Nota inicial: O texto seguinte é algo distinto da prática deste espaço. Não sendo a primeira vez que escrevemos um texto a meias, ou contamos com uma presença "de fora" do lerbd, a estrutura deste post é inédita aqui. O que se segue é uma crítica sob a forma de um diálogo entre nós e Gabriel Martins, que alimenta o seu próprio blog, Alternative Prison, e escreve regularmente para a deusmelivro.com. Apesar de ter sido um diálogo levado a cabo durante algum tempo ao vivo, não estávamos a encontrar forma de dar a lume a sua estrutura, pelo que se resolveu reconstruir as mesmas ideias esgrimidas numa forma textual, entre o discurso costumeiro deste espaço e uma abordagem mais espontânea. (Mais)
Pedro
Moura:
Não é a melhor ideia começarmos uma leitura de um livro por
simples comparações, mas tendo em vista a atenção
desproporcionada que a série anterior teve, é natural que o
façamos. Considero Os
Vampiros
um
livro que mantém uma natureza dual com o trabalho anterior da
mesma equipa de Filipe Melo e Juan Cavia. Por um lado, este volume
intenta um género bem diferente, um tom mais grave e um tratamento
mais sério do seu tema e personagens, que não é de admirar. Mas
por outro, não deixa ainda de demonstrar dever muito às estruturas
cinematográficas. Se Pizzaboy
era
uma espécie de colagem de referências, com um intuito de humor e
pastiche,
temos aqui a articulação de uma intriga centralizada quase que
pré-preparada e implantada num contexto realista e histórico. Em
termos de estrutura narrativa, seja como for, é um projecto mais
sólido.
Gabriel
Martins:
A bd enquanto ofício é ainda algo recente na vida do autor Filipe
Melo. Ao olharmos para o seu corpo de trabalho compreendemos que o
cinema sempre foi uma influência superior. Nesse sentido não surge
como uma surpresa que a estrutura de
Vampiros
ainda
deva muito à estrutura de um filme de acção/horror, indo beber aos
géneros de predilecção deste autor. De qualquer das formas,
importa notar a ambição desta dupla em avançar para um projecto de
maior envergadura, seja pela seriedade do tema ou pela
contextualização histórica. No final temos um livro mais maduro, o
que se traduz numa evolução para a dupla Melo e Cavia.
PM:
Sim, mas não deixa de haver precisamente uma estrutura que está
demasiado presa, a meu ver, a algumas fórmulas consabidas. A ideia
de um comando numa missão arriscada e que depois, paulatinamente,
vai sofrendo. Temos em Portugal o exemplo do Mamassuma,
de Vassalo Miranda (de 1977, e ao qual gostaria de regressar a
propósito da contextualização na Guerra Colonial); a estrutura de
"subida" do Apocalipse
Now,
etc. Além do mais, o cruzamento da ficção militar com o terror ou
o fantástico foi também experimentado algumas vezes. Lembro-me de
uma bd algo obscura e negligenciável intitulada The
Lost Squad,
de C. Kirby e A. Robinson, ou do magnífico filme R-Point,
de Kong Su-Chang (2004), sobre um comando coreano no Vietname em
busca de um outro esquadrão, etc. Isto não diminui de forma alguma
as especificidades de Vampiros,
mas contextualiza-o numa linha bastante mais alargada de referências
irmanáveis, que não tenho visto sequer aventado noutras abordagens
a este livro. Por outras palavras, é menos surpreendente a estrutura
geral em si do que os pequenos tratamentos individuais das
personagens.
Claro
que, ao contrário de Pizzaboy,
que é antes uma espécie de colagem de citações e pastiche,
Vampiros
não
cai nos géneros patéticos de "horror exploitation". Há
um claro desejo em criar uma atitude séria e elaborada sobre a
guerra, por exemplo, ainda que pelo filtro do fantástico (daí a
referência a R-Point).
Dito isto, poderíamos desde já considerar as personagens elas
mesmas, que são todas alvo de uma construção psicológica
"problemática", como se fosse necessário para tornar a
história mais empolgante serem todos meio-chanfrados.
