A
propósito de Las Meninas, de Santiago García e Javier Olivares, havíamos dado conta de uma
tendência contemporânea, variada, de livros que, partindo de uma
qualquer ideia de biografar a vida de artistas criavam discursos
interpelantes sobre essas mesmas artes e carreiras, assim como
asseguravam uma qualquer reflexão interessante sobre a própria
banda desenhada, nascida desse embate ou diálogo. Por outro lado,
quer com Bob Deler
quer com Modern Arf (e
tantas outras ocasiões), tínhamos tecido algumas considerações
sobre a relação que a própria banda desenhada estabelece com o
dito “mundo da arte”... Ora seguiremos nos três próximos posts
três livros que, mantendo-se de maneira absolutamente central
naquela tendência – livros de banda desenhada falando de pintores
históricos -, vêm criar discursos bem distintos. Começaremos com a
biografia que é dedicada a Catherine Marie-Agnès de Saint-Phalle,
mais conhecida por Niki de Saint Phalle, morta em 2002. (Mais)
Niki
de Saint Phalle é uma daquelas autoras cujas obras (algumas delas,
claro) são conhecidas por um grande público em termos de imagem
isolada, até reapropriada no imaginário, mas sem qualquer
contextualização, integração num movimento mais alargado e até
sem assinatura. Um pouco como Bottaro, Christo e talvez Mondrian, num
determinado patamar, reduzidos a uma mera anedota visual-superficial.
Muitas pessoas conhecerão as suas peças Caroline,
Sophie
e Catherine,
três monumentais mulheres na cidade de Hanover, O
Anjo Protector,
na estação de Zurique, ou o Jardin
des Tarots,
“graal” deste percurso, ou o livrinho You
Can’t Catch it Holding Hands/Sida,
tu ne l’attrapera pas,
a campanha a favor da prevenção sexual em 1986, que a autora criou
como se fosse uma carta ao filho, por exemplo, mas não as associarão
às transformações implicadas pelo período de uma arte ocidental
pós-surrealista no pós-guerra, em que vão importar mais as
experimentações formais, materiais e disciplinares, que
contribuirão sobremaneira à emergência da noção de Arte
desligada de disciplinas específicas (isto é, os artistas não
serão pintores
ou escultores,
mas artistas),
ainda que antes da emergência da arte conceptual. Este livro, apesar
de criar uma perspectiva física e psicologicamente próxima de Niki,
sem nunca assumir um posicionamento afastado e de focalização
superior, coloca-a numa rede variadíssima de contactos, relações e
cumplicidades (Robert Bresson, Brancusi, Mario Botta, mas acima de
tudo, claro, o seu futuro amante e cúmplice, Jean Tinguely). Aliás,
as autoras revelam as suas fontes no final, numa impressionante
bibliografia – na primeira pessoa de Niki, ou segunda mão,
entrevistas, documentários – e cronologia, a “linha” que elas
perseguem sob outra forma no texto, e que insere a artista no seu
espaço apropriado.
A
uma primeira visão, pelas suas formas humanas exageradas na sua
plasticidade, a re-utilização de objectos do quotidiano, a
aproximação ao happening,
performance ou à action
painting,
uma figuração naïf, uma coloração exuberante, um excesso do que
seria tratado como decorativismo de um ponto de vista negativo, etc.,
que se poderia aproximar a arte de Saint Phalle com outros movimentos
que se lhe seguiriam, e que até ganhariam maior popularidade. Mas a
sua arte nada tem a ver, porém, com a Pop Art, de Warhol e
companhia, a que Niki chamava de “os artistas da Coca-Cola”.
