O texto presente
não se focará somente em Norak, le fils de Parzan, o último número da
série de fanzines Kobé do autor
francês Bertoyas, mas antes é um comentário sobre a obra deste autor.
Relativamente obscuro fora dos circuitos da edição independente francófona
europeia, mas neles uma referência apolínea, temos tido a fortuna de trocar
alguma correspondência que leva ao acesso às suas publicações caseiras. É com Norak,
que na verdade não se distingue em termos de grau de trabalho das anteriores,
que finalmente conseguimos tecer estas ideias soltas que se seguem. (Mais)
Apesar do autor
ter um número de trabalhos publicados em casas editoriais tais como Les Requins
Marteaux (Le Flon, cuja capa oculta com um ar de familiaridade o que
esconde na páginas), Le Dernier Cri, e ter mesmo uma edição pela L'Association
do seu Ducon, Bertoyas publica sobretudo no circuito do fanzinato.
Apesar de se poderem esgrimir os termos “pequena editora” ou
“micro-edição”, a verdade é que em termos de formatos, materialidade e
circulação a esmagadora maioria dos objectos do autor de Lyon são de facto
fanzines “clássicos”: podem ter capas a cores, ou em cartão, ou serigrafadas,
mas o interior é a preto-e-branco, muitas vezes em fotocópias, e simples
cadernos agrafados. A paginação muitas vezes sofre de uma ou outra imprecisão,
os desenhos a esferográfica, lápis ou canetas deixam visíveis as titubeações,
erros ortográficos abundam, a numeração é rabiscada, etc. E a própria
estratégia de assinar com nomes diversos (Juan-Miguel, reza a capa do volume
porno-pesadelo da Terre Noire; Bertoss,
outro zine; Jean Michel Bourthan, assina o autor noutro volume, quiçá revelando
o seu nome verdadeiro) leva a essa atomização da atenção, apesar das inúmeras
participações em projectos, exposições, entrevistas e convites em encontros.
Além do mais, o
tipo de trabalho desenvolvido pelo autor não é convidativo, de forma alguma, a
algum tipo de “recuperação”, que lhe permitisse conquistar os espaços
reservados na atenção pública. A sua banda desenhada não tem contornos
“literários”, o seu estilo visual não apresenta elementos suficientemente
tranquilos que pudessem ser co-optados, a sua obra não é concentrada. Bertoyas
é um caso verdadeiro de “selvagem gráfico”, que pode recordar uma atitude à la
Panter primitivo.
O autor não se
coíbe de visitar territórios genéricos estabilizados, seja a ficção científica,
a banda desenhada de aventuras, a historieta infantil, a pornografia
desregrada, o policial, etc. Norak,
por exemplo, para todos os efeitos, parece ser uma paródia das histórias de
famílias de heróis brancos na África selvagem, precisamente como nos
desenvolvimentos “domésticos”, sobretudo no cinema e banda desenhada, da personagem
famosa de Burroughs. Mas o autor introduz os seus elementos correntes, desde
cenas sexualmente explícitas a alucinações causadas pela ingestão de uma
qualquer substância, diálogos onde se notam várias relações de poder imposto, e
relações mal resolvidas… Bertoyas, portanto, agarra com força pelos cabelos os
géneros mais comuns e fá-los atravessar um filtro destruidor que torna os seus
contornos, divisões e fronteiras instáveis, ou como uma matéria que se derrete
e vai misturar indelevelmente com outra ao lado, até tudo ficar numa massa
quase informe e que nos prende. Podemos dizer que todo e qualquer número da Kobe, ou obra do autor, apresenta uma
qualquer intriga, sem dúvida, mas tentar desenleá-la numa fiada coerente e
passível de resumo é uma perigosa armadilha.
A grande distinção
entre Bertoyas e uma hipotética escola punk ou New Wave da banda desenhada, que
havia sido cultivada nos anos 1980 por Panter, mas igualmente Lynda Barry, o
Groening primitivo, Mark Beyer, Mark Marek, encontra-se na abordagem gráfica
mais delicada do autor francês, sendo muito difícil inscrevê-lo num campo
relativamente determinado. Há uma parte que tem a ver com a apropriação, utilizando o autor muito
trabalho de figuração, ou citação mesmo, de personagens advindas de vários
quadrantes da banda desenhada infantil norte-americana, aquele estilo
“borracha” ou bigfoot que agrega os
desenhos animados Disney e Fleischer, ou a Harvey, por exemplo. Com efeito, Ducon
cita sobremaneira o Bolinha e Luluzinha de Stanley e Tripp. Há
uma linha suave, móvel de contorno grosso e preto que torna estas personagens
todas em bonecos sólidos. Os olhos, as orelhas, os dedos e pormenores como os
balões de fala, nuvens, pedras ou plantas parecem sair de toda aquela
biblioteca típica e quase comutável dessa banda desenhada aburguesada, ainda
que tenham sempre pequenos detalhes tremidos. Mas Bertoyas usa estas imagens de
forma interrompida, emprega balões que não se lêem completamente (um pouco à la
L. L. de Mars, mas mais parece-nos que cumprido de forma mais genuína, isto é,
sem o fito de “criar estilo”), por estarem empilhados, virem de locais
inesperados, dobrarem-se sobre si próprios… Há um excesso de montagem, por
assim dizer. Como se brincasse com um arquivo e o deixasse cair e espalhar-se
antes de o organizar.
A concatenação de
corpos, sobreposições, desarranjos espaciais e empilhamentos, de resto, é uma
descrição perfeita também do seu modo de escrita e produção do fanzine. Existem
histórias que parecem ter continuidade, personagens que juraríamos virem de
títulos anteriores e histórias suspensas que parecem ser prometidas para ais
tarde. Todavia, ou a produção segue um ritmo difícil de captar, ou há mesmo um
desejo de atomizar essas ideias de modo incompleto, como se se tratasse de um
universo criativo existente, mas logo desaparecido.
O autor também
participou no longo e estranho projecto We All Go Down, de Pascal
Matthey, em que cada número dessa publicação fica a cargo de um artista
diferente, criando-se uma possível estrutura contínua de peças individuais, e
em que cada prestação e feita de desenhos o mais carregados possíveis de
vinhetas abstractas, ou quase afigurais, ou focadas enviesadamente sobre um
objecto perdido, ou perdidas elas mesmas, as imagens, em sombras obsessivas de
manchas. Mas esse projecto merecerá outra atenção.
Nota final: agradecimentos ao
autor, pelo desconto substancial sobre as suas publicações, e o envio de
outras.
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