GM:
A
estrutura da narrativa une, a meu ver, dois modelos. O primeiro é o
do grupo de personagens que é mais numeroso no início da narrativa
do que no final - vamos perdendo-os à medida que o enredo avança -,
enquanto o outro é o do cerco, ou seja, quando temos os
protagonistas confinados num determinado espaço a serem atacados.
Estes modelos são tipicamente usados nos géneros que mencionas e
têm sido especialmente populares no cinema. Aliás, quando falei em
influências cinematográficas, estava a considerar algo mais
generalista e não só a ficção militar. O Rio
Bravo
e
o Assalto
à 13º Esquadra
são
dois bons exemplos do filme de cerco, enquanto filmes como Predador
ou
Alien
2
seguem
o primeiro modelo que descrevi. Nada disto tem, como bem disseste, de
diminuir as especificidades desta história.
PM:
Eu até diria que a escrita dos Vampiros,
assim como a do Pizzaboy,
segue o “método Tarantino”. O conhecimento enciclopédico e
entusiasta de toda uma série de filmes de determinados géneros leva
a que se criem ideias concretas de “cenas”, que também vivem da
sua natureza de citações, mecânicas, estruturas narrativas, etc.,
e depois são ligadas entre si numa estrutura maior. É um método
válido, como é óbvio, mas quando essa estrutura se torna clara, a
organicidade do todo começa a sofrer. O facto de que estamos a
insistir na esfera cinematográfica, mais do que na da banda
desenhada, pode igualmente sublinhar a ausência de especificidades
deste território.
GM:
É verdade e, curiosamente, o Tarantino também tem fantasiado com a
História nos seus mais recentes projectos, no caso do Inglorious
Basterds até
chega a criar um universo paralelo para os eventos da 2ª Guerra
Mundial.
Porém,
mais interessante que a estrutura elaborada, são de facto os
tratamentos individuais dados às personagens e nota-se que existiu
atenção à construção psicológica de cada uma. Em relação a
essa construção uma das ideias que os autores parecem querer
demonstrar é a de que existe um grau de loucura associado a cada
personagem que é directamente proporcional ao tempo de serviço que
têm na guerra. Por isso não diria que todas as personagens são,
pelo menos a início, meio-chanfradas, como é o caso do médico, a
personagem mais inocente na história que vai tendo dificuldades em
suportar tudo aquilo a que assiste. No final podemos dizer que sim,
acabam todos diferentes, mas esse é o grande tema do livro, o de que
a pessoa que entra numa guerra, nunca é a mesma que a que sai.
PM:
Certo, mas parece-me que essa dimensão é posta de chapa. É esse o
tema afinal do livro. Nada de surpresas. O facto de ser a época
festiva de Natal e final do ano, para depois erguer aí este “inferno
privado” ou “apocalipse” apenas reforça essa mesma ideia. Há
uma tentativa, até certo ponto curiosa e bem gerida, de ter vários
representantes, digamos assim, de personagens-tipo dos portugueses,
para depois explorar esses graus de exposição, sofrimento e trauma,
mas não deixa de estar tudo subsumido a essa fórmula narrativa em
que estamos a insistir. Além do mais, a ideia de que a redenção
não é possível resulta em algo muito dramático, é verdade, mas
não permite uma saída. Não espero de forma algum um elogio à
guerra ou ao militarismo (e ainda bem), mas gostava de compreender
que existiria um espectro mais complexo de envolvimento nessas
acções. Enfim, Os
Vampiros
não
deixa de apresentar uma natureza linear e plenamente integrada num
programa narrativo, em que o excesso da expressão não está
presente, ou foi excisado em nome de uma intriga, um propósito.
