Quais são as expectativas mínimas quando nos deparamos com
um livro de banda desenhada? Esperar uma narrativa? Encontrar uma qualquer
linha que se organize ao longo das supostas imagens múltiplas que se
apresentarão no objecto determinado – livro, revista, etc. - ? Um qualquer tipo
de prazer cognitivo, que tem em conta igualmente certos sentidos físicos e de
sensações? Afectos específicos associados a memórias de leituras anteriores, “ares
de família”? E o que sucede quando esses ares de família falham ou são
continuamente desviados? (Mais)
Roghi, que
significa “piras” [de fogo] é um conto extremamente reduzido e curto, de poucos
eventos e poucas palavras, não obstante o tamanho monumental da publicação (que
já havíamos debatido quando do livro de Feuchtenberger, Grano blu). Numa qualquer aldeola perto das montanhas, está aberta
a época de caça a um elusivo “homem selvagem”, que jamais surgirá sem ser nas
contínuas referências a ela pelas personagens e os noticiários anunciando os
seus brutais assassinatos de velhotas. É como que uma espécie de MacGuffin, que
serve apenas para colocar um evento em movimento, ligando a pequena constelação
de personagens: as principais, três jovens mulheres, primas de gémeas, uma
outra equipa rival conhecida como “Os cinco” (todos diferentes entre si no que
diz respeito a idades e background
étnico, e talvez mesmo comportamento, etc.), e todas as outras personagens sem
nome que vão atravessando aquelas paisagens. Percebemos que esse contexto da
caça serve apenas para sublinhar a rivalidade entre estes dois grupos
principais, ao mesmo tempo que se anunciam possíveis cruzamentos e elos
amorosos que os atravessam, pondo-os tanto em perigo como os confirmando.
No entanto, quase se poderia dizer também que a narrativa de
pouco adianta à compreensão da obra, tal como cada um dos seus episódios, as
acções cumpridas pelas personagens: uma noite num karaoke, uma saída à discoteca, os tempos livres em casa, uma perseguição
de automóvel. É nos diálogos, algo elípticos e fragmentados (em italiano na
página, mas traduzidos em inglês em rodapé, como tem sido comum numa série de publicações
dos alternativos europeus), que se vai criando um estranho novelo/novela entre
as primas, as possíveis filiações, as diferenças que as constituem como
diversas entre si, para além dos atalhos físicos (ou serão apenas gráficos?). É
curioso como numa história tão curta, de tão poucas pranchas (25, das quais 11
são ocupadas por uma imagem singular, 4 das quais ainda sem qualquer texto), há
ainda assim espaço suficiente para que a aparente atenção, ou focalização, vogue
sobre todas as três primas, e nenhuma delas possa ser vista como sendo mais
importante que as outras. Às vezes centramo-nos em Klara, depois é o
afastamento de Alia, finalmente é Sharon quem preenche mais acções.
Não podendo dizer que não
há narrativa, esta é perfeitamente adelgada ao ponto da quase inconsequência,
obrigando o leitor a procurar outro tipo de instrumentos de leitura, análise,
interpretação e associação dos elementos disponibilizados para chegar às noções
mais profundas, mas por isso mesmo mais ariscas e ambivalentes, da identidade,
expressão do si, e inscrição social que claramente Roghi explora.
Deflorian é uma dessas autoras que explora instrumentos de
uma estilização tão acentuada que quase desvia a linguagem mais tipificada da
banda desenhada para os territórios da ilustração editorial, o design de
comunicação e de identidade, da moda. Figurativa, composicional e
cromaticamente, é uma autora que irmanaríamos com a sul coreana Lee Aerim e
Amanda Baeza. As personagens femininas parecem partilhar todas um mesmo
princípio de construção modular, que depois se diferencia em escolhas-padrão. A
composição segue também regras de construção mais ou menos estocásticas, tão
livres como “arrumadinhas”, flutuando entre a grelha regular e linhas menos
expectáveis (como as splash pages onde as linhas rectas dos espaços
e de objectos parecem criar áreas diferenciadas, isto é, diferentes vinhetas,
mas é apenas uma ilusão). Porém, Deflorian parece explorar, em um só espaço de
expressão, uma variedade de instrumentos (desenhos a tinta da China, pintura a
óleo, meios digitais), mesmo no interior de uma página: as figuras delineadas,
as superfícies lisas, e depois um complexo trabalho cruzado de texturas, volumes,
fundos, padrões regulares ou irregulares… É também significativo que a autora tenha re-trabalhado muito deste material para uma animação, num vídeo da banda His Clancyness, aqui:
Que ilusão se nos apresenta com Roghi, então? É apenas muita informação visual para uma história demasiado simples? Ou é uma narrativa bastante complexa, disfarçada de uma cornucópia visual, simples de capturar opticamente? Seja como for, é um enorme livro cuja leitura, cuja entrega e fusão física (como a própria autora joga na fotografia que apresenta ela-mesma) obrigará a uma procura intensa.
Nota final: as imagens foram retiradas do site da autora,
aqui.
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