28 de julho de 2016

Iconolatry. André Coelho (Universal Tongue)

A propósito do fanzine Deathgrind, de Zé Burnay, citáramos uma entrevista a Fernando Ribeiro, em que o vocalista dos Moonspell havia descrito muita da imagética associada ao heavy metal em geral como sendo uma “fantasia dos fracos”. Esse outro autor transformava muita dessa iconografia em elementos passíveis de transformações narrativas, usando e abusando de géneros para criar scherzos de alta octanagem e dinâmica narrativa. Até certo ponto, existem largas linhas de afinidades com esta publicação, mas o trabalho de André Coelho trilha de outras maneiras. (Mais)
Iconolatry é uma colecção de vários trabalhos do co-autor de Terminal Tower e Sepultura dos pais, que o mesmo tem desenvolvido há mais de dez anos para as mais diversas clientelas, quase sempre associadas a vários ramos da produção musical cujo adjectivo central será o do “metal”, se bem que possa ter as mais diversas roupagens e variações: death, black, grind, post, viking, sludge, doom, sabemos lá quantos matizes existirão. Confessemos desde já que é tamanha a ignorância neste campo e capacidade de acompanhamento [como aliás se demonstrou pela necessidade de correcção de algumas informações], que de todas as bandas mostradas, apenas reconhecíamos umas três, sendo uma delas já uma instituição nacional (os Holocausto Canibal) e outra a do agrupamento de que o próprio autor é membro, os Sektor 304. Os “clientes” arrolados nesta pequena publicação abarcam desde os vários festivais de referência destes ramos no nosso país, desde o SWR Barroselas ao Amplifest, ou o Santa Maria Summer Fest (nenhum dos quais com direito a cobertura nas televisões), até companhias de t-shirts como a Mosher Heavy, finalmente, locais de concertos ao vivo de portas abertas, especializadas ou não, à família das mais variadas bandas, com locais como o Hard Club, a Fábrica do Som, O meu mercedes é maior que o teu, entre outros.

Aquela ideia inicial da fantasia está patente em muita da iconografia agregada nos desenhos de Coelho, que os torna com efeito em composições icónicas dignas de um qualquer culto: a procissão de seres distorcidos por intuitos maléficos, monstruosidades carnais, cruzamentos de animais, sobretudo bodes ou criaturas com cornos e hastes, caveiras expostas, corpos sensuais de mulheres em vários estados de excitação e decomposição, quando não um encontro de ambas as situações, são alguns elementos. Mas não faltam personagens saídas de imaginários clássicos à la Tolkien e/ou E. Howard, com druidas e guerreiros, reis celtas e demónios pagãos, espadas de dois gumes e runas, cálices sagrados e instrumentos de destruição lenta e dolorosa.

Uma vez que a esmagadora maioria do trabalho é para posters, t-shirts e arte promocional de projectos musicais, não admira que haja uma grande centralidade das figuras principais, e regras de composição que se tornam algo repetitivas e até expectáveis. Mas como reza a famosa frase, “Deus está no detalhe”, mesmo que seja um deus demoníaco e cuja musicalidade seja mais sincopada, to say the least. E o que importa notar é, por exemplo, quando há oportunidade, a forma contida e elegante com que André Coelho faz distribuir a cor em famílias limitadas (veja-se a capa, ou as “cartas de Tarot”), o paciente trabalho de burilar as texturas e pormenores através de tramas e um solidificadíssimo e atento engenho na observação, anatomia e exactidão, mesmo que depois para as distorções consabidas e mesmo a maneira de, tantas vezes, criar redes de humor e/ou citações. Apesar da tal limitação de espaço, faz imaginar o que seria se vivêssemos ainda no tempo áureo das capas e materiais que acompanhavam os LPs, em que Derek Riggs (aliás, em um ou outro momento deste volume, as referências a “Eddie” são distintas), Doug Johnson e Roger Dean espraiavam os seus imaginários, associados ao poder musical do que carregavam.

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Com a atenção para com a ignorância que assinalámos acima, experiências mais recentes neste território é a capa de Altar, colaboração entre os Sunn O))) e os Boris, feita pelo artista Aaron Horkey (infelizmente, o conteúdo musical é particularmente decepcionante para quem esperaria algo mais coriscante e urticante). No entanto, diríamos que tal como Horkey, Coelho e outros artistas estão mais próximos de uma rendição gráfica que pictórica, insistindo mais na linha e em zonas de cor decididas e planas, do que na fabricação de ilusões naturalistas (como Riggs e Dean, ou o contemporâneo Ola Larsson, que ilustrou a lovecraftiana capa de Gateway to the Antisphere, dos Sulphur Aeon). Artistas como Lucas Ruggieri e Costin Chioreanu têm alimentado a tradição, bebendo ao mesmo tempo de linguagens ainda mais vetustas, e de disciplinas como as gravuras tardo-medievais, a que Coelho também é devedor nalgumas das suas linhas, se bem que é nos cruzamentos entre figuras orgânicas e intromissões tecno-industriais que as suas melhores imagens emergem.


Iconolatry, portanto, enquanto procissão de uma portentosa produção e tradição imagética, é a um só tempo devota e intensa. 

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