GM:
De
acordo, o tema central do livro é claro desde o início e a trama
trabalha-o de forma linear. Mais do que mergulhar nos meandros
psicológicos da guerra o que o livro faz melhor é criar situações
de suspense, apoiadas em algum misticismo, o que vai de acordo com a
criação do ambiente empolgante que mencionaste. No fundo Vampiros
não
deixa de ser um livro de aventuras, simplesmente um que tem como pano
de fundo a guerra colonial. Para quem procura uma história mais
multidimensional ou até realista sobre diferentes facetas da guerra
não a vai encontrar, no entanto, os autores parecem-me triunfantes
naquilo a que se propuseram fazer, esta não deixa de ser uma das
melhores propostas que temos tido dentro do género de acção. Ainda
que este não seja um livro com uma grande dimensão histórica da
guerra colonial, aproveito para constatar o facto de que este
fantasma do passado é um ainda pouco confrontado, no campo da bd:
devem-se contar pelos dedos de uma mão os livros que abordem esta
parte da nossa história. Se falássemos da guerra em geral, já não
seria o caso, ainda no ano passado o David Soares criou uma narrativa
muito densa sobre os efeitos deste “monstro” em O poema morre,
mas estando a falar de histórias tão distintas, não faz sentido
estar a compará-las. Mesmo assim, ainda que seja óbvia e até
clássica (no sentido que é tão comum quando se aborda a guerra),
não deixa de existir uma mensagem que tem a sua relevância e
discordo que a redenção não seja apresentada como algo possível.
Não é a última página uma imagem de redenção? Em relação às
personagens, parecem-me adequadas para o tipo de narrativa criado
aqui. São indivíduos bem distintos, focam diferentes características psicológicas e sentem-se como personagens
portuguesas.
PM:
Não
estou seguro se essa última imagem é de redenção. Essa
interpretação é perfeitamente possível, ao percebemos a
identidade entre ambas as personagens, como se representassem dois
lados opostos, de forma absoluta, dicotómica e maniqueísta - isso é
sublinhado, ao mesmo tempo que os seus traços de comunidade
possíveis, claro -, o gosto que os une, etc. Mas acima de tudo, a
mim parece-me ser tão-somente uma fuga em frente na irresolução
dos eventos, o que é perfeita e precisamente apropriado num livro de
contornos de fantasia, horror, etc.
Quanto
à questão da Guerra Colonial, também não compreendo algumas
ideias que vi veiculadas na sua recepção. Não é, de facto, um
contexto suficientemente importante ou explorado na banda desenhada
portuguesa para pensar nele como um “campo temático”. Logo, não
há grandes termos de comparação. Com a excepção do trabalho de
Vassalo Miranda, a solo ou em companhia, que trabalha sobre um fundo
mais realista e politicamente mais comprometido com uma perspectiva
problemática (não iria ao ponto de chamar “colonialista” tout
court,
mas pelo menos afecta a uma ideia de império nacional, unido na
comunidade linguística, nacional, cultural, etc.), há apenas um
punhado de histórias curtas ou menções de raspão em obras maiores
na contemporaneidade. O caso mais recente foi o Cinzas
da Revolta,
de Miguel Peres e João Amaral, mas que tomba na mesma problemática
de ser um “filme à americana” transposto de forma superficial
para o contexto histórico. Vampiros,
nesse aspecto, é mais ancorado e narrativamente mais coeso, coerente
e concentrado. Seria mais interessante pensar num contexto mais
alargado de bandas desenhadas portuguesas que são capazes de
repensar a história e o nosso papel de leitores, espectadores e
“participantes por delegação” desses episódios: As
pombinhas do Senhor Leitão,
de Miguel Rocha, Salazar, de João Paulo Cotrim e Rocha, As
paredes têm ouvidos, de G. Fratini, entre uns quantos outros. Pergunto-me se Vampiros
cumpre
esse papel.
