir os elementos da narrativa – as legendas narradas pelo
protagonista, os vários caminhos coloridos debuxados por entre molduras
“flutuantes”, etc. – para que possamos entender que o encontro com o pai de
Sandman, como sendo uma rememoração de Morfeus, antes deste, o seu avatar, e a
jovem companheira humana, Hope, entrarem na cidade das estrelas, onde terá
lugar o conflito central deste número.
A
identidade dos progenitores dos Eternos, ou melhor dizendo, os Infindos, apesar
de ter estado sempre prometida e até levemente manifestada, tem aqui uma
meia-revelação, quando conhecemos o pai, o Tempo. No entanto, para
meio-entendedor, e mesmo imaginando-se que a identidade da mãe por ser revelada
em passos futuros, ela é desde logo adivinhada pelas palavras do protagonista (e
algumas escolhas judiciosas das imagens) no início deste número, e faz logo
demonstrar a influência em sistemas mitológicos da Antiguidade, em que os elos
de relação da família moderna não têm lugar em princípios tão elementares, aqui
entendidos mesmo como matérias pré-categoriais, essenciais, primordiais. Todavia,
esta inscrição num Tempo livre e não-linear faz todo o sentido num mundo de
histórias múltiplas e concorrenciais. Nesse sentido, a “recuperação” e
“integração” que Gaiman faz operar de Sandman no maior universo diegético da DC
(pré-, pós- e ao lado das Crises, já
na série original mas também neste corrente título) tem todo o seu perfeito
sentido neste sendeiros de tempos cruzados, passíveis de serem trilhados de
acordo com as mais diversas opções, sem que esses paradoxos ou contradições
sejam impeditivos do percurso.
A outra
grande linha neste número é o encontro com as estrelas, numa cidade que lhes
pertence. A um só tempo este episódio recorda-nos e afasta-nos de “The Heart of
a Star”, o conto desenhado por Miguelanxo Prado (de que falámos há pouco tempo)
na antologia Endless Nights.
Recorda-nos pois mais uma vez (ou será este episódio anterior ao encontro já
lido?) estas personificações das estrelas – Sto-Oa, uma outra chamada “Eye of
the Lonely” (uma referências obscura, mas talvez clara quando decifrada) e
possivelmente Rao, a estrela de Krypton -, mas ao mesmo tempo afasta-se do
ambiente anteriormente retratado. Se nesse conto havíamos visto um encontro de
celebração, ameno, amistoso, mas que terminara em conflito aberto e desengano
amoroso, aqui mantém-se sempre uma tensão hostil que termina com o
aprisionamento de Morfeus (e suspense para o próximo número).
Gaiman
continua, portanto, a jogar com as duas grandes linhas possíveis: revelar
segredos e desvendar novos domínios, tornar claro aspectos mais obscuros da
biografia da sua personagem e expandir as suas associações, olhar para o
“passado” e abrir outro “futuro”. Mantendo-se a ideia, lá está, de linhas
temporais paralelas, exploradas explicitamente pelas palavras do protagonista,
e que não deixam, como sempre, de serem um meta-comentário à arte de criar
histórias.
Se nos
recordarmos do cerne emotivo da saga The
Sandman, a do seu “crescimento”, “amadurecimento” ou mesmo “dulcificação”
emocional, entendemos também nos eventos mais ou menos expressos em Overture as razões da sua
irascibilidade, cinismo, distância, frieza que o haviam caracterizado ao longo
de éons. Para já, ainda que num exercício extremamente limitado à psicologia
humana, dir-se-ia que quem sai aos seus
não degenera. No entanto, se havíamos observado, no prelúdio de The Doll’s House, a trágica história de
amor entre a rainha Nada e Morfeus, e em “The Heart of a Star” o inevitável
desfecho do seu enleio com Killalla (também seria interessante notar como na
esmagadora maioria dos avatares e versões destas personagens, se mantém porém o
binómio normativo dos géneros, e sua heterossexualidade), quer dizer, se tinha havido
espaço para desenvolver todos os elementos que tornavam compreensível as
flutuações de intensidades que contribuiriam para a crescente desilusão de
Morfeus em relação às questões do amor (estivesse ou não a/o seu/sua irmã/o
Desejo envolvida/a), não se passa o mesmo agora. The Doll’s House também já havia indiciado que tinha existido um
“vórtex onírico” antes, e é precisamente isso o que testemunhamos agora, onde
uma mescla de curiosidade, apaixonamento e desenlace cruel imposto pelos ossos
do ofício de entidade dos sonhos é literalmente despachado em duas páginas,
numa narração dentro da narração.
A arte de
Williams III continua nos seus efeitos mais espectaculares (com a excepção das pranchas 1 e 24, que abrem e fecham o comic book, todas são spreads/double splash), mas também naquela
economia em que uma análise mais cuidada revelará estar mais próximo do
delírio, do entressonho, de forma livre e apaixonada até, do que num absoluto
controlo de semiótica. Além disso, estratégias de citação mantêm-se. Há
sobretudo dois (ou três) estilos aqui explorados, um reminiscente de alguma
arte psicadélica dos anos 1960 (à la Glaser e Edelmann), para o encontro com o
pai (e que o autor já havia explorado em Promethea),
outro mais pictoral, onde as personagens que representam as estrelas não têm
contornos a linha preta, e finalmente o “estilo chão”, usado quer nas restantes
personagens quer nas histórias dentro da história maior. A cidadã das estrelas
também parece citar, brevissimamente, aquela “logotectura” (termo de Alan
Moore) nos títulos de The Spirit, de
Will Eisner. Um estudo entre precisamente Promethea
e Sandman. Overture poderia revelar
as diferenças que um “mesmo” desenho atinge quando integrado em projectos
narrativos bem diversos, o primeiro mais programático e sistémico, este mais
exploratório das possibilidades, validando todas elas.
Continua…
Nota
final: imagens, mais uma vez, de versão digital.
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