É uma verdade de La Palisse que a banda desenhada japonesa se
apresenta de uma forma mais estratificada do que outras, no que diz respeito a
géneros, públicos e circulações, até pela sua produção massiva, o que torna
mais fácil, até certo ponto, análises por atacado. O que não invalidade a
existência de cruzamentos, contaminações e problemas de generalização com essas
mesmas leituras. Contudo, elas ajudam, numa primeira instância, a uma primeira
abordagem. Ora, é nesse sentido que podemos afirmar que se existe uma grande
oferta de títulos de horror, é Kazuo Umezu, famosamente conhecido como “Kazz”,
o seu grande primeiro cultor e figura. (Mais)
Nos nossos dias, há um bom número de autores celebrados deste
género particular no Japão, conhecido como kyoufu, ou “Horror”. Sobre este género,
já havíamos tecido algumas considerações a propósito de Hellblazer, e a elas remetemos. Aqui apenas nos importa, para já, fazer
uma distinção entre alguns autores japoneses. Este género distingue-se de um outro
que parece ser chamado de kaiki, que
significa antes algo que cobre os campos semânticos do “incomum”, “misterioso”,
que pode incluir de uma forma flexível o maravilhoso, o fantástico, e até de um
ligeiro monstruoso. Mas este outro género não se aproxima do abjecto, do
repulsivo, do informe, tal qual o Kyoufu. Ora é este território, que abarca
cenas explícitas de gore, figuras absolutamente grotescas e distorções
psicológicas ou físicas que levam a uma atitude de repulsa pela parte do leitor
que Umezu fundou na banda desenhada japonesa. Se existiam cenas de morte e
crimes já em muitos dos autores de policial e até gekigá, é ele, que em títulos como The Left Hand of God, The Right Hand of the Devil e The Drifting Classroom/L’École emportée (mencionamos os títulos
em inglês e francês, uma vez que são esses que estão acessíveis em livro e/ou scanlations), abre as comportas de
sangue em catadupa (sim, uma referência a Kubrick) que se seguiriam… É possível
que autores como Housui Yamazaki, Tsutomu Nihei, Takato Yamamoto, e até mesmo Suehiro
Maruo possam ser vistos como seus seguidores, se bem que estamos a referir-nos
a autores com preocupações narrativas e filosóficas bem distintas. Por outro
lado, são aqueles autores que melhor exploram a distorção biológica dos corpos aliada
a pressupostos da mais trivial da vida diária que são os melhores herdeiros do
que Umezu fundou. Aí falaríamos de Junji Ito, Shintaro Kago e Hitoshi Iwaaki,
com o seu delicioso e absurdo Parasyte.
Esta antologia da Lézard Noir permite recordar alguns dos
trabalhos que construiriam a fama do autor na sua transição, densificação e
aprofundamento de uma ideia de horror, afastando-a de meros contornos de
fantasia, mesmo que negra, mas ainda sem penetrar nos campos do gore. Sete histórias criadas no final da
década de 1960 e princípio da de 1970, e publicadas na revista Big Comics, estas são peças que são
extremamente reveladoras da capacidade do autor criar tecidos de abjecção
interior através de mergulhos nas psiques atormentadas das suas personagens.
As histórias de Umezu, neste livro, seguem personagens mais
adultas, ou jovens adultas, centrando-se portanto em tópicos associados ao
emprego, à carreira, a relações de longa duração, às transformações a que
entrada na “via adulta” obriga. Mas essa passagem transforma-se quase sempre
num ritual que se abre para paisagens bem mais tenebrosas. Por outras palavras,
é como se o autor se aproveitasse dos temas que mais criam ansiedades de longo
curso nestas personagens (e seus leitores) e os transforma em palcos de
detonação do horror psicológico. Uma breve sinopse de algumas histórias podem dar
a entender algum do enquadramento, mas falharão em falar dos mecanismos de
representação.
Uma mulher, para tentar evitar as explosões de fúria do seu
marido violento, transforma-se num insecto gigante. Uma mulher a quem parece ser dada a oportunidade de
refazer os seus passos, na escolha de um companheiro, na esperança de ser mais
feliz… Um homem que mata a mulher fria passa a viver no horror de encontrar a cabeça dela (que desaparecera) em qualquer lugar, até na panela de arroz... Um casal, à vez, parece poder demonstrar que o seu amor é de facto
eterno um pelo outro, mesmo no infortúnio horrível do cônjuge. Um homem que,
injustamente acusado de matar a sua mulher e filha, parece poder redimir-se
desse infortúnio. Uma outra mulher que, tendo enganado o marido, vive todo o
resto da sua vida à espera que o segredo se desvende.