Esta
não é necessariamente uma dimensão empobrecedora do livro. O que
penso é que apresentá-lo como sendo um livro “sobre a Guerra
Colonial” apenas aponta para a sua contextualização e elementos
mecânicos de referencialidade. Se nos abstrairmos de questões
superficiais de fardas, armas, equipamento e a mão-cheia de
referências que vão sendo espalhadas ao longo do texto, para
recordar de quando e de onde se está a falar, Vampiros
poderia
ser transposto para outro qualquer contexto com cosméticas simples
(uma operação que, de resto, é costumeira num certo patamar de
produção cinematográfica, em que as reescritas estão à mercê de
decisões de produção, e menos de criação). Quero dizer com isto
que gostaria de ter visto especificidades culturais mais profundas a
operarem nesta história, sem ser as alcunhas (“Totobola” é
particularmente divertido), as insígnias, o equipamento, etc. Mas lá
está, o propósito de Vampiros
é
o de contar esta história, não o de repensar a nossa relação com
a Guerra Colonial. Todavia, parece-me que a sua recepção insiste
mais nessa dimensão sem a problematizar, contextualizar (mormente no
mundo da banda desenhada, e já nem falo de pensar na sua coordenação
com os romances, poesia, cinema, teatro, televisão em torno da
matéria) ou sequer compreender. O “pacto de silêncio” que
apenas agora se começa a quebrar, sobretudo os diálogos
intergeracionais entre quem fez a guerra e os seus filhos (a minha
geração), demora quase sempre umas décadas, e chegámos ao
momento.
Dito
isto, compreendo a necessidade de ficcionalizar a nossa história,
tornando-a matéria passível de transformações subsumidas a
géneros, a emoções fortes pelo “manto diáfano da fantasia”, e
nesse aspecto Os
Vampiros
cumpre
tal papel de modo preciso.
GM:
Não
estou de acordo que a última página seja uma fuga, é certo que uma
reconciliação entre aquelas personagens não funcionará como uma
reconciliação na guerra, mas é apresentada essa dinâmica. Claro
que é sublinhado que as personagens representam os lados opostos, ao
mesmo tempo que nos mostram que os soldados de cada lado não são
assim tão diferentes uns dos outros. É precisamente por teres isso
tão vincado que me parece muito propositado mostrar a possibilidade
de encerrar esse ciclo de violência que é continuamente perpetuado.
Mas
concordo que é uma história que poderia facilmente decorrer durante
uma outra guerra qualquer, o tema é abrangente o suficiente e não
apresenta uma contextualização que o prenda muito a este período,
ainda que a escolha seja perfeitamente legítima e até lógica.
Claro que, neste sentido, estamos a falar de um livro que se situa
num campo oposto de um Salazar,
em que Cotrim e Rocha desmistificaram o mito da personalidade do
ditador, numa abordagem realista, e o Vampiros
não
é isso, entra noutra categoria. Em relação à forma como tem sido
vendido, estás a referir-te à comunicação social?
PM:
Sim, por isso falei de desproporcionalidade no início. A forma
hiperbólica como os livros têm sido recebidos não se podem
explicar somente pela “qualidade” dos livros, mas antes por uma
gestão eficiente da projecção mediática, que é tão válida como
outra estratégia qualquer. O que mais me surpreende é que haja um
meio supostamente conhecedor da banda desenhada que leve as coisas a
face
value,
e não as integre em contextos mais alargados para tentar compreender
com efeito o que haveria de específico nessa obra, e depois afirmem
que “a banda desenhada portuguesa nunca mais será a mesma”. Em
que sentido é que isso ocorre? As formas de produção? Não me
parece que tenha havido transformações. Em termos de abertura da
parte de editoras literárias e/ou generalistas a mais projectos de
banda desenhada? Penso que a ignorância nesse campo se manterá por
mais tempo. Pela bitola da qualidade artística e literária das
obras que vieram mostrar novos caminhos? Isso teriam que me explicar
por miúdos... Ou será apenas porque é uma obra que satisfaz uma
expécie de expectativa juvenil e preenche esses pontos todos?
