É hoje lançado o volume que reúne a trilogia de José Feitor de livros com imagens e textos que perfazem um contundente "Fia-te na Virgem e não corras" a toda a humanidade. São esses livros dois que foram publicados anteriormente e de que demos conta, a saber, Uma perna maior que a outra e Pimenta no cu dos outros para mim é refresco. e um inédito, intitulado Ainda que fosses capaz, não o farias (Notas esparsas e incoerentes sobre aquilo que tem corrido mal), . Juntos, ganham título-mor: Encantados e arruinados ante os restos do banquete. Muitos dos desenhos originais destes livros, serigrafias associadas e fontes estiveram expostas na Tinta nos Nervos, entre 19 de Setembro e 16 de Novembro: A
Mercadoria é Medonha, vai vender que nem ginjas. Nessa altura, produziu-se um texto para a folha de sala, que poderá servir igualmente de resenha ao novo capítulo e à obra em geral. Aqui o recuperamos e publicamos para toda a gente. O lançamento é hoje, às 18h30, na livraria-galeria Tinta nos Nervos.
Desculpem-me
as grandes questões pelas respostas pequenas.
Wislawa
Szymborska
Após
vários anos enquanto editor do influente e agregador fanzine Zundap,
ali pelos anos 2000, e um trabalho esporádico mas aguçado de
ilustração editorial de cariz político (Combate)
e alguns trabalhos em círculos mais comerciais ou em prol de
projectos alheios (publicações periódicas, capas de disco,
chegando mesmo a ilustrar projectos de cariz infanto-juvenil, como os
livros de Francisco Duarte Mangas, inclusive O
Noitibó, a Gralha e Outros Bichos,
pela Caminho: 2009), José Feitor deu início a um projecto de
publicações literário-artísticas que se viriam a revelar uma
trilogia, sem nome englobante até à data, e que são o cerne da
presente exposição.
Tratam-se
de objectos heteróclitos, que não obedecem às muitas categorias
inventadas para balizar quando temos livros onde os textos e os
desenhos coabitam sem criar claras hierarquias de primazia, quer de
origem quer de valorização, amalgamando-se numa possível e
verdadeira co-criação. A concorrência da poética, entre aquilo a
que chamaríamos texto
e aquilo a que chamaríamos imagem,
desagua num equilíbrio.
Feitor
parece levar o seu apelido à letra, não apenas num sentido
criativo, ou até como administrador de outrem, mas enquanto actor e
facilitador dos esforços dos outros na construção de uma
comunidade. Os mundos da edição independente, da ilustração
livre, da serigrafia, e do quase simples, mas fulcral, convívio
entre os fazedores de imagens, devem-lhe – nunca de forma isolada,
mas contextualizada e integrada com outras plataformas e agentes,
como é natural – as bases de muito o que ainda hoje ocorre e pode
ocorrer nesses círculos. Os seus esforços de colectivização foram
sempre mantidos ao corrente do que se passava com a organização de
várias exposições, acções ou publicações que reuniam um
punhado de artistas de círculos similares. É assim que se montam as
exposições Zurzir
o Gigante
e Furacão
Mitra
(apresentadas ambas no espaço Interpress, a primeira em 2005, a
seguinte em 2008), e as várias Feiras Laicas, ao longo de muitos
anos (cujo legado foi continuado pela Feira Morta). É assim também
que se encontra na fundação da Oficina do Cego, Associação de
Artes Gráficas, fundada em 2009, a qual também influenciaria muitos
outros projectos.
Enquanto
editor, após o zine Zundap,
Feitor fundaria a Imprensa Canalha, um pequeno selo editorial
independente que daria espaço a vários projectos, sobretudo
editoriais, de ilustração, banda desenhada, mas também vídeo e
música. Por esse selo publicaria autores tais como Pedro Lourenço,
Filipe Abranches, José Cardoso, Luís Henriques, Ana Mendes, Nuno
Sousa e Carlos Pinheiro, Tiago Baptista, entre outros. E o seu
próprio trabalho, claro. Pela Imprensa Canalha sairiam os colectivos
Derby
(o qual, jogando com cinco ilustradores de Lisboa e cinco do Porto,
de certa forma servirá de semente às associações Oficina do Cego
e Oficina Arara) e Cabeça
de Ferro
(ambos de 2007).
É
mais recente, então, a entrada de Feitor na lavra de um conjunto de
livros onde assume maiores poderes, e concentrados, nas suas
ferramentas criativas. Uma
perna maior que a outra sai
em 2014, podendo
considerar-se
como tendo contornos autobiográficos, apresentando-se como colecção
de micro-ficções ou memórias que retratam um Portugal social de há
umas décadas, ruralizante e rude, cabisbaixo e resignado à
tradição, envergonhado mas incapaz de lhe dar solução.
