25 de fevereiro de 2020

Filhos do Rato. Luís Zhang e Fábio Veras (Comic Heart/G. Floy)


À medida que o tempo avançar e a esmagadora maioria dos protagonistas da guerra colonial começarem a deixar este mundo, o processo da sua memória vai dando cada vez mais frutos, e poderá mesmo chegar ao espaço público. É algo que se tem verificado, como um padrão, noutras circunstâncias históricas. Se quase se pode falar de um “pacto de silêncio” feito por essa geração em relação àquela que imediatamente gerou, o tempo aproxima-se em que também os objectos da cultura popular – no caso, a banda desenhada -, começará a responder. Não vamos fazer aqui o enésimo exercício de listar os trabalhos desta disciplina que versaram este conflito. Nos últimos anos, OsVampiros teve algum impacto, se bem que escolheu um caminho da narrativa de género; Filhos do Rato afasta-se dessa abordagem mais espectacularizante, validando porém elementos fantásticos. (Mais) 

Com efeito, o livro pretende ter um cariz mais realista e com um impacto político mais sofrido, tendo como protagonista um soldado guineense a combater pelo Ultramar luso. Uma voz usualmente arreigada dos nossos imaginários ou mesmo aprendizagens, e nisso avança desde já uma força inesperada. O problema está em que, de maneira a não criar um efeito de densidade, talvez, ou de matéria passível de ser esboroada pela compulsão dos factos, acaba por escolher uma aproximação mais diluída. Para já, Filhos do Rato evita criar discursos de contextualização histórica generalistas ou externos à atenção central da intriga, no texto central da banda desenhada. Apresenta, contudo, uns complementos finais que criam esse mesmo quadro, histórico, mas sumário. Não se cria nenhuma circunstância espácio-temporal precisa, mas antes vaga: “Guiné”, “Inverno””, “1973”.

Ainda assim, a escolha dessas legendas dizem muito. Divida em dois momentos distintos, no Verão de 1973, isto é, após 10 anos de combate e quase no fim da guerra colonial, e depois no Inverno de 1975, já depois da independência, no primeiro caso surge “Guiné Portuguesa” e no segundo “Guiné Bissau”. A transformação do nome significa muito no plano político. Mas como é que isso se traduz no livro? Traduz-se na pele e na violência da vida do protagonista, o qual terá a terrível oportunidade de ser marcada nas duas faces. Por que Pátria se bate ele? Que “honra” há na mortandade? Que glória o espera? Ele acaba por se tornar numa metonímia do sofrimento (de parte) do povo que poderá representar…



Mas o sumo está no aparente quotidiano que cria a matéria que se adensa para depois ser melhor derrubada. A camaradagem da soldadesca, as conversas nostálgicas, os desejos masculinos amarrados a fantasias quando estão ainda mais presos ao mato e ao conflito. Os diálogos têm um ligeiro sabor de estranheza, pela forma como são marcados pelo calão da época.

Se a estrutura narrativa é clássica-moderna, com a sua tripartição cronológica, a intriga é algo indecisa sobre a inscrição em termos de género. Não é totalmente realista, muito menos documental, mas tampouco realista mágica nem abraça totalmente o maravilhoso. A sua ambivalência, parece-nos, é mais acidental do que planeada.

Em muitos aspectos, Filhos do Rato é devedor de uma estética que encontrou na primeira Vertigo, de Karen Berger, um seu ponto alto: histórias sobre acontecimentos reais, históricos ou verosímeis com um qualquer grão de imponderabilidade fantástica, aterradora mesmo, exercendo o seu peso nos sentimentos mais negros da humanidade, face aos crimes que ela própria consegue perpetrar contra si mesma. Delano e Ennis na linha da frente, em termos de argumentos em torno do género da guerra.

Mas também no plano visual existem afinidades. A arte de Fábio Veras também habita um território que será familiar aos leitores daquele selo editorial. Uma figuração entre o estilizado e suave em certos momentos, com pontos mais realistas e depois desvios brutos gráficos à la Sienkiewicz ou Kyle Baker aqui e ali, aumentando as potencialidades expressivas. O autor insiste num preto e branco de alto contraste, e um segundo cinzento para peso e dimensão, mas em sequências-chave, lança mão a escolhas cromáticas, limitadas mas efectivas. Como se fossem relâmpagos: súbitos, iluminadores, mas nem sempre revelando algo que se queira guardar na memória.

Aliás, o uso do preto e branco é aqui não apenas escolha (ou até necessidade), mas torna-se plataforma de significado claro. No momento de entrada na acção dos protagonistas, o soldado negro fala com balões preenchidos a preto em contraste com os do soldado branco, com balões a branco (diria mesmo “normais”, se o uso dessa palavra, aqui neste contexto, não sublinhasse por demais precisamente o problema de ver na “normalidade” um sinal de “normatividade” contra a qual qualquer outro uso é visto como “excessivo”, “errado”, “desviante”, etc.).

A história deste volume apresenta-se finita, no seu sentido narrativo. Mas na representação, teme-se, talvez possa ser infinito.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

3 comentários:

The Original Zhang disse...

Este texto está melhor escrito que o livro todo.

Bastante mais eloquente que o argumentista da história.

Ao menos, um chinês de Telheiras tenta compensar,

metendo umas piadas secas para vender o peixe.

Pena que não resultam.

Anónimo disse...

realmente tudo isto é triste, um autor que não acredita no seu trabalho, que é realmente medíocre e um crítico a vender esse peixe...

Serhat Son disse...

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