Repare-se
que se Pizzaboy
tivesse
saído de facto pela Dark Horse e não fosse por um autor português,
provavelmente diluír-se-ia (pela parte de Portugal, digo) em toda
uma série de outras produções mais ou menos análogas (monstros e
nazis, afinal, há bastantes, começando em Hellboy,
bitola máxima). É claro que a projecção internacional de um
projecto português é sempre uma boa notícia em termos gerais, mas
não vi nenhuma comparação, por exemplo, com autores que haviam
conquistado espaços dessa natureza, como o Rui Lacas, o André Lima
Araújo, o Filipe Abranches, o Pedro Brito e o João Fazenda, etc.,
por mérito próprio, convites directos, pelo esforço dos editores
ou até graças a políticas de divulgação internacional da parte
do estado, como os apoios da DGLB, que ajudou à publicação
norte-americana. Ou seja, não posso deixar de compreender que parte
do “sucesso” se deve à fasquia “média” e costumeira da
banda desenhada de haver mais entusiasmo por projectos comerciais do
mainstream do que por obras que são ligeiramente mais desenvoltas no
que diz à linguagem da banda desenhada, ou a temas mais
fracturantes, difíceis e maduros. Mas, repito, estou aqui a falar da
recepção mediática, que é um factor importantíssimo para a
projecção de um livro. Nesse campo, Filipe Melo é um profissional
como poucos. Penso é que devemos usar os instrumentos críticos de
forma equilibrada, e não suspendê-los só para sustentar o “gosto
médio”.
GM:
Se não estou errado a razão principal para termos esta conversa
prende-se com o interesse que ambos partilhamos em falar deste livro
por aquilo que realmente é, enquanto um produto artístico de BD,
tentando afastar-nos deste manto de mediatismo que o persegue, seja
positivo ou negativo. Dito isto, é algo que também merece ser
discutido. Concordando com a tua primeira frase, vou começar por
dizer que é igualmente válido o contrário, ou seja, é certo que a
projecção que o Filipe Melo tem ajuda na promoção do livro,
porém, seria suficiente para sustentar um livro que não tivesse
qualidades? Neste caso acho que não, que a boa recepção ao livro
também se deve a uma genuína apreciação por parte do público. Em
relação ao Filipe Melo, de facto, considero-o um orador nato, ao
assistirmos às suas apresentações é fácil perceber que é alguém
que cativa, é um mérito seu, aliás se ele se tornou uma figura
conhecida o mérito é inteiramente dele e não deve ser penalizado
por isso. O problema maior na frase que citas é que sem qualquer
justificação apenas demonstra uma enorme falta de conhecimento em
torno da banda desenhada nacional, seja em termos de trabalhos ou
editoriais, ou seja, o problema aqui nem está relacionado com as
qualidades ou defeitos do Vampiros.
Estamos
a falar de uma suposta crítica especializada, que se não tem
conhecimentos mínimos sobre os nossos autores então não deve tecer
afirmações tão absolutas. Claro que estou a assumir que existe
esse desconhecimento, aliás prefiro que se trate disso ao invés de
um outro cenário possível que é o do desprezo consciente pelo
trabalho de tantos autores como o João Paulo Cotrim, o Miguel Rocha,
a Ana Cortesão, o Filipe Abranches ou o José Carlos Fernandes,
entre tantos outros. Mesmo focando-nos em autores da actualidade, o
Francisco Sousa Lobo é um autor que tem tido uma boa projecção
internacional, com o seu Desenhador
Defunto
a
ser considerado um dos melhores livros de 2013 pelo crítico Paul
Gravett. Claro que estamos a falar de trabalhos mais densos e
complexos, o que parecem tornar Sousa Lobo um autor mais esquecido
pela crítica em geral. Concluindo esta parte, não me faz sentido
tecer comparações exacerbadas ou injustificadas, quando a
amostragem de livros nacionais à qual se devem estar a referenciar
não é significativa ou então estão só a cingir-se a um
determinado género (seria mais compreensível), mas nesse caso há
que especificar, há que explicar tamanhas afirmações e não
escrevê-las só porque causam um forte impacto sonoro. Ainda em
relação à produção nacional não prevejo alterações
significativas, pelo menos, relacionadas com um aumento de publicação
de outros autores.
Quanto
à projecção de autores publicados internacionalmente, acho que
aqueles que têm vindo a desenvolver trabalhos para editoras
norte-americanas têm tido bastante, já os outros não tanto. Só
que no caso de um Filipe Andrade, André Lima Araújo ou Jorge
Coelho, a projecção é muito direccionada ao público que lê bd,
enquanto o Filipe Melo, graças ao seu currículo, consegue alcançar
uma fatia maior de pessoas. É também verdade que livros mais
desenvoltos podem não cativar tanto público, não é nenhuma
novidade nem tão pouco algo específico da bd, só que em relação
à comunicação social, pelo menos à componente crítica, esperaria
mais.
