Como havíamos indicado de forma superficial a propósito de
alguns títulos escritos por Nathan Edmondson, o jovem escritor Ales Kot parece
ser uma antítese do posicionamento conservador dessoutro escritor dessa mesma indústria
de entretenimento. Seria um erro fazer um juízo de valor global sobre toda a
indústria em relação a todos e quaisquer assuntos de cariz político, dada a sua
diversidade e história, mesmo que à partida, sendo parte da indústria cultural,
possa parecer apenas ser capaz de sustentar as ideias já vigentes (as
estratégias meramente comerciais são sintoma claro). Kot trabalha no interior
desse mesmo campo, tendo escrito títulos para a Marvel e a DC, e agora
perseguindo vários títulos na Image, que lhe permite reservar os direitos de
autor, mas não abandonando uma noção de mainstream.
Só que através das suas narrativas convolutas e estratificadas, amalgamando
elementos genéricos e laivos ensaísticos, cria estruturas electrificantes e
estimulantes que não servem a ideologia supostamente central da própria
indústria para que a sua existência contribui. (Mais)
Para todos os efeitos, Zero
pode ser descrito como uma “novela de espiões”, mas qualquer leitor da série
(que se encontra disponível em quatro trade
paperbacks) sabe que essa descrição é o mesmo que descrever uma moradia
apenas pelo tapete da entrada. E acrescentar que tem elementos de ficção
científica seria dizer que a casa tinha janelas… A série tem uma personagem
central, Edward Zero, um agente que trabalha desde a infância para uma agência
secreta norte-americana chamada de “A Agência”. Os primeiros números da série
apresentam-se sob a forma de missões individuais, numa típica forma de
construção episódica com alguns elementos que vão sendo acumulados até
percebermos que vamos afinal seguir algo mais complexo. À medida que a série
avança, essa complexidade vai aumentando. Nos primeiros passos, parece estarmos
a trilhar caminhos quase banais de casos e de situações de espiões, da forma
mais genérica possível (o nome da “Agência”, numa abordagem beckettiana, parece
confirmar essa ideia, já para não falar do nome do protagonista). Aos poucos,
Zero coloca em questão as suas missões, o propósito da Agência, até entrarmos
em choques ontológicos e até mesmo existenciais. Aumentando a escala das
implicações, passamos das relações pessoais de Zero, até às suas origens e o
modo como isso complica as relações profissionais, depois a missão da Agência,
e um acesso a universos paralelos e à própria possibilidade de tudo ser uma
ficção… O que começa em James Bond
termina em P. K. Dick.
Introduzindo toda a narrativa na sua velhice, em que um novo
rapaz é enviado para o matar, dando-lhe oportunidade de recontar a vida, em
termos temporais, a narrativa apresenta sub-divisões, já que a vida de Zero é
seguida em vários momentos: não apenas a idade adulta (a parte de leão da história),
como a sua tenra infância – há mesmo um episódio antes do seu nascimento, cruel e brutal - e treino, e, depois,
claro, a sua “reforma”, ameaçada, que emoldura toda a narrativa. No capítulo 3,
“I am nothing”, Zero combate contra um agente mais velho, criando um perfeito
eco ou objecto fractal da sua própria história, a um só tempo no passado
textual (a abertura da série) e no futuro (em relação ao presente narrativo).
Há outros momentos de desarranjo temporal, ou ecos e reflexões que complicam as
facetas da história de uma maneira subtil. Na última fase da história, entramos
não apenas em experiências científicas desreguladas de universos paralelos e
substâncias alucinogénias, como descobrimos que toda a história é um projecto
inacabado de William S. Burroughs, quando este estava em Tânger (mas é mais
complicado do que qualquer descrição possa tentar, sem re-descrever todos os
passos).
