A primeira vez que
nos cruzámos com uma referência a este título foi no pequeníssimo mas delicioso
guia Forty Cartoon Books of Interest, de Seth, o qual mencionáramos aqui.
Desde então temos procurado obviar alguns dos títulos que nos eram
desconhecidos, obtendo cópias dos livros ali indicados. O volume de Freeman,
publicado originalmente em 1945, foi um deles, e a sua reedição pela Dover é
sinal de que poderá integrar as discussões sobre a história da banda desenhada
e do cartoonismo de uma maneira mais imediata. (Mais)
De uma forma
superficial, podemos dizer que It Shouldn't Happen (To a Dog) é um livro
sobre um soldado norte-americano, Albert C. Bedlington Jr., acabadinho de
chegar à recruta durante o período da 2ª Grande Guerra, e o seu mau tratamento,
como soe dizer-se, “abaixo de cão”, ao ponto de o transformar literalmente num,
e todas as peripécias e dificuldades inerentes a essa condição na sociedade.
Não é que nos nossos dias haja grande diferença na recruta, mas existem
especificidades históricas que tornam a vida militar da mais baixa patente nos
anos 1940, nos Estados Unidos, como uma experiência muito particular. Até a
gíria que
lhe era própria parece
confirmar isso: talvez o termo “dog tags” seja suficiente para explicar a
metáfora. Porém, este é também um livro que se reveste de significados mais
profundos, de cariz político, e que o torna interessante não apenas pela forma
como pelo papel que terá tido no seu contexto.
Como escreve Seth,
“Parece que a cada dez anos no início do século XX alguém inventava a graphic
novel”. Com efeito, olhando para as características de muitos livros
publicados nos Estados Unidos (e fiquemos enclausurados nesse espaço geográfico
e político) unindo as imagens em sequências narrativas, e compreendendo o
desenvolvimento desta disciplina de uma maneira mais orgânica e contínua,
torna-se muito difícil aceitar sem reservas uma narrativa linear e límpida da
“invenção” dessa forma material e comercial do nada e com apenas um gesto (as
mais das vezes, A Contract with God, de Eisner). O facto de It
Shouldn't Happen (assim como tantos outros livros, como os de Edward Gorey
ou de Andrzej Klimowski) terem apenas uma imagem por página, e uma
pequena legenda em baixo, ou nenhum texto, não pode ser factor de exclusão
dessa hipotética história, uma vez que o percurso desta disciplina foi bem
complexo em termos de estruturas e relações físicas entre matéria verbal e
imagens, distribuição e composição, sequência e série, formatos e
circulação comercial, relacionamento com outros meios expressivos e de
comunicação, grau de envolvimento com outras culturas, etc.
Logo, o acesso facilitado
a este título de franca importância histórica, ainda que nem ocupe o lugar de
nota de rodapé na esmagadora maioria das histórias da banda desenhada, agora, poderá
tornar-se, tal como aconteceu com os “romances em xilogravura” a que Beronä
dedicou o seu livro, uma maneira de alargar esse entendimento histórico
e conceptual da banda desenhada. Esperamos mesmo que esta edição –
recordemo-nos de que a Dover é responsável por uma certa recuperação visual,
tendo publicado vários volumes de James Reid e Lynd Ward, mas que também
Manuel Caldas nos “devolveu” Ele foi mau pra ela, de Milt Gross -
possa significar o relançamento de muitos outros títulos da mesma natureza,
como East of Fifth de Alan Dunn, The New Sun de Taro Yashima, ou The
Little Tailor ou Alay-Oop (este último que nunca lemos, pois difícil
de capturar sem dispensar uma pequena fortuna) de William Gropper.
A
importância do livro ganha contornos significativos se se fizer uma
interpretação que torne a história do soldado Bedlington, que é branco, numa pouco velada metáfora do “lugar”
dos negros nos Estados Unidos da época. Numa cena, o soldado-cão está a ler um
livro num jardim, e uma mulher chega mesma a chamar a polícia por desconfiar da
sua presença naquele lugar. Um polícia de giro intervém e revela-se que Bedlington
estava a ler Lincoln… Muitas das cenas mostram-no com grandes dificuldades em
ter dinheiro para comprar comida, um jornal, ou até um bilhete de cinema,
ficando no “galinheiro”. Duas cenas, porém, são apontadas como liminares nessa
interpretação. Numa viagem de comboio, ele fica a dormir num vagão, na cama de
cima de um beliche e isso é chocante para toda a gente, chegando mesmo a ser
debate à escala nacional. E numa outra cena, em que se senta num autocarro, o
motorista exige que ele se sente nos bancos de trás, ou terá de sair do
veículo. Estamos, recordemo-nos, a dez anos do acto de desafio de Rosa Parks.
São, portanto, vários os elementos narrativos, mesmo que jamais explícitos, que permitiriam ler It Shouldn’t Happen como uma obra que se
dirige a um tema, então, vivo na sociedade norte-americana.