Ainda assim, isto não significa que a artista estivesse totalmente
afastada de uma capacidade de trabalhar no interior de certos jogos
económicos e visíveis. Antes da sua carreira se iniciar, havia sido
modelo fotográfico, e chegou a decorar um avião de rota comercial,
criar um perfume, etc. Na consideração global da sua obra, podemos
vê-la como um nome que contribuiu, de certa maneira, para aquela
“forma pós-moderna de hibridização globalizada”, na frase de
Rosalind Krauss, que seria “cúmplice com a globalização da
imagem ao serviço do capital” (“«Voyage on the North Sea»: Art
in the Age of the Post Medium Condition”). Há um episódio que a
mostra a recusar-se viajar até Israel, sob o governo de Sharon, para
a abertura de uma exposição do seu trabalho, mas isso soa algo a
despropósito, uma vez que as obras prosseguiriam a sua presença. E
há um bom número de associações a “causas” – os povos
ameríndios, a espiritualidade asiática – que soam algo vazias de
entrosamento verdadeiro, e mais de superficial preocupação.
É
natural que, enquanto mulher, e o próprio livro ser criado por duas
autoras mulheres (sendo ambas ilustradoras, é provável que haja uma
distribuição convencional, visto que a figuração é homogénea),
as questões de representação e valorização da mulher estejam na
ordem do dia, não se tivesse verificado uma secundarização do seu
papel face ao marido (o escritor Harry Matthews) ou companheiro de
arte (Tinguely), já para não falar do seu papel no mundo da arte. A
própria arte de Niki de Saint Phalle explora questões afectas aos
“papéis sociais” e à fisicalidade feminina, como demonstram as
suas esculturas de corpos túrgidos, grávidos, cheios e ocos, isto
é, receptivos à entrada e trânsito de outros corpos. A própria
materialidade e diversidade de matéria, cores, contornos, as
posições movimentadas das personagens esculpidas derrubam muitas
das categorias clássicas destas disciplinas. Saint Phalle não é
uma figura, quiçá, tão decisiva como Louise Bourgeois, mas explora
alguns dos mesmos contornos melancólicos, se bem que com
instrumentos bem distintos. A frase final desta biografia em banda
desenhada, ainda que lavrada por Osuch e Martin, pretende espelhar a
voz de Saint Phalle, e parece revelar precisamente essa aliança à
outra artista francesa: “O que é certo é que se eu não tivesse
criado, teria destruído”.
Tal
qual os livros dedicados a Rembrandt e Bosch, de que falaremos em
seguida, foram criados num enquadramento de efeméride, oficial, e
até de encomenda, também este livro teve a sua apresentação
associada à imensa retrospectiva da artista que teve lugar no
Guggenheim de Bilbao, que se pode entender como uma oportunidade para
redescobrir, recontextualizar mas também re-agregar a sua obra como
um imenso corpo coeso. A exposição e, consequentemente, o livro,
atravessam todas as disciplinas experimentadas pela artista, em
primeiro lugar a escultura, mas igualmente os projectos de obra
pública, as esculturas-fonte, a pintura, a gravura, as criações de
assemblagens,
instalações, performances, cinema e animação… No caso de
Saint-Phalle, como no caso dos seus compagnons
de route,
acima de todos Jean Tinguely, procurava-se uma arte dinâmica,
integrada nos seus espaços, vivível, cinética e, se conseguirmos
traduzir o conceito, “despedestalizada”. As ideias de fantasia,
de jardim, de imaginários mágico, infantil, são instrumentais. E
informam a narrativa também.
Se
a ordenação desta parece ser, ao mesmo tempo, convencional e
confusa, uma mais cuidada análise revelará que a qualidade da
fluidez temporal é sui
generis.
Apesar do livro em si, na totalidade, estar dividido em capítulos,
eles são desiguais, oscilando entre as 4 ou 8 páginas, por exemplo.
Totalizam os 22,
de maneira a ecoar os arcanos maiores do Tarot, aos quais
retornaremos. Importante é o facto, então, de que há muitas
páginas, ou pares delas, que se comportam como unidades, por estarem
encimadas por uma data e um local, atomizando a atenção breve a uma
cena, um episódio, um encontro, ou uma frase. Há mesmo momentos em
que as transições entre vinhetas é feita cena entre cena, ou uma
página-episódio se suceda a outra sem haver uma imediata correlação
das acções, eventos e actores – aparte Niki, claro está. Há
portanto uma carga de atenção e capacidade de encaixe e
relacionamento exigido ao leitor, bastas vezes e de forma intensa.