Alguns dos comics
contêm, no final da parte dos episódios, informação extra-banda desenhada, mas
não extratextual: sob a forma de relatórios, transcrições de diálogos, citações
de canções, notícias de jornal, construções tipográficas, e mesmo informações
históricas, duras, vai surgindo material que cria um espaço de extensão
diegética, filosófica e que serve para sustentar parte da narrativa ou
intensificar um dos seus elementos, de uma forma não-redundante.
Uma das características mais imediatas da série, na sua
existência enquanto 18 comic books,
foi a de ter sido desenhada por uma troupe de artistas diferentes em cada
número. Ei-los, por ordem: Michael Walsh, Tradd Moore, Mateus Santolouco, Morgan Jeske, Will
Tempest, Vanesa Del Rey, Matt Taylor, Jorge Coelho, Tonci Zonjic, Michael
Gaydos, Ricardo Lopez Ortiz, Adam Gorham, Alberto Ponticelli, Marek Oleksicki,
Ian Bertram, Stathis Tsemberlidis, Robert Sammelin e Tula Lotay.
Os títulos de Kot são intensas abordagens de alguns temas
operativos, desde a violência nas escolas à ideologia pervasiva da cultura
popular, passando pelo racismo e a misoginia sistémicos de várias sociedades, o
culto do dinheiro acima de quaisquer outros valores, e a forma como o
indivíduo, na construção da sua identidade, vai sempre enredar-se com as outras
pessoas. É possível ler Zero
isoladamente. Mas estamos em crer que lê-lo no cadinho da sua outra produção
(toda ela publicada pela Image), desde Wild
Children a The Surface, passando
pelos correntes Material e Wolf, criarão um quadro mais completo de
escrita.
Poder-se-ia dizer que Zero
é o título mais “normal” no interior da produção da Image. Esqueçamos, por
aqui, as suas produções para trabalhos na Marvel, onde “brinca” com personagens
pré-existentes, tentando colocá-las em situações relativamente inesperadas de
acordo com o mainstream - Bucky/Winter Soldier numa espécie de
ópera fc com contornos psicadélicos, Suicide
Squad numa espécie de comentário pouco velado do intervencionismo militar
onde seriam necessários outros instrumentos e a desumanização dos
soldados/prisioneiros - o título da colecção em livro é Disciplinar e Punir!, quase esfregando na cara dos leitores a
citação - mas sem nunca atingir nem os pontos altos que autores anteriores já
haviam cumprido no interior do mainstream
nem estando liberto no seu território apropriado. Isto é, Kot é mais
interessante enquanto criador de matéria própria, do que criador com
espartilhos “registados” (para isso temos de pensar em escritores como Moore,
Brubaker, Snyder, Kirkman, Hickman, Bendis, etc.)
Se cada um desses trabalhos tem as suas próprias estratégias
narrativas, escolhas visuais devido a diferentes equipas e, naturalmente,
linhas distintas devido aos elementos de género, tipo de personagens, etc., ao
mesmo tempo, e até certo ponto, poderemos dizer que os seus trabalhos têm
sempre sido temas comuns: a existência de um mundo oculto, fantástico,
terrível, sob o mundo “normal”, e que a transformação da percepção que permite
aceder a esse outro plano tem tanto de libertador como de maldito. Além do
mais, a ideia de entrosar na diegese, ou no próprio tecido do universo
ficcional, contingências da vida real do(s) autor(es) ou o próprio processo de
escrita, tem-se tornado incrementalmente uma das suas assinaturas. Em Zero, ainda que numa aparente “normalidade”
inicial, isso aparecerá ainda transmutado em projecções ficcionais, como
veremos. Em The Surface, por exemplo,
surge na primeira pessoa. Se tudo é meta-textual, The Surface é-o explicitamente, Zero
a partir de pressupostos genéricos, Change
algo a meio. Como afirma a personagem-autor no último número do outro título,
trata-se de criar “ficção como magia/ciência que permite mudanças no
mundo/universo real/holográfico”. Parece-vos familiar?
