30 de dezembro de 2014

Monstros!/ Có! & Birds. Gustavo Duarte (Companhia das Letras)

A propósito da reedição de dois livros anteriores a Monstros!, de 2012, num só volume, deixaremos aqui algumas rápidas considerações sobre o trabalho de Gustavo Duarte, reforçando algumas das notas que havíamos indicado quando da leitura da sua participação no projecto MSP Graphic com Chico Bento. Pavor espaciar. (Mais) 

O novo livro publicado pela Companhia das Letras reúne dois volumes. Có! é originalmente de 2009 e Birds de 2011. A sua reedição num só volume serve para reequacionar essa obra à luz dos seus títulos mais célebres (agora), e de reintegração no catálogo e colecção que se pretende assim como gesto mais definitivo. Até o rearranjo da nova capa, que faz com que a galinha esteja na mesma posição e atitude que o monstro, iguala os livros a esse nível. Porém, a “linguagem” de todas estas obras, Chico Bento inclusive, é idêntica. Com a excepção de um par de balões em Monstros!, mas que são ocupados igualmente por imagens icónicas explicativas do suposto “conteúdo verbal”, e, claro, o pouco texto interdiegético que pode surgir nas histórias (a direcção de um bonde, o título na lombada de um livro, o time do Bauru nos galhardetes, o rótulo de uma cerveja, logotipos em vidros de uma porta, etc.), todas as narrativas são totalmente desprovidas de matéria verbal. Além do mais, esse tipo de economia restritiva está também patente nos próprios títulos das obras, reduzidos a uma só palavra e, no caso do primeiríssimo livro, a uma brevíssima onomatopeia: Có!

Não sendo tão radical e minimalista como no caso do último livro de Marc-Antoine Mathieu, intitulado → (é mesmo uma seta somente), e não procurando o mesmo tipo de exploração metatextual, a obra de Duarte situa-se ainda assim num campo que procura demonstrar as capacidades narrativas e expressivas da banda desenhada através dos seus mecanismos mais simples, libertando-se do que entenderá como canga desnecessária. Isso torna toda a sua obra bastante clássica e até mesmo mecanicista, em que todos os eventos se encontram bem encaixados uns nos outros numa relação inextricável de causalidade, mas é precisamente nessa relação que reside o seu humor, fluidez, rapidez e, diríamos mesmo, a sua eficiência. Isto não significa que não haja espaço para explorar ambiguidades, paradoxos, desvios de uma linearidade absoluta, como é patente em Có! e Birds, ambas histórias que abrem espaço a devaneios de pesadelo, ou a níveis narrativos menos claros. (Monstros!, nesse sentido, é bem mais linear e simplista).

Có! centra-se numa personagem masculina que se vê confrontado com uma invasão alienígena que o vai lançar, como consequência, numa estranha e absurda aventura. Birds centra-se num par de pássaros antropomorfizados que, deparando-se com os cadáveres dos seus duplos, se colocam numa inexorável corrida contra a Morte (esta está personificada). Todavia, as duas narrativas, nos seus finais, poderão dar-nos a entender que essas estruturas narrativas não são assim tão simples. Monstros!, por sua vez, mostra-nos uma cidade brasileira (São Paulo?) a ser invadida por três “kaijus”, que dão início à expectável destruição maciça, e que apenas encontrarão um antagonista “à altura” num misterioso homem idoso, um barman esotérico (e que tem uma cameo em Chico Bento). A prancha final deste livro é um verdadeiro e delicioso treasure trove de referências que o instala confortavelmente numa longa tradição de livros, filmes, e outras produções culturais que tanto bebem de uma esfera mais popular como literária, mas que demonstra, de certo modo, o desejo “universalista” do trabalho do autor, confirmado pelas suas ferramentas usuais: ausência de diálogos verbais, legibilidade dos desenhos, mecanicidade imediata da acção, etc.

O traço de Duarte vive entre o traço estilizado, polido e plástico de uma animação profissional, e algum trabalho de pormenorização (de espaços, de objectos, etc.) que o aproxima, a um só tempo, da estratégia geral típica da banda desenhada franco-belga mais clássica (fundos realistas versus personagens simplificadas), e de alguma banda desenhada norte-americana. Na verdade, os súbitos desvios de carnificina e mortandade violenta do livro das duas histórias mais antigas, contra um ambiente de aparente tranquilidade genérica, recorda alguns dos trabalhos de Al Columbia em mais que uma dimensão.

Em termos compositivos, ambos os livros regem-se por princípios simples, directos e legíveis, com pranchas sem um grande número de vinhetas, todas elas dispostas ortogonalmente (ainda que em Monstros! haja uma contínua e interessante exploração de confusão de níveis de divisão do plano visual através de enquadramentos “através” de janelas, fachadas de edifícios, esqueletos de baleia, e outros objectos de organização urbana). Há também um equilibrado jogo de distâncias e ângulos, em que a “câmara” permanece quase sempre estática em relação ao plano visual dominado, procurando-se alterações momentâneas que tomam um significado dramático. Monstros! tem uma segunda cor, mas mesmo assim o autor tira partido de largas manchas de preto e silhuetas contrastivas, mas esse é um ponto de meios de produção quase secundário, já que não assume um significado particularmente forte.

Legibilidade, rapidez, divertimento, são os ingredientes principais cultivados pelo artista, e que agora pôde empregá-los a serviço da Marvel, desenhando o Marvel 100th Anniversary/Guardians of the Galaxy # 1 (uma série especial que projecta o que serão os comic books da Marvel em 2061), escrito por Andy Lanning e Ron Marz: se bem que aí existam algumas opções ligeiramente diferentes – apesar do formato mais reduzido, há mais vinhetas; há trabalho de cor digital housestyle; muito diálogo redundante – mantém-se o mesmo humor geral, sobretudo físico, de expressões animadas, etc.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta de ambos os livros.  

2 comentários:

José Sá disse...

Oi Pedro,
Não é para comentar, desculpa aproveitar esta entrada para te desejar um bom ano e para desejar também que o teu blogue continue ainda com mais força.
Nas minhas resoluções de ano novo (prometo não fazer como a Bridget Jones) incluí retomar os comentários regulares ao teu blogue e, se me permites, recomendo o mesmo a todos os leitores, é bom para o corpo e mente :-DDD.
Aquele Abraço,
José

Pedro Moura disse...

Um bom ano também para ti, e para os leitores do LERBD, e até os não-leitores, e toda a gente, enfim.
Ainda hoje vou colocar um último texto... de 2014.