Neste
breve corpo de três biografias em
banda desenhada de
artistas visuais
ou plásticos,
entramos
em território holandês, com um pintor de uma época mais recuada, e
com um autor que, contemporâneo, já revelou o seu contínuo
interesse por uma “língua antiga”.
Espécie
de biografia inventada – dada a ausência de dados biográficos
sólidos,
com
poucas excepções pontuais e em segunda mão, sobre o pintor
Jeroen
van Aeken
de ‘s-Hertogenbosch,
mais
conhecido por Jerónimo
ou Hieronymus
Bosch
-, Marcel Ruijters opta por subsumir toda e qualquer pesquisa
inerente ao título à ideia de perseguirmos o trajecto de um pintor
na sua ascensão e conquista de algum nome. Hieronymus
não reconta toda a sua vida de fio a pavio, mas inicia-se na vida
adulta do pintor. E não procura criar nenhum mecanismo de explicação
definitiva dos seus mais famosos quadros, os quais não perfazem, na
verdade, a maioria do que se lhe pode atribuir com segurança: a
esmagadora dos quadros que sobreviveram de Bosch são na verdade de
matérias convencionais religiosas. Nesse sentido, e até pelo uso
“mágico” que o autor da banda desenhada faz dos seus quadros,
aqui e ali mostrando a sua feitura, mas obliquamente, e incorporando
nas ideias internas de muitas personagens as estranhas e distorcidas
criaturas que parecem criar um imaginário “Boschiano”,
Hieronymus
contribui sobremaneira para a manutenção de um certo mito. (Mais)
O
“afastamento da realidade” da parte de Bosch não pode ser visto
como um problema de valor da arte, uma vez que ele é mesmo função
de uma abordagem que contemplaria a integração da fantasia
(positiva ou negativa) na própria compreensão do mundo, sobretudo
se tivermos em conta um enquadramento de crenças e expectativas
informadas por princípios e narrativas religiosas que muito
dificilmente conseguiremos entender hoje, dado o grau de laicização
e racionalismo que impera (inclusive nos próprios crentes, os quais,
mesmo esperando uma recompensa de vida após a morte, não temerão
um Inferno físico e tortuoso). É certo que existem teorias que
pretendem ver nas imagens mais fantásticas do pintor holandês uma
tradução de visões místicas (tremendas), soluções alquímicas
ou até alucinações provocadas por substâncias alcalóides (como a
hipotética ingestão de pão bolorento com cravagens, levando ao
ergotismo, ou “fogo de Santo António”, como é citado no texto),
mas a imputação de uma categoria como o “surrealismo” num
contexto medieval é errónea, uma vez que não tem em conta
precisamente a mundividência medieval, a qual não categorizava
essas diferenças que agora nos parecem claríssimas entre “mundos
da vigília e “onírico”, “loucura e normalidade”, etc. (vide
Foucault). A pintura de Bosch é reveladora de uma visão
relativamente conservadora da moral – recordemo-nos de que o pintor
não era seguidor das novas tendências, então “modernas”, da
arte perseguida pelos seus compatriotas do sul, segundo as lições
de Gombrich, instilando-lhe um certo “gosto antigo” -, mas que
ainda assim revela algum fascínio pela sensualidade carnal e
secular. Daí o visível parodoxo de forças morais nas suas pinturas
mais famosas.
Parte
dessa cultura está patente no livro de Ruijters, ainda que sejam
necessárias algumas informações exteriores para compreender a sua
importância. Por exemplo, o poder secular da ordem dos Dominicanos é
mostrado ao longo da narrativa, mas se não nos recordarmos do papel
particular dessa ordem no interior do Catolicismo (que poderíamos
descrever como um dos seus ramos mais conservadores e moralistas,
pela invenção da Inquisição, mas não só), e que estamos a
alguns anos da Reforma que revolucionaria toda a Europa, criando
divisões insanáveis não apenas no Cristianismo, como na
organização de poderes e mesmo mentalidades, essa informação
poderá não surgir tão eficaz como isso. A histórica informação
de que Bosch pertencia a uma ordem religiosa de culto mariano também
não parece ser alvo de atenção do livro, quiçá algo que poderá
parecer “estranho” para um holandês contemporâneo laico, mas
que o seria menos em relação a um português, mesmo laico. Ruijters
providencia uma espécie de suplemento com anotações que nos
ajudará a compreender uma mão-cheia de cenas, mas estamos sempre em
crer que é a sua integração na própria textura da narrativa que
deveria contar. Sabemos que esta é uma atitude algo superficial –
um autor pode sempre estender a sua narrativa de banda desenhada
através de outros recursos, mesmo extratextuais, nada o impede e
isso apenas reforça a multidimensionalidade de uma obra -, mas ela
justifica-se apenas num contexto desta espécie, em que há uma
preocupação comunicacional e pedagógica clara.
