Apesar
deste livro, como aquele sobre Saint Phalle, se tratar de uma
encomenda, neste caso do Rijksmuseum Amsterdam, com o intuito de
celebrar a vida do grande pintor holandês, Typex evita todas e
quaisquer armadilhas de um discurso didáctico ou simplificador quer
da vida quer da obra de Rembrandt. Estamos, portanto, num diálogo
que, se mais próximo dos intentos de Ruitjers em relação a Bosch,
acaba por se tornar mais feliz no seu resultado. Não há grandes
hipóteses deste livro ser recuperado por programas escolares. (Mais)
Typex
é um autor sobretudo afecto a um certo circuito alternativo, mas de
alguma visibilidade, e até mesmo legibilidade. A revista Chorizo
é um exemplo desse tipo de produção, materialmente rica, de alguma
circulação, mas sem abdicar das muitas heranças do underground
da Amesterdão dos anos 1980... E Typex é cultor de um trabalho
gráfico que recorda precisamente alguns dos autores do underground
clássico norte-americano como Crumb ou Deitch numa das suas
vertentes: o emprego de um desenho associável à banda desenhada
infanto-juvenil, de entretenimento e filme animado, para depois o
empregar a temas “socialmente marginais”... Porém, no caso de
Rembrandt, o autor procura uma maior gravidade na
representação naturalista dos corpos humanos e nas paisagens
urbanas, com uma corporalidade massiva, feita de linhas excessivas,
soltas, como fumo, e depois uma aplicação de uma paleta sóbria,
reduzida mas significativa e evocativa das grisailles e
sanguíneas de Rembrandt, ou as linhas das suas absolutamente
sublimes gravuras, tornando o aparecimento de cores mais vivas plenas
de sentido. Cada episódio funciona, aliás, não apenas como uma
unidade narrativa, da vida do pintor, mas a outros níveis também,
inclusivamente formais, no que diz respeito à composição de
página, “velocidade” dos acontecimentos, integração das obras
originais de Rembrandt, e outros aspectos.
É
em pormenores que a obra de Typex ganha alguma força, e o leitor
deve estar atento à composição de cada vinheta, apetece dizer,
cada “quadro” (ou “quadrinho”, se preferirem). A composição,
enquanto arranjo dos elementos visuais, é extremamente importante,
dispondo-se corpos em construções simétricas, numa só vinheta, ou
entre vinhetas que se respondem, criando relações de campo e
contra-campo, focalizações particulares de partes do corpo, etc. Ou
autor tira partido de toda e qualquer estratégia de colocação dos
corpos nas vinhetas, e das hipóteses de sequencialização destas,
para criar dinamismos de avanços e recuos, entre planos
estratificados, um objecto que rola para um canto… Numa cena
passada na juventude do pintor, um nobre combina com um colega de
Rembrandt um retrato e as quatro vinhetas mostram no centro apenas as
mãos dos interlocutores, e nesse dramatismo “manual” consegue-se
transmitir toda uma relação de hierarquia social, deferência,
bajulação, maneirismos, aproximação, que ao mesmo tempo funciona
como comentário às diferenças entre as éticas de trabalho desse
colega, Jan Lievens, que colocava Jan num campo aproximável mas
distinto do seu mais famoso companheiro. Esse é apenas um dos
aspectos em que Typex parece seguir algumas das lições de Will
Eisner no que diz respeito a uma teatralidade visível da expressão
cinética dos corpos, por vezes tocando o melodramatismo, mas
parece-nos que é apropriado à história de alguém que queria
imitar com a máxima exactidão a vida, com todos os seus defeitos,
para a tornar eterna.
Rembrandt
não segue uma cronologia habitual, nem sequer podemos ver nos
episódios valorações de idêntico peso. Cada capítulo tem o seu
próprio título, desenhado caligraficamente num spread
titular, com um pequeno desenho alusivo. Na maior parte dos casos
estes títulos são nomes próprios das pessoas que se tornam
“chaves” desse trecho, ou expressões que caracterizam o momento
relatado. E se há nitidamente uma possibilidade, final, de progresso
cronológico da vida do pintor holandês então conhecido pelo seu nome de família, van Rijn, desde 1629, nos seus
primeiros passos de profissionalização, ou mesmo recuando à sua
infância, e depois à sua morte, a ordem dos capítulos não segue
essa lógica. Obriga-nos mesmo a uma navegação de trás para a
frente, em voltas e retornos e avanços, em que mais surgem como
quadros que pretendem construir uma personalidade variada e humana
pelas suas acções e relações, do que providenciar uma hipotética
“explicação” de Rembrandt. Essa natureza é ainda sublinhada
pela maneira como o autor coloca bandeirolas com o nome do local e o
ano, sobre uma cena diegética, criando a sensação de estarmos a
entrar numa construção (pictórica, teatral, todas essas noções
concorrem). Seja como for, cada um desses capítulos apresenta-se
como um “arco narrativo” perfeito, uma pequena história em si
mesma, que pode mostrar a experiência de uma dessas testemunhas da
vida de Rembrandt – a primeira mulher, a criada-amante, o filho -,
ou mostra uma atitude do pintor para com um evento. As mais das
vezes, esmagando a sua humanidade num pragmatismo quase abjecto,
egoísta e isolado. Todavia, se há aspectos do mito que não são
totalmente desvanecidos, como o início do fim da sua riqueza
material após o “falhanço” da ronda, Typex não diminui tudo a
uma trama central, à la Peter Greenaway com Nightwatching (tão
perigosamente redutor quanto interpelante na maneira como “descola”
a imagem da narrativa, regressando a uma abordagem mais propriamente
pictoral: até certo ponto, há um esforço similar em Typex - como interpretar a imagem deste parágrafo?, como aceitá-la somente pela sua "função narrativa" de Rembrandt a afastar-se de barco num dos canais?)
