E agora, para algo completamente
diferente.
Junji Ito é um autor que tentamos
seguir com interesse, por criar das poucas bandas desenhadas de
horror que no é de facto perturbante a um nível fisiológico. O
modo como ele transforma os corpos humanos em palcos de
transformações plásticas, sem jamais perder o fio à meada
naturalista torna-o perfeito para certas emoções (como discutimos há pouco). Não foi sem
alguma surpresa, portanto, que nos deparámos com um livro que parece
dedicar-se a territórios totalmente distintos, e que pensávamos
afastados do autor. (Mais)
Como indica o supra-título do livro,
Yon & Mu não é mais do que “o diário dos gatos de
Junji Ito”. Associando-se a uma tradição vetusta de demasiadas
pessoas, e sobretudo desde o advento da internet, a atenção para
com os gatos próprios roça sempre a obsessão doentia, apenas
comparável com aquela de que os pais se nutrem pensando sempre que
os seus filhos são particularmente dotados para um qualquer talento
que insistem em querer partilhar com os demais.
Na verdade, a história inicia-se com
algum distanciamento e desconfiança mútua entre o autor e os seus
gatos... Um primeiro ponto a assinalar é que este livro assume um
carácter semi-autobiográfico, pois mesmo que o casal que se acaba
de mudar para um apartamento responda, no interior das histórias,
pelos nomes de J-kun e A-ko, eles são avatares claros do autor e da
sua namorada-depois-mulher (cujo primeiro nome é Ayako). E os gatos
Yun e Mu correspondem de facto aos gatos que tiveram na época, até
tornados “documentais” pela inclusão de duas páginas que lhes
são dedicadas, com uma colagem de fotografias caseiras várias
(mesmo de má qualidade), revelando quer a exactidão da
representação física quer de alguns comportamentos retratados. A
namorada A-ko, ao mudar-se, traz um gato, cujo padrão no corpo se
assemelha a uma “tête de mort” (nem a propósito, para um autor
de horror), e a amizade entre gato e autor não se inicia de
imediato. Porém, é de imediato no primeiro episódio que o homem se
rende aos encantos do felino, de uma forma obsessiva, pateta e
perfeitamente credível.
O livro é pequeníssimo, e divide-se
numa mão-cheia de capítulos de uma dezena de páginas. Que foram
sendo publicados numa revista periódica por pedido do editor de Ito,
que acreditava este ser um exercício curioso de descontração para
o autor das epopeias negras de Tomei e Uzumaki.
Qualquer pessoa que convida com gatos encontrará aqui experiências
similares, que – como as crianças, novamente – rondam sempre a
admiração e a exasperação. Independentemente da suposta
superioridade humana, vemos ambos os “donos” a transformarem toda
a sua vida em nome do convívio com os seus gatos domésticos, numa
espécie de novela burguesa, o que permite ao mesmo tempo dar a ver
uma vida quotidiana, trivial e “normal” japonesa que costuma
estar afastada da maior parte da mangá popular. Cada episódio foca
uma crise doméstica, por vezes absolutamente banal, outras vezes
mais crispada, mas que termina sempre por construir as personalidades
de todas as personagens.
Não sendo de forma alguma um livro
brilhante, e muito menos o mais conseguido do autor, ou sequer um bom
livro sobre gatos – se se acreditar que isso é possível, e
estamos em crer que sim, ao que retornaremos -, ainda assim Yun &
Mu terão pequenos elementos que importarão conhecer, sobretudo
aos fãs do autor. A justificação é o ponto curioso de que o autor
não abandona de forma alguma as suas capacidades de desenho, e até
mesmo “manias” de representação, para instilar alguns momentos
de distorção plástica assustadoras mesmo em cenas que em nada
teriam de horror. Ao mostrar A-ko de pupilas vazias, distorcendo os
rostos dos humanos quando de uma expressão de emoção
transbordante, ou dos animais para transmitir um movimento qualquer,
preenchendo as vinhetas com linhas cinéticas, padrões ou ocupações
gráficas para denotar uma qualquer emoção, dando corpo a uma breve
alucinação ou erro de percepção, ou uma metáfora comportamental,
Junji Ito transforma algo que deveria ser tranquilo numa sucessão
de dramas cinéticos e hiperbólicos.
Uma possível comparação seria com um
outro clássico da mangá sobre gatos, um “bom livro sobre gatos”:
What's Michael, de Makoto Kobayashi. Longe das mediocridades
usualmente protagonizadas por esses animais (Gardfield e
companhia), a capacidade de observação cuidada e da sua expressão
de Kobayashi, sobretudo do comportamento dos gatos, tornava-o quase
uma espécie de naturalista cómico. Yun & Mu não tem
essa intenção, mas tão-somente a de tecer curtas histórias
divertidas com os “meus” gatos, da perspectiva de Ito.
Nota final: agradecimentos a M. T.,
pelo empréstimo do livro.
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