Até certo ponto, pode-se sentir que Kot é um daqueles
citadores nervosos que mal aprende palavras compridas e nomes difíceis os tem
de empregar para trazer uma qualquer dimensão complexa e “edgy” ao seu
trabalho, quando ele, do seu interior, não o faz emergir. Confessamos que
rolamos os olhos ao ver que o superior imediato de Zero se chama Zizek, ou que
se citam textualmente filósofos ou teorias de física contemporâneas de forma
algo deslocada. Mas recordemo-nos como a leitura da Doom Patrol de Morrison parecia igualmente um exercício de cut-up por entre um curso de
referencialidade. Mas é com aquele autor escocês que Kot parece mais dialogar,
levando os pontos de partida de Morrison um pouco mais longe.
Em primeiro lugar, por parecer que Kot é mais bem lido do que
Morrison, parece-nos, e até mesmo engajado (a palavra é apropriada) de forma
mais radical. Ambos parecem crer que o uso da ficção popular, mesmo de
fantasia, ou sobretudo de fantasia,
pode-se tornar um óptimo instrumento de introduzir certos conceitos, ideias, e
até mesmo buzzwords que, pela sua
simples presença, poderão fazer expandir o quadro referencial dos seus
leitores. E antes que se pense que a banda desenhada não é o local correcto
disso acontecer, bastará pensar que se podermos aprender que foi Nobel o inventor
da dinamite em Lucky Luke, porque não
sermos confrontados com informações sobre as novas formas de opressão racial via
a indústria das prisões nos Estados Unidos, ou que Judith Butler nos ajudará a
repensar questões das nossas identidades sexuais, ou recuperar o materialismo
marxista como solução do vampirismo do capitalismo global dos nossos dias? É
verdade que existem obras (de banda desenhada) que, através da não-ficção,
exploram esses mesmos temas de maneira mais sustentada, argumentada e até
completa, mas estamos a falar aqui de mecanismos ficcionais, os quais permitem
outro tipo de diálogo cognitivo. Kot acreditará ser este um bom veículo, mesmo
que tenha de lidar com expectativas e conceitos que são restrições a uma
liberdade formal total.
Wolf, por
exemplo, que mistura o noir, a
fantasia (envolve lobisomens, vampiros, demónios e criatura aparentadas com Cthulhu)
e o ensaio social, tem entrado numa espiral de expansão que tem destruído o
ciclo usual das 22 páginas mensais, aumentando cada fascículo drasticamente, o
que levou na verdade à saída do artista principal da série. Em termos
comerciais e até de expectativas (normais) dos leitores, isso é um problema,
mas ao mesmo tempo é um sintoma da forma de produção de Kot que, neste caso,
não se coaduna com as formas industriais em que trabalha, aparentando-se, em
parte, com certas experiências alternativas. Não nos enganemos, todavia: Kot
trabalha na indústria. E não podemos entrar naquelas fórmulas cínicas mas
vazias de que estaria a “minar por dentro” essa realidade.
O que Kot faz é escrever o melhor que consegue, mantendo-se
num rumo muito particular, e recuperando muitos dos ingredientes que fazem a
história de muita da banda desenhada popular de géneros, para conseguir com
eles criar um discurso sincrético de ideias e noções filosóficas, e estratégias
textuais que tornam os textos máquinas pensantes. Na verdade, uma releitura
atenta de Zero desvendará uma
estrutura tríplice: o mundo dos espiões à la James Bond, o experimento
científico e a existência ficcional do Burroughs de serviço. Poderíamos ir mais
longe (ou mais alto) e recordar, claro está, da própria existência de todo este
edifício enquanto produto ficcional de Kot et al., mas ça va de soi: é o leitor tem de se afastar apenas um passo para ver
onde os reflexos dessa auto-consciência do livro, por assim dizer, se encontram
espalhados na ficção que encerra.
Nota
final : agradecimentos a N.F., pelo empréstimo da série.
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