É
uma compreensão dessa mundividência, por exemplo, que nos deve
fazer prevenir a ideia de que algumas das categorias de Bosch seriam
“metáforas visuais”. Não o são, uma vez que pouco importa o
modo de definição dessa categoria da arte, o autor holandês
procurava uma simbolização concatenada, através de elementos
visuais, de elementos legíveis
pelos seus observadores históricos, naquilo que o famoso historiador
de arte H. W. Janson chamou de “sermões visuais” ou “picturais”.
Recordemo-nos de que Brueghel, o Velho, pintara os seus Provérbios,
com pequenas anedotas, cada qual recuperando a expressão verbal,
algumas das quais pouco penetráveis sem alguma dose hercúlea de
investigação (já cumprida por historiadores da arte e cultura).
Poder-se-ia dizer que Bosch apenas aumentara o grau de opacidade
dessa tradução? As suas figuras são inéditas, mesmo comparadas
com outras representações dos abismos infernais da sua época, e os
seus demónios são bem distintos. A legibilidade das suas figuras
lançam-nas para o campo da alegoria, a qual necessita de um código.
O problema, já na superfície de Hieronymus,
é que essa alegoria é domesticada, explicada, as arestas
desbastadas, a força interrompida. Não é que Ruijters apresente
uma “explicação”, mas colocando-o num mundo onde existem corpos
deformados um pouco por todo o lado, uma sociedade de classes
estratificada e inamovível, e vários graus de superstição fácil
(tudo isso realidades históricas), a sua suposta diferença
acaba diluída numa espécie de observação distorcida.
Com
efeito, num contraste directo com outras obras do autor, sendo
Inferno
o exemplo mais imediato, Hieronymus
não é apenas mais convencional, como alguma da força das obras
anteriores se encontra diluído por razão dessas mesmas escolhas
convencionais. Ruitjers lavra diálogos, cenas domésticas, uma
economia em que Bosch surge como uma personagem dividida entre
preocupações imediatas e materiais, uma sede de criação que o
ultrapassa, e as obrigações que tem enquanto cidadão do seu mundo.
Ou seja, Ruijters nem o transforma numa figura atormentada e trágica
– se se fizesse transmutar as suas “visões pictorais” numa
tradução de um psicodrama interno – mas tampouco numa figura
romântica lutando contra interesses antagónicos (como sucede em
relação a Rembrandt,
como veremos, por exemplo). O fim da leitura, porém, poderá deixar
uma espécie de gosto amargo, fazendo-nos perguntar não tanto, “quem
é este homem?”, mas “quem é este homem para Ruijters?”
No
entanto, há escolhas judiciosas do autor que apenas num contexto
historicista poderiam ser contestadas. O pintor, de provável
descendência germânica, e que assinaria algum do seu trabalho com a
forma latina “Hieronymus”, seguido da forma abreviada da terra
natal, nasceu na pequena cidade, do norte das Terras Baixas, de
's-Hertogenbosch (mesmo assim, com a apóstrofe no início), a qual
não sendo um centro nevrálgico de comércio e arte, não deixava de
ser um centro vivo de cultura. Mas Ruijters opta por representar essa
cidade totalmente sob o domínio opressivo intelectual das classes
mais altas dos nobres e dos eclesiásticos, de forma a criar, a um só
tempo, uma espécie de insatisfação e uma certa resignação no
pintor. Há uma cena em que ele quase acompanha o mestre arquitecto
da catedral de Bosch na direcção da Flandres, mas acaba por
desistir, por superstição e obscurantismo (a menos que queiramos
interpretar essa cedência a um mais profundo temor, mas estaríamos
a criar uma divisão psicológica que não existiria na época). Ou
seja, na verdade, há uma tentativa, mas débil, em criar contornos
de isolamento romântico e de contornos trágicos, mas somente à
escala doméstica. O Bosch de Hieronymus
é afinal um pater
familias
simples, humilde e trabalhador. Mas não genial. Todavia, talvez seja
esse mesmo tratamento que seja revolucionário no autor de banda
desenhada contemporâneo…
Duas
características de Bosch, porém, aproximam-no de uma certa ideia da
banda desenhada patente nos nossos dias. Em primeiro lugar, isso
deve-se à sua capacidade de desenho, sendo esse um dos instrumentos
centrais do seu trabalho, chegando mesmo a ter trabalhado nessa
disciplina não enquanto mero caminho de pensamento, esboço e
preparação para as pinturas, mas antes como território autónomo e
fim em si mesmo. Ou seja, o uso do desenho enquanto meio de expressão
e de laboratório de formas. Em segundo lugar, está a sua relação
imediata com uma cultura popular, viva, corrente da sua época, que o
aproxima das figuras monstruosas que pululam na catedral da sua terra
(discutidas verbalmente, mas não “mostradas”), já para não
falar daquela noção dos provérbios e da sua tradução pictural.
Isto é, um autor cujas pinturas deveriam ser lidas, mais do que
contempladas, aproximaria de forma complexa à noção contemporânea
de “imagemtexto” que preside à banda desenhada.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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