A propósito do fanzine Deathgrind, de Zé Burnay, citáramos uma entrevista a Fernando Ribeiro, em que o vocalista
dos Moonspell havia descrito muita da imagética associada ao heavy metal em geral como sendo uma
“fantasia dos fracos”. Esse outro autor transformava muita dessa iconografia em
elementos passíveis de transformações narrativas, usando e abusando de géneros
para criar scherzos de alta octanagem
e dinâmica narrativa. Até certo ponto, existem largas linhas de afinidades com
esta publicação, mas o trabalho de André Coelho trilha de outras maneiras. (Mais)
Iconolatry é uma
colecção de vários trabalhos do co-autor de Terminal Tower e Sepultura dos pais, que o
mesmo tem desenvolvido há mais de dez anos para as mais diversas clientelas, quase
sempre associadas a vários ramos da produção musical cujo adjectivo central
será o do “metal”, se bem que possa ter as mais diversas roupagens e variações:
death, black, grind, post, viking, sludge, doom, sabemos lá quantos matizes
existirão. Confessemos desde já que é tamanha a ignorância neste campo e
capacidade de acompanhamento [como aliás se demonstrou pela necessidade de correcção de algumas informações], que de todas as bandas mostradas, apenas
reconhecíamos umas três, sendo uma delas já uma instituição nacional (os
Holocausto Canibal) e outra a do agrupamento de que o próprio autor é membro, os
Sektor 304. Os “clientes” arrolados nesta pequena publicação abarcam desde os
vários festivais de referência destes ramos no nosso país, desde o SWR
Barroselas ao Amplifest, ou o Santa Maria Summer Fest (nenhum
dos quais com direito a cobertura nas televisões), até companhias de t-shirts
como a Mosher Heavy, finalmente, locais de concertos ao vivo de
portas abertas, especializadas ou não, à família das mais variadas bandas, com
locais como o Hard Club, a Fábrica do Som, O meu mercedes é maior que o teu,
entre outros.
Aquela ideia inicial da fantasia está patente em muita da
iconografia agregada nos desenhos de Coelho, que os torna com efeito em
composições icónicas dignas de um qualquer culto: a procissão de seres
distorcidos por intuitos maléficos, monstruosidades carnais, cruzamentos de animais,
sobretudo bodes ou criaturas com cornos e hastes, caveiras expostas, corpos
sensuais de mulheres em vários estados de excitação e decomposição, quando não
um encontro de ambas as situações, são alguns elementos. Mas não faltam
personagens saídas de imaginários clássicos à la Tolkien e/ou E. Howard, com
druidas e guerreiros, reis celtas e demónios pagãos, espadas de dois gumes e runas,
cálices sagrados e instrumentos de destruição lenta e dolorosa.
Uma vez que a esmagadora maioria do trabalho é para posters,
t-shirts e arte promocional de projectos musicais, não admira que haja uma
grande centralidade das figuras principais, e regras de composição que se
tornam algo repetitivas e até expectáveis. Mas como reza a famosa frase, “Deus
está no detalhe”, mesmo que seja um deus demoníaco e cuja musicalidade seja
mais sincopada, to say the least. E o
que importa notar é, por exemplo, quando há oportunidade, a forma contida e
elegante com que André Coelho faz distribuir a cor em famílias limitadas
(veja-se a capa, ou as “cartas de Tarot”), o paciente trabalho de burilar as
texturas e pormenores através de tramas e um solidificadíssimo e atento engenho
na observação, anatomia e exactidão, mesmo que depois para as distorções
consabidas e mesmo a maneira de, tantas vezes, criar redes de humor e/ou
citações. Apesar da tal limitação de espaço, faz imaginar o que seria se
vivêssemos ainda no tempo áureo das capas e materiais que acompanhavam os LPs,
em que Derek Riggs (aliás, em um ou outro momento deste volume, as referências
a “Eddie” são distintas), Doug Johnson e Roger Dean espraiavam os seus imaginários,
associados ao poder musical do que carregavam.
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Com a atenção para com a ignorância que assinalámos acima,
experiências mais recentes neste território é a capa de Altar, colaboração entre os Sunn O))) e os Boris, feita pelo
artista Aaron Horkey (infelizmente, o conteúdo musical é particularmente
decepcionante para quem esperaria algo mais coriscante e urticante). No
entanto, diríamos que tal como Horkey, Coelho e outros artistas estão mais
próximos de uma rendição gráfica que pictórica, insistindo mais na linha e em
zonas de cor decididas e planas, do que na fabricação de ilusões naturalistas
(como Riggs e Dean, ou o contemporâneo Ola Larsson, que ilustrou a
lovecraftiana capa de Gateway to the
Antisphere, dos Sulphur Aeon). Artistas como Lucas Ruggieri e Costin Chioreanu
têm alimentado a tradição, bebendo ao mesmo tempo de linguagens ainda mais
vetustas, e de disciplinas como as gravuras tardo-medievais, a que Coelho
também é devedor nalgumas das suas linhas, se bem que é nos cruzamentos entre
figuras orgânicas e intromissões tecno-industriais que as suas melhores imagens
emergem.
Iconolatry,
portanto, enquanto procissão de uma portentosa produção e tradição imagética, é
a um só tempo devota e intensa.
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