Depois da recepção significativa de
El arte de volar, e a sua integração na exposição sobre
autobiografia no FIBDA, é natural que tenha surgido uma atenção
maior para com o trabalho de Altarriba, que se havia nutrido
sobretudo num círculo mais restrito literário, e no que diz
respeito àquele relacionado com a banda desenhada, apenas numa
esfera académica (Altarriba é também um investigador do campo) ou
de experiências literárias afectas, como foi o caso do livro “proibido” sobre Tintin. A publicação em português deste
volume vem juntar-se a dois outros volumes saídos nas duas colecções
Novelas Gráficas, da Levoir, com A arte de voar no ano
passado e o volume que sairá em Setembro. Todavia, se esses dois
outros títulos são estritamente do campo autobiográfico, mesmo que
expandido tocando as vidas dos pais, respectivamente, Eu,
assassino procura explorar uma outra maneira de fazer implicar o
eu, que não através do programa clássico da confusão entre
narrador, protagonista e autor. (Mais)
Este álbum, de 130 pranchas,
estende-se em torno da prática do assassinato como uma forma de
arte, recuperando de forma indelével o famoso ensaio de De Quincey
(de 1827). Mas onde o autor inglês procurava inscrever-se numa
vetusta tradição do ensaio satírico, à qual se poderia juntar
Sterne e Orwell, ou mesmo Sade, de uma forma diferente, Altarriba e
Keko criam um mecanismo de maior dramatismo, glauco, e associado de
modo directo às práticas contemporâneas das artes visuais
(incluindo a performance, a body art, process art,
site-specific, as instalações, a land art, etc.).
Este livro na primeira pessoa coloca um professor de História de
Arte numa universidade basca, Enrique Rodríguez, a relatar a sua
vida e trabalho, sublinhando sobretudo as mortes que ele leva a cabo,
abrindo-se mesmo o livro com um assassinato improptu, como ele
próprio o proclama, de um transeunte. Essa é uma prática que ele
leva a cabo de forma secreta, obviamente, e que o próprio considera
ter uma dimensão estética acima de tudo. As mortes que ele provoca
são, portanto, uma forma de arte. Poder-se-ia dizer então que todo
o livro é mais uma espécie de manifesto que tenta explicar como é
que essa forma de arte se erige, mais do que uma concentração na
intriga narrativa da sua personagem principal.
O fascínio pelos assassinos é algo
que se estende na história da modernidade, sobretudo a partir do
momento em que uma moralidade subsumida à fé se começa a esboroar,
e como o próprio Professor Rodríguez vai explicando nas suas
paletras, que mais rapidamente admitem as preocupações absolutas da
arte, formal, técnica e sígnica nas grandes telas de um Reubens ou
de um Grünewald do que propriamente na pistis desses mesmos
autores. Quincey é apenas um desses gestos primários nessa
direcção, assim como o será o ensaio sobre o nascimento do século
XX com From Hell, de Alan Moore e Eddie Campbell ou da
volatilização da empatia em American Psycho, de B. E. Ellis.
Eu, assassino vem introduzir-se nessa linha de interrogações
sobre a crueldade humana, o sofrimento atroz nas mãos de pessoas sem
qualquer empatia, e o desvio das questões centrais em nome de um
hipotético “valor superior”. Neste caso, o da arte, entendida, a
nosso ver, como um princípio abstracto e desconexo da experiência
humana, e que por isso tão bem se coaduna com o estilo
“desapaixonado” de Keko neste projecto.
Uma vez que Antonio Altarriba é um
professor universitário e um intelectual de primeira craveira, não
é de admirar que ele introduza na trama narrativa toda uma série de
camadas ou linhas de fugas associadas à vida académica, quer no que
ela tem de novelesco e picaresco quer no que ela significa em termos
intelectuais. Desta maneira, seguimos Enrique nas funções
extra-docentes que tem de cumprir, desde a participação em júris
de dissertações, conferências e trabalhos de investigação
internacional, a direcção de uma revista científica, mas também
as cansativas reuniões de conselhos pedagógicos, administrativos e
as sempiternas “guerrinhas intestinas” de qualquer departamento,
que neste caso enrola questões quer de proeminência académica,
quer ainda de questões políticas (a luta basca) e até de tretas de
cama. Além disso, e até pela própria matéria da área de estudos
de Enrique e a sua prática de assassino “artístico”, tudo isto
leva a que se crie uma rede de citações e intertextualidade clara,
a qual é particularmente séria.