Passando
agora para a componente visual, trata-se de um livro que à
semelhança do Dog
Mendonça
volta
a optar por uma capa simples, neste caso até pode não ser tão
minimalista, pois contém um desenho, mas não deixa de ser uma capa
contida, misteriosa. O que me parece que funciona bastante bem, fica
sempre uma aura de curiosidade quando o livro nos é apresentado pela
primeira vez. No interior, a maior mudança está na cor, uma vez que
o Juan Cavia mantém o mesmo estilo que lhe conhecemos dos seus
trabalhos anteriores com o Filipe Melo, ou seja, aquele traço muito
recto e bem carregado. Desta vez temos Juan Cavia e Sandro Pacucci em
vez de Santiago Villa a colorir esta história, que nos trouxeram uma
paleta de cores mais terrenas e menos brilhantes do que em Dog
Mendonça,
uma escolha que faz mais sentido aqui, tendo em conta o cenário de
guerra. Em termos de planificação temos alguns momentos bem
geridos, nomeadamente em torno da utilização dos “vampiros”, no
entanto, é uma planificação cuja influência do cinema se volta a
sentir, no sentido em que ao lermos este livro podíamos estar
perante um storyboard de um futuro filme, existe até uma certa
linearidade na sua composição, onde as ferramentas da linguagem da
bd podiam ser melhor exploradas. Aliás, se mencionámos as
influências cinematográficas do argumentista, a verdade é que Juan
Cavia não lhe fica atrás, contando no seu currículo com o
oscarizado O
Segredo Dos Seus Olhos,
filme no qual trabalhou no departamento de arte, entre outros. É
muito plausível que estes dois autores tenham encontrado na bd um
outro veículo para contar as suas histórias, um que certamente
apresentará orçamentos mais simpáticos, infelizmente a mesma
simpatia não se manterá é nas receitas.
PM:
Em termos visuais, não fico particularmente surpreendido. A
figuração de Cavia é algo angulosa, exagerada e melodramática
para sustentar a parte de leão desta narrativa. Se o seu estilo
caricaturizado e hiperbólico funciona melhor num propósito cómico
como Pizzaboy,
parece-me algo deslocado aqui. Por vezes, parecem devedoras do
catálogo de expressões faciais da Pixar. O desenho, digamos assim,
é “suficiente”, representando aquilo que é necessário mostrar
na acção, mas por isso mesmo nunca alcança aquele excesso estético
que esperamos em abordagens mais desenvoltas. Quanto às cores,
entendo o que dizes, e até concordaria até certo ponto,
compreendendo a natureza do projecto, mas na minha opinião a
colorização vem “apagar” até alguma da clareza dos traços.
Uma vez que tive oportunidade de ver a arte original no Festival de
Beja, podemos igualmente constatar que a cor é menos empregue para
salientar as qualidades do desenho, salientar objectos ou tornar
algumas acções claras, mas apenas criar uma patina homogénea ao
longo da história. E se a “escuridão” faz sentido nos momentos
mais dramáticos, noutros é menos feliz. Basta comparar a luz das
cenas diurnas e exteriores com aquelas iluminadas no interior (a
luzes fluorescentes), ou entender que a escolha de fundos negros para
as pranchas é contínua.
É como se em vez de se gerir uma modelação das emoções, tensões, inclusive visuais e compositivas (com a excepção de uma cena “cinematográfica” ou outra, sobretudo as partes não-naturais, a composição de página é muito elementar, evidente), se carregasse sempre num efeito, o que lhe retirará a eficácia óptima.
Mas enquanto "livro de aventuras", como disseste, essa optimização dos elementos é eficiente.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume; a Gabriel Martins, por ter aceite esta colaboração, e aos três As., pelas várias discussões.
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