Este
livro-objecto segue à risca a metáfora pretendida pelo título, e pode ser
considerada como uma espécie de “arca de tesouros”. Fisicamente, é uma caixa no
interior da qual se encontra um livro de capa cartonada e um envelope que
carrega toda a espécie de documentos em papel em fac-símile (parece existir uma
outra edição ligeiramente diferente na distribuição). Este é um objecto,
portanto, que tanto servirá a estudiosos da banda desenhada em geral, como da
franco-belga em particular, mas também, como é fácil de imaginar, os
tintinófilos mais completistas e os fetichistas dos livros em geral. (Mais)
O livro é
grande, e profusa e generosamente ilustrado, como não poderia deixar de ser, e
apresenta-se como um estudo breve “genético” de cada um dos álbuns da série de
Hergé por D. Maricq. Sendo este o principal arquivista em Moulinsart,
compreende-se que o intuito deste projecto é apresentar uma história
cronológica da obra de Hergé, mas em que o contributo principal passa por uma
relação ou colação directa com os documentos que fazem essa mesma história. Isto
é, é possível que, sob a luz das várias biografias existentes, a monumental Chronologie, e, obviamente, a
longuíssima lista de livros mais ou menos de investigação dedicados ao autor e
à obra (como aquele de Fresnault-Deruelle de que falámos há pouco), não existam
aqui propriamente descobertas ou novidades, mas existirão, sem dúvida alguma, pequenas
inflexões sobre esse conhecimento.
A
estrutura do livro é bastante simples e convida àquela leitura rápida, de
consulta, típica dos “coffee table books”. Existem quatro capítulos centrais,
que compreendem blocos cronológicos mais ou menos distendidos (apenas o
segundo, intitulado “o tempo das obras-primas”, se encerra entre os anos
1940-1944), e cada um deles apresenta secções separadas: ora “caixas” – a que
chamam “zoom” - sobre relações pessoais, estratégias comerciais e de
comunicação, outros títulos ou trabalhos de Hergé, curiosidades – ora parágrafos
concentrados em torno de cada um dos títulos. A paginação ainda oferece uma
espécie de “selos” onde vão sendo apresentadas todas as personagens que compõem
o mythos de Tintim, já para não falar
novamente da qualidade das imagens.
Naturalmente
que o discurso não é propriamente crítico, se bem que seja discutível se há uma
aberta defesa incondicional. Mas como não pode deixar de ser da natureza de um
projecto da instituição que detém os direitos da personagem, e de um seu
funcionário, mesmo quando se fazem concessões às críticas da obra inserida no
seu tecido cultural, isso acontece precisamente nessa forma… uma concessão, e
não propriamente uma entrega na argumentação. Seja como for, para que se
discuta balizadamente os aspectos mais controversos – os aspectos dos autores e
obras que influenciaram Hergé, a dimensão colonialista de Tintim no Congo, a questão da colaboração quando da ocupação alemã
da Bélgica – será necessário um instrumentário textual mais alargado, que não
tem lugar numa obra deste tipo, mais inclinada para o celebratório.
Não
obstante, é precisamente no seu aspecto celebratório e até fetichista que este
volume pode contribuir de forma decisiva a um estudo contextual da produção
desta obra, até mesmo na sua dimensão de materialidade, tão fulcral nos tempos
que correm mesmo no seio da crítica textual. Como dissemos, o conjunto
apresenta um envelope no interior do qual se encontram 22 documentos fac-similados:
uma carta do punho de Hergé, datada de 1934, ainda com o logotipo da sua
empresa de publicidade e ilustração; algumas folhas mostrando os primeiríssimos
esboços ou estruturação das páginas de Tintim (o doutor Müller em várias
posições, uma página de Voo 714 para Sydney,
outra de l’Alph-Art); materiais
promocionais variados (um poster exclusivo para bibliotecas de 1947, um postal
de boas festas de 1954 enviado a um grupo selecto, cromos-anúncio); materiais
de produção (um caderno de apontamentos de ideias, desenhos rápidos, pormenores
a usar mais tarde, uma prancha com um teste de cor, a ilustração da capa de O Segredo do Licorne, uma prancha
inédita de Tintin e os Pícaros,
apresentando separadamente a prancha de cores, e acetatos com a linha a preto e
o texto); e ainda fac-símiles das publicações originais de alguns dos títulos
(a edição de le petit XXe de 10 de
Janeiro de 1929 onde surgem Tintim e Milou pela primeira vez, a do primeiro
número da revista belga Tintin,
datada de 26 de Setembro de 1946, com a magnífica capa abrindo O Templo do Sol, com a paginação em
formato italiano no interior, e ainda a primeiríssima página d’O segredo do Espadão, de Jacobs, um teaser em papel de 1950 anunciando a publicação de On a marché sur la lune na revista Tintin).
Como se
imagina, alguns destes objectos são enormes (os posters e as ilustrações das
capas), outros mínimos (o postal, o cromo), outros do tamanho usual de manipulação
(as publicações), mas o mais importante é a possibilidade que nos dão
precisamente de os manipular nos seus formatos, tamanhos e até mesmo texturas
diversas (os papéis de cada documento é bastante variado). Dado não ser
possível manipular os documentos originais, esta é uma forma de nos aproximar
dessa dimensão o mais possível e poderá ajudar, em muito, um estudo genético,
editorial, contextual da edição-publicação de Les aventures de Tintin. Se seguramente este volume fará as maravilhas
dos tintinófilos, não é de somenos importância num seu uso mais conduzido no
que diz respeito à sua abordagem crítica, histórica, etc.
Inegavelmente, este livro continuará a
contribuir para a mitificação não só da personagem como do seu autor. Em muitos
aspectos, por exemplo, continua aqui (tal como nos livros-encómio do autor pela
Moulinsart, tal como no museu, etc.) o “isolamento” de Hergé, o que poderá
criar a ideia de que antes de Hergé era o deserto, e após ele o dilúvio. É um
tremendo desserviço à história contextualizada e séria da banda desenhada
(belga e não só), mas estas dimensões “arquivistas” são importantes na medida
em que se materializam e, assim, passam a estar disponíveis a outros usos,
guiados por outros princípios. Dar-lhes uso, portanto, é responsabilidade dos
leitores-utilizadores.
Nota
final : agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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