Como dissemos, porém, a descrição dos acontecimentos não é suficiente
para “compreender”. Pois aquela transformação em insecto da mulher não ocorre “na
realidade”. Caberá apenas ao leitor a decisão de compreender qual o membro
daquele casal que faz o sacrifício maior. Assim como compreender a validade e
força da redenção do homem acusado. A viagem da mulher dos dois destinos pode
ser lido como um milagre – isto é, que aconteça mesmo num domínio de fantasia –
mas ele deve ser antes lido como uma lição.
Em termos estruturais, há alguma coincidência entre as
histórias, que parecem repetir um tema de Borges em que se tece toda uma
história em torno de uma potencialidade que, subitamente, se revela uma
complexa ilusão, um caminho que apenas no seu término nos apercebemos se ter
bifurcado algures, lá atrás. Muitas das histórias iniciam-se sob a perspectiva
de uma personagem para emergirmos na de uma outra. Ou então penetramos na
percepção interior das personagens para depois ser divulgada “a verdade” ou “o
outro lado”. Criando assim sempre a ideia de termos duas perspectivas bem
diferentes sobre os mesmos acontecimentos.
Como é apanágio da banda
desenhada japonesa, mesmo para relatos pequenos, dá-se muitas vezes a
possibilidade de permitir transições entre as vinhetas que abdicam totalmente de
texto, por vezes até mesmo das personagens, de maneira a criar efeitos de, por
um lado, maior dinamismo dramático, incutindo a cada intervalo ou pormenor da
acção maior peso emocional, por outro, de maiores passagens de tempo “ambiental”,
aprofundando as emoções das personagens. São particularmente belas três páginas
do último conto, “La fin de l’été”, o tal da mulher de dois destinos, ou, para
brincar com o título português de Vertigo,
da “mulher que viveu duas vezes” (se bem que, neste caso, trata-se mesmo da
personagem da protagonista, não do homem obcecado por ela), que deixa o verão glorioso
na praia para entrar num Outono melancólico numa casa pobre dos arredores de
Tóquio. A um só tempo temos um novo establishing
shot e uma descida à conturbação da protagonista…
Umezu usa aqui um desenho algo
rígido para as figuras humanas, notável sobretudo em momentos de maior
cinetismo. Isso é recompensado, todavia, em vinhetas mais “icónicas”, de
apresentação de uma pose ou da entrada em cena de uma personagem. Anatomicamente
compostas (com um outro deslize), as personagens encontram-se enclausuradas
muitas vezes em vinhetas cheias de informação visual, bastas vezes no centro de
tramas complementares, densas, e até mesmo confusas para dar conta de outros
tumultos. Existem muitos efeitos dramáticos como irises, iridações de linhas, ou
enquadramentos dentro das molduras das vinhetas, e sempre rodeado de linhas
paralelas que não apenas dão conta de sombras e reflexos das superfícies, como
conduzem, diminuindo, o foco de atenção do leitor. O melodramatismo é por
demais acentuado, mas acompanhando as manipulações da informação psicológica e
perceptiva das personagens, é muito eficaz. O efeito é, na verdade, duradouro e
perturbador.
Não existem cenas de violência
extrema, e há mesmo episódios que seriam chocantes (um assassinato, uma
violação, um acidente) que são tratados com alguma delicadeza, digamos assim. O
choque não está no evento em si, mas antes dos resultados finais, na
reviravolta, no efeito de surpresa, no choque. Se o choque da abjecção tem
novos níveis como Kago e Ito, nos nossos dias, a degradação psicológica interna
encontra ainda nestas histórias com mais de quarenta anos de Umezu um acme a
superar.
Nota final: no momento em que estas linhas são escritas, está
para ser publicado um segundo volume de histórias curtas de Umezu, na mesma
linha, de entre as décadas de 1970 e 1990: Le
voeu maudit.
Sem comentários:
Enviar um comentário