Pimenta
no cu dos outros para mim é refresco,
já de 2019, acaba por assumir contornos mais alargados, atentos à
própria espécie humana, e no modo como ela tanto despreza o próximo
como sustenta a besta que se nutre no nosso interior. O terceiro
passo deste percurso será a publicação Ainda
que fosses capaz, não o farias (Notas esparsas e incoerentes sobre
aquilo que tem corrido mal),
a ser lançada durante o período desta mesma exposição, na própria
livraria Tinta nos Nervos. Do “si” (Perna)
à “espécie” (Pimenta),
chegamos, em Ainda
que fosses capaz,
de foco maioritariamente social, atento à vida na polis,
ao “cidadão”, mas a besta mantém-se na mesma, número ao qual o
autor não se subtrai.
Para
além da flutuação de géneros, tivemos portanto igualmente uma
expansão, concêntrica, do escopo da atenção. Em primeiro lugar,
uma autobiografia disfarçada, depois um tratado ensaístico sobre a
natureza humana (revelada como essencialmente selvagem e ególatra),
e agora uma contenda, nos seus sentidos etimológicos mais antigos,
de diatribe (dia
+ tribein,
“esbanjar”, “gastar”) ou polémico (polemos,
“guerra”).
As
tradições de Kathe Kollwitz, de George
Grosz
and
Otto
Dix, Ben Shahn, Saul Steinberg, de Topor e Blutch, digladiam-se para
ganhar maior peso na assinatura gráfica de José Feitor, mas sem
vencedor à vista. Erguendo-se no negro sólido da tinta-da-China,
com o pincel mais gestual e meio-seco ou a caneta que permite maior
controlo dos contornos fechados, a aguada com sombras de meios-tons
ou a ecoline vibrante, a serigrafia planeada ou o célere
apontamento, o artista lança mão de técnicas de variada índole,
mantendo, ainda assim, com a força da gravidade, uma afinidade entre
os desenhos pela sua acutilante, até severa, natureza. Se a
figuração parte sempre de uma matriz humana, ela vai-se escapando
em várias direcções, pelo cruzamento da animalidade ou da carga
desviante que as máscaras permite (fará sentido falar de máscara
num desenho estilizado? Não é próprio da figuração que ali está?
Que direito teremos de imaginar que há algo “por trás” desses
rostos que não a sua própria superfície?). Mas a atitude teatral,
hierática, mantém-se.
Apesar
do foco aparentemente autobiográfico em Uma
perna, a
centralidade egotista sofre
um desvio pelo emprego
(“apropriação”, no parlatório das artes) de modelos
advindos
do espólio fotográfico de António Gonçalves Pedro. Todavia, as
escolhas compositivas e relacionais entre as personagens de Feitor,
em todos estes
projectos, têm sempre
um tanto de iconografia católica, em que cada objecto nas mãos,
ângulo do pescoço, corte da batina ou menino ao colo são como os
atributos dos santos.
Munido
de uma escrita parabólica, para não dizer epigráfica, e onde a
fraseologia, o vocabulário e as cadeias hipotácticas seguem
filigranas tão centrifugamente sugestivas como centripetamente
elegantes, Feitor assume um saber e labor literário que se abre a
enquadramentos sociais e de acções maiores do que imediatamente
descrevem.
Os temas
esgrimidos no
terceiro tomo ou passo, Ainda
que fosses capaz,
são hodiernos, mas Feitor abstém-se de empregar termos como
fim da história
ou sociedade
do espectáculo,
necropolítica,
capitalismo
zombie.
Não é necessário, pois o tecido sofrido da única possível
comunidade humana, a estética, já se rompeu há muito, ou foi
reaproveitado como pano de assoar ou lenço ostensivo de bolso. O
autor retorna a modos mais crus de nos mostrar as coisas, com as suas
personagens, monstros
no verdadeiro sentido da palavra (“mostrar”), erguendo-se em
posições hieráticas que mimam os antigos emblemas. O princípio da
analogia, juntando aquilo que se julgava distinto, incomparável,
numa só imagem – o homem e o animal, por exemplo –, preside a
esta espécie de Danse
macabre:
procissão de diversas e multiplicáveis personagens na única, a um
só tempo, inevitabilidade e certeza humana, recortando em potência
prometida todas as estações sociais e anímicas do homem. Não há
traço identitário que escape. Não há justificação de
comportamento, “posicionamento”, que os salve. Vai tudo a eito.
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