A propósito da reedição de dois
livros anteriores a Monstros!, de 2012, num só volume,
deixaremos aqui algumas rápidas considerações sobre o trabalho de
Gustavo Duarte, reforçando algumas das notas que havíamos indicado
quando da leitura da sua participação no projecto MSP Graphic com
Chico Bento. Pavor espaciar. (Mais)
O novo livro publicado pela Companhia
das Letras reúne dois volumes. Có! é originalmente de 2009
e Birds de 2011. A sua reedição num só volume serve para
reequacionar essa obra à luz dos seus títulos mais célebres
(agora), e de reintegração no catálogo e colecção que se
pretende assim como gesto mais definitivo. Até o rearranjo da nova
capa, que faz com que a galinha esteja na mesma posição e atitude
que o monstro, iguala os livros a esse nível. Porém, a “linguagem”
de todas estas obras, Chico Bento inclusive, é idêntica. Com
a excepção de um par de balões em Monstros!, mas que são
ocupados igualmente por imagens icónicas explicativas do suposto
“conteúdo verbal”, e, claro, o pouco texto interdiegético que
pode surgir nas histórias (a direcção de um bonde, o título na
lombada de um livro, o time do Bauru nos galhardetes, o rótulo de
uma cerveja, logotipos em vidros de uma porta, etc.), todas as
narrativas são totalmente desprovidas de matéria verbal. Além do
mais, esse tipo de economia restritiva está também patente nos
próprios títulos das obras, reduzidos a uma só palavra e, no caso
do primeiríssimo livro, a uma brevíssima onomatopeia: Có!
Não sendo tão radical e minimalista
como no caso do último livro de Marc-Antoine Mathieu, intitulado →
(é mesmo uma seta somente), e não procurando o mesmo tipo de
exploração metatextual, a obra de Duarte situa-se ainda assim num
campo que procura demonstrar as capacidades narrativas e expressivas
da banda desenhada através dos seus mecanismos mais simples,
libertando-se do que entenderá como canga desnecessária. Isso torna
toda a sua obra bastante clássica e até mesmo mecanicista, em que
todos os eventos se encontram bem encaixados uns nos outros numa
relação inextricável de causalidade, mas é precisamente nessa
relação que reside o seu humor, fluidez, rapidez e, diríamos
mesmo, a sua eficiência. Isto não significa que não haja espaço
para explorar ambiguidades, paradoxos, desvios de uma linearidade
absoluta, como é patente em Có! e Birds, ambas
histórias que abrem espaço a devaneios de pesadelo, ou a níveis
narrativos menos claros. (Monstros!, nesse sentido, é bem
mais linear e simplista).
Có! centra-se numa personagem
masculina que se vê confrontado com uma invasão alienígena que o
vai lançar, como consequência, numa estranha e absurda aventura.
Birds centra-se num par de pássaros antropomorfizados que,
deparando-se com os cadáveres dos seus duplos, se colocam numa
inexorável corrida contra a Morte (esta está personificada).
Todavia, as duas narrativas, nos seus finais, poderão dar-nos a
entender que essas estruturas narrativas não são assim tão
simples. Monstros!, por sua vez, mostra-nos uma cidade
brasileira (São Paulo?) a ser invadida por três “kaijus”, que
dão início à expectável destruição maciça, e que apenas
encontrarão um antagonista “à altura” num misterioso homem
idoso, um barman esotérico (e que tem uma cameo em Chico
Bento). A prancha final deste livro é um verdadeiro e delicioso
treasure trove de referências que o instala confortavelmente
numa longa tradição de livros, filmes, e outras produções
culturais que tanto bebem de uma esfera mais popular como literária,
mas que demonstra, de certo modo, o desejo “universalista” do
trabalho do autor, confirmado pelas suas ferramentas usuais: ausência
de diálogos verbais, legibilidade dos desenhos, mecanicidade
imediata da acção, etc.
O traço de Duarte vive entre o traço
estilizado, polido e plástico de uma animação profissional, e
algum trabalho de pormenorização (de espaços, de objectos, etc.)
que o aproxima, a um só tempo, da estratégia geral típica da banda
desenhada franco-belga mais clássica (fundos realistas versus
personagens simplificadas), e de alguma banda desenhada
norte-americana. Na verdade, os súbitos desvios de carnificina e
mortandade violenta do livro das duas histórias mais antigas, contra
um ambiente de aparente tranquilidade genérica, recorda alguns dos
trabalhos de Al Columbia em mais que uma dimensão.
Em termos compositivos, ambos os livros
regem-se por princípios simples, directos e legíveis, com pranchas
sem um grande número de vinhetas, todas elas dispostas
ortogonalmente (ainda que em Monstros! haja uma contínua e
interessante exploração de confusão de níveis de divisão do
plano visual através de enquadramentos “através” de janelas,
fachadas de edifícios, esqueletos de baleia, e outros objectos de
organização urbana). Há também um equilibrado jogo de distâncias
e ângulos, em que a “câmara” permanece quase sempre estática
em relação ao plano visual dominado, procurando-se alterações
momentâneas que tomam um significado dramático. Monstros!
tem uma segunda cor, mas mesmo assim o autor tira partido de largas
manchas de preto e silhuetas contrastivas, mas esse é um ponto de
meios de produção quase secundário, já que não assume um
significado particularmente forte.
Legibilidade, rapidez, divertimento,
são os ingredientes principais cultivados pelo artista, e que agora
pôde empregá-los a serviço da Marvel, desenhando o Marvel 100th
Anniversary/Guardians of the Galaxy # 1 (uma série especial que
projecta o que serão os comic books da Marvel em
2061), escrito por Andy Lanning e Ron Marz: se bem que aí existam
algumas opções ligeiramente diferentes – apesar do formato mais
reduzido, há mais vinhetas; há trabalho de cor digital housestyle;
muito diálogo redundante – mantém-se o mesmo humor geral,
sobretudo físico, de expressões animadas, etc.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta de ambos os livros.
2 comentários:
Oi Pedro,
Não é para comentar, desculpa aproveitar esta entrada para te desejar um bom ano e para desejar também que o teu blogue continue ainda com mais força.
Nas minhas resoluções de ano novo (prometo não fazer como a Bridget Jones) incluí retomar os comentários regulares ao teu blogue e, se me permites, recomendo o mesmo a todos os leitores, é bom para o corpo e mente :-DDD.
Aquele Abraço,
José
Um bom ano também para ti, e para os leitores do LERBD, e até os não-leitores, e toda a gente, enfim.
Ainda hoje vou colocar um último texto... de 2014.
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