Uma breve nota,
todavia. O título original (ver a imagem, do interior, sem sobrecapa) não continha a parte parentética “(to a dog)”,
acrescentada nesta edição, a nosso ver desnecessariamente e demasiado
explicativa. Aliás, a força do título é diluída por esse acrescento, que até
poderá ser interpretado de uma maneira negativa: ou, que os acontecimentos não
deveriam acontecer sequer a um cão, mas que na verdade se passaram com seres
humanos; ou, que este livro re-apresentado agora pode ser descontextualizado do
seu tempo parapoder ser lido como uma fantasia…
Mas esse perigo
não se verifica, pois esta nova edição, para além de alterar ligeiramente o
formato e materialidade da edição original, que é um livro de capa cartonada,
com sobrecapa – isto é, na sua época fazia parte de um mercado de livros
ilustrados, colecções de cartoons,
etc., similar ao dos “romances gráficos” dos nossos dias ainda que em rigor
distinto (por questões sociais) -, contem um prefácio pelo historiador e biógrafo de Bill Mauldin,
Todd DePastino. Este dá-nos a entender algum do contexto da sua edição original
e a sua recepção, que oscilava entre a total incompreensão, lançando-o para a
indiferença da “fantasia”, ou então transformando-o numa arma de arremesso
reaccionária, uma vez que o tratamento do tema profundo é progressista. Com
efeito, as breves palavras do prefácio são um estudo de excelência em termos de
verdadeira contextualização político-histórica, e que impediria aquela reacção
usual de “isto é próprio da época”, tratando todo e qualquer cidadão de um
momento como pertencente a uma massa homogénea. DePastino cita os movimentos
sociais progressistas dos anos 1930 que tentaram melhorar as condições de vida
da parte da classe trabalhadora, inclusive emigrantes e particularmente os
negros, mas que encontrariam no período da guerra uma “pausa”. Isto permite estilhaçar
aquela ideia de que “na altura” era “normal” um qualquer comportamento, como se
as sociedades pudessem ser vistas de modo homogéneo a partir das suas
características mais salientes numa sua redução histórica. Não podem, e como
sempre, as tensões entre perspectivas conservadoras e progressistas estavam em
curso. O trabalho de Don Freeman estava ao serviço do primeiro campo. Tendo em
conta esse contexto do pós-guerra, em que as “prioridades” eram o progresso
económico (aliás, uma desculpa corrente e permanente da direit conservadora em
adiar toda e qualquer discussão sobre questões culturais, sociais e
civilizacionais em nome de um sempiterno esfomeado “desenvolvimento económico”).
os herdeiros do que foi chamado a “segunda Renascença americana” em termos
culturais não encontraria grande fortuna nos tempos conservadores que se
seguiriam, o que torna o gesto de Freeman ainda mais significativo, e explica a
“controvérsia” em que cairia este seu título.
É a atenção para
com uma existência mais mundana, dos problemas das classes mais desprotegidas,
ou até para com a existência de uma realidade social estratificada, que Freeman
consegue atingir um significado politicamente mais relevante (o mesmo poderá
ser dito de Gropper, Yashima e Masereel, todos eles identificáveis como
socialistas, ou pelo menos com simpatia pelas lutas das classes trabalhadoras e
um posicionamento anti-militarista) do que a esmagadora maioria dos seus
colegas artistas. O trivial não significa apenas uma hipótese de humor, mas de
reflexão social. Freeman não nutriria uma posição anti-militar, há até alguma admiração
por alguns dos seus valores e funcionamento (dado o seu percurso profissional, explicado
por DePastino) e na verdade perseguiria uma carreira de ilustrador para a
infância algo acomodada, tornando It Shouldn't Happen quase numa “vez
sem exemplo”.
Neste livro, o
autor não cultiva o seu traço soberbo, elegante e cheio que lhe angariaria a
alcunha de “Daumier de Nova Iorque”. Olhando para os desenhos que fez em torno
da cidade em que vivia, uma imensa obra gráfica, encontraremos composições
picturais magníficas, sobretudo sobre o quotidiano mais sofrido dessa urbe. It
Shouldn't Happen – mostra figuras debuxadas com gestos rápidos, com o que
parece ser um lápis grosso de grafite, próximo do esboço ou da assinatura. Uma
linha curva é suficiente para demarcar o espaço, outros golpes rápidos
constroem um edifício, a personagem principal é constituída com um número
fechado de linhas certeiras. Mas é essa gestualidade que incute à história do
soldado/cão a urgência premente que transmite. O facto de o livro seguir uma
fórmula aparentemente inócua para depois levantar um espelho negro da situação
da estratificação social ou mesmo racial dos Estados Unidos é o que o torna
perturbador – seguimos, literalmente, um underdog em situações
absolutamente abjectas em que outros o proíbem de ler num parque, deitar-se
numa cama num comboio, sentar-se no autocarro, liderar uma patrulha, etc. - ,
progressista e como vimos, à época, “controverso” (as aspas devem-se a que é a
reacção que deveria gerar controvérsia, não o gesto original). Essa assinatura
gráfica esbater-se-ia então, de certo modo, nos trabalhos posteriores como os
livros do ursinho Curdoroy... E se a maioria das composições nesta obra mostra
as figuras em planos médios ocupando as páginas, há algumas cenas de planos
mais abertos, sobre a paisagem urbana, que o inscrevem de imediato na linha da
frente dos grandes artistas de Nova Iorque ou do que hoje se chamaria de “desenhadores
do quotidiano” ou urban sketchers.
It Shouldn't
Happen – , por várias
razões, poderia bem ser um forte candidato a obra-prima de uma “história
alternativa da banda desenhada”, no sentido de demonstrar um desenvolvimento de
maturidade social e cultural desta arte que ainda não ocorreu totalmente, mas
para o qual não faltaram gestos concretos nessa direcção, precisamente como
este.
Nota final:
imagens do “miolo” do livro retiradas da edição de 1945.
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