Essa aparente qualidade de stacatto,
todavia, é justificável se tivermos em conta a própria
personalidade da artista, ou pelo menos como ela nos é aqui
apresentada. Niki de Saint Phalle surge-nos como uma mulher cuja
herança de fantasmas, traumas e doenças (derivadas de problemas de
tiróide, artrite reumatóide, taquicardias, pneumonias, depressões,
chegando mesmo a ser internada) se acumula de modo perigoso, tal como
fragmentada é a natureza da sua procura pelo caminho da arte:
experimentando várias disciplinas, “falhando” na aprendizagem
mais formal, desbastando no autodidactismo um percurso variável,
senão mesmo volúvel. Sempre com uma origem clara numa hedionda
crise familiar…
Olhando
somente para a arte de Saint Phalle, poderíamos ser levados a crer
estar perante uma artista “feliz”, celebratória, de explosões
de vida, mas isso é apenas um sinal exterior de uma profunda
melancolia e submissão a um namoro com a morte. Contemplar o
suicídio era mesmo um exercício de grande exploração estética, e
repetente, para a artista, que sonhava e debatia formas românticas
de terminar a sua vida. Cita mesmo um verso de Rilke, que poderia
actuar como mote da sua vida e obra: “La mort, toute la mort, et
avant même la vie,/La porter en soi, si doucement. Et
ne pas en être méchant./ C’est inexprimable…” (da Quarta
Elegia de Duíno).
Ora,
é assim que o Tarot surge como, a um só tempo, uma metáfora e um
processo de cartografar da forma possível esse mesmo percurso
inconstante. Saint Phalle tinha um apreço particular pelas cartas do
Tarot, utilizando-as como fonte de segurança espiritual, modo de
compreender o real e mesmo lançar-se conselhos a si mesma (do modo
como Crowley recomendara, considerando não o baralho como uma fonte
de verdade, mas antes um estímulo a um diálogo interno do si
consigo mesmo). São essas figuras, sobretudo os arcanos maiores, que
procuram sublinhar a melhor maneira de cumprir o seu grande desejo: a
de unir o escultórico-fabricado ao natural, e com isso transmitir
uma demanda espiritual. Cada página capitular mostra uma versão dos
arcanos desenhada pelas autoras da banda desenhada, e todas essas
imagens mostram Niki no papel principal, cumprindo uma acção,
vestida de maneira alusiva, ou com uma qualquer sua peça da época
que remeta ao período em questão. A breve nota em baixo, à guisa
de legenda, pretende-se explicativa do arcano, é certo, mas ao mesmo
tempo permite ao leitor ler como se interpretando algo da vida de
Niki de Saint Phalle. Em todas as imagens surgem sempre figuras
secundárias que dão conta dos seus filhos, amantes ou
colaboradores, e apenas em momentos-chave as figuras principais são
ocupadas por homens da sua vida (o Papa é o seu pai, o Imperador,
Tinguely).
Cromaticamente,
também há uma exploração clara. A maioria do trabalho de fundo e
subjacente das figuras e fundos é a lápis, em suavíssimos
cinzentos de linhas sobrepostas, como um primeiro mas decisivo
esboço, mas de forma paulatina, pontual, significativa, surge a cor.
Não propriamente como um dispositivo narrativo que transfore a
narrativa, mas que ganha uma dimensão simbólica especial. Cores
vivas mas também suaves, uniformes mas dinâmicas, espelhando algo
que foi determinante na obra da artista francesa-americana.
Livro
extraordinário? Talvez não, mas uma forma honesta e equilibrada que
respeita a própria ontologia fragmentária e contraditória
intrínseca à vida e obra da artista e, assim, capaz de a devolver.
Nota
final : agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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