e, acima de tudo, consegue aproveitar-se da profundíssima capacidade
de auto-análise do pintor, como o próprio deixou transparecer nos
seus vários auto-retratos, um exercício de auto-conhecimento
superno em si mesmos.
Como
é de esperar, a obra pictural e gráfica de Rembrandt torna-se
matéria plástica na narrativa. Por vezes, Typex cita as imagens
directamente, no sentido em que nos mostra um desenho ou pintura
feita por Rembrandt, mas na sua própria assinatura de banda
desenhada. Aqui comparamos directamente um desenho a pincel feito em
1664, de uma mulher condenada à morte, com a versão de Typex
(cortámos em torno, deixando visíveis as margens das outras
vinhetas; o desenho está no centro da prancha). Repare-se como o
autor da banda desenhada não procura criar uma cópia perfeita, uma
imitação ilusória, ou uma falsificação, mas procura cumprir de
novo os mesmos gestos do mestre pintor. Typex sabe que está a lidar
com um dos mais celebrados pintores do ocidente e um inimitável
mestre da luz, por isso não o “persegue”, mas rodeia com o seus
próprios instrumentos. Os limites desta vinheta-desenho inserido
mostra ser uma folha “solta”, tal como a de Rembrandt, e de uma
textura ou gramagem comparável, talvez. Rembrandt tinha o seu modelo
à frente dos olhos, Typex o desenho, por isso notam-se como as
linhas do novo desenho tentam percorrer as mesmas curvas, falhando
aqui e ali, sendo quase exactas noutros locais (nos pés inchados, no
machado pendurado) e depois o pincel tenta impor sombras. Noutros
“usos”, as pinturas surgem enquanto cenas da narrativa, e aí o
autor contemporâneo não procura mimar a exactidão do pintor, mas
antes traduzir na sua própria assinatura gráfica (veja-se o mesmo
exercício, com cortes drásticos na pintura de Rembrandt, em torno
de Judas devolvendo os trinta ouros.
Outro
aspecto da transformação das imagens em matéria narrativa
traduz-se na maneira como o autor tece acontecimentos fictícios que
permitem desdobrar possibilidades de relacionamento com o pintor. Por
exemplo, do que se sabe histórica e oficialmente, aquele desenho da
mulher condenada à morte, uma tal de Elsje, foi feito somente na
óptica de um artista, velho, cansado, possivelmente em busca de
matéria. Typex utiliza, porém, tudo o que se sabe dela – graças
ao processo judicial que a levaria à condenação – para construir
um episódio com o seu nome, envolvendo-a sexualmente a Rembrandt, a
um só tempo para reinstituir o desenho com uma gravidade emotiva que
possivelmente não tem, e ao mesmo tempo para tornar mais complexa a
personalidade do pintor, graças a esse episódio a um só tempo
tornada mais trágica mas também mais insensível ao sofrimento dos
outros. Outros desenhos são empregues para criar episódios (a Ronda - cujo propósito social, título, relação espacial, etc., nada tem a ver com o seu "uso" contemporâneo - surge como cena “verdadeira”, em termos diegéticos; desenhos
eróticos surgem como memórias de infância; detalhes de pinturas
servirão de cenas numa rua, pormenores numa paisagem urbana, num
qualquer interior).
Como
vimos, aquele desenho de Elsje foi incorporado na prancha “tal
qual” (outros autores, como Baudoin ou Lynda Barry, fazem o mesmo),
deixando visíveis os seus traços materiais de artefacto, e criando
uma textura dimensional nos seus trabalhos. Essa dimensionalidade ou
materialidade é visível ainda na capa, em que apesar de não
existir qualquer diferença física em todo o plano, parece estarmos
face a uma sobrecapa em papel rasgada, revelando a capa de pele (ou a
sua imitação sintética dos nossos dias). Já para não falar do
fundo das pranchas, que funcionam como suporte dos desenhos – de
maneira que se compreenda a fortuna teórica e analítica que é
criar distinções entre “prancha” e “página” -, sublinhando
a natureza diferente entre as vinhetas coloridas e emolduradas, os
desenhos em silhuetas rabiscadas que aparecem “flutuando”,
aquelas que surgem de modo monocromático e sem linhas rectas nos
seus limites, ou aquelas que imitam ,de uma maneira ou outra, as
estruturas arquitectónicas dos espaços em que ocorrem. E isso
permite alguns jogos cómicos da parte do autor, como as manchas de
vinho que “sujam” as margens, mesmo ao lado das vinhetas em que
comensais já bebidos entornam os seus copos durante um casamento, ou
quando uma comitiva italiana do Duque Cósimo vasculha o atelier do
velho Rembrandt em busca de telas para comprar “rasgam” o canto
da página…
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