São vários os exemplos em que
encontraremos alguns livros da cultura popular a tentar citar textos
de um certo círculo intelectual, mas muitas vezes são usos
superficiais e dramáticos, despojados da seriedade original da fonte
e por vezes mesmo revelando uma falta de compreensão desses mesmos
gestos. Um exemplo máximo e recorrente é Nietzsche, e o seu
“Super-Homem”, mas pode acontecer igualmente com objectos de
arte, ficando sempre mais ou menos por um ambiente expectável. No
caso de Eu, assassino, temos uma sofisticação maior. Vemos
as capas de livros, por exemplo, de Elaine Scarry, Slavoj Zizek,
Bruno Bethelheim, o Conde de Lautréamont e o Marquês de Sade,
construindo uma complexa malha de discursos efectivamente complexos
em torno das questões abordadas ao longo do livro, prometendo ora
maior desenvolvimento delas no diálogo com esses autores ora uma
plataforma de base de onde emergiram as ideias expostas. Poderia, ou
poderá mesmo, ser visto apenas como um carpet bombing de
referências mais ou menos coadunadas à natureza do livro (seria
assim tão estranho que alguém estivesse a ler algo que nada tivesse
a ver com a trama?), mas é uma estratégia de densidade
interessante.
O mesmo se pode dizer do acesso que
vamos tendo às obras de arte estudadas ou mencionadas por Enrique
face ao seu trabalho (Grunewald, Goya, até Lucien Freud e Bacon) ou
que ele e a jovem namorada visitam por ocasião de um festival de
arte, com artistas reais como Zhang Huan e Lucy Mcrae (e não
“Macrae”), mesmo que se usem obras “falsas” (quase como
naquela colaboração entre Paul Auster e Sophie Calle, em que o
diálogo mútuo conduzia a novos gestos entre os autores), citações
a Stelarc, etc. Talvez haja leitores que se recordem do Festival
Atlântico, organizado pela galeria zdb, há quase 20 anos, por onde
passaram Orlan, Stelarc, Ron Athey, entre outros, abrindo espaço
precisamente a uma larga discussão sobre o espaço da arte na sua
intersecção com a manipulação do corpo humano, os seus limites e
o papel da dor, sofrimento, violência, como reflexo de
transformações de outras condições externas (política, economia,
etc.). Isto não é um desvio, de forma alguma, de Eu, assassino,
uma vez que Enrique vai tecendo sempre considerações sobre o seu
papel enquanto promotor destas acções, a seu ver estética, da
violência e destruição. No entanto, o autor está menos
interessado em questões do cruzamento entre a biologia e tecnologia,
o pós-humano, o transhumanismo, a body art, do que um uso do
acto de assassinato e da performance para comprovar ideias sobre a
crueldade inerente ao seu humano e uma absoluta justificação do
supremo acto egotista: tirar a vida a outrem. Arriscar-nos-íamos a
dizer mesmo que alguma da arte contemporânea se encontra aqui para
ser escarnecida ligeiramente (a piada em torno de um pseudo-Pollock é
expectável, se bem que aqui seja mais o embuste do artista hipócrita
o que é “castigado” do que a forma da action painting em
si).
Podemos imaginar então que Eu,
assassino, é uma espécie de cruzamento entre Henry, Retrato
de um assassino (de John McNaughton, 1986) e manifesto artístico.
Não há uma procura pela obscenidade gratuita dos actos violentos,
mas antes uma sua integração na forma como o protagonista os
racionaliza (mais do que “justifica”), mas ao mesmo tempo há uma
sua colocação num fluxo tranquilo da sua vida pessoal – conjugal,
amorosa, profissional, intelectual, etc. - do professor. Uma das
estratégias de criação de significado dessa implicação entre
distanciamento ficcional e aproximação não se encontra na criação
de um domínio de simpatia para com o protagonista, mas sim na forma
como o livro roça com a autobiografia. O rosto do assassino é
emprestado do próprio escritor, como se ele desejasse demonstrar que
as ficções que fazemos aos nos colocarmos do lado do redentor ou do
herói são o caminho mais curto para a criação de falsidades
dicotómicas e moralizantes. É preciso namorarmos o abismo, por
assim dizer, para o melhor evitar, talvez. Daí que ele cite (por
título talvez apenas no prefácio português?) a novela de Eça de
Queiroz, O Mandarim, na qual se coloca uma questão ética
sobre os limites da nossa própria crueldade, ainda que de forma
conservadora, moralista e religiosa-por-precaução. Todavia,
a verdade é que a questão ética tem de ser colocada antes
de tudo. Ela é basilar, tem de ser impenetrável a quaisquer
“tentações”: ou se acredita num limite inultrapassável em
relação à vida humana ou se aceita que existe um relativismo
obsceno. Que é precisamente aquilo que Enrique perpetra sem o
compreender como tal.
Apesar das considerações que o
próprio Enrique Rodríguez tece sobre os assassinos, não deixam os
autores de seguirem algumas ideias costumeiras, começando desde logo
pela inteligência e sofisticação cultural da personagem principal.
Um pouco como a personagem de Hannibal Lecter (sobretudo na
ultra-estilizada série de televisão, Hannibal), Enrique é
um homem que jamais perde o controlo das suas acções, planeia tudo
e tem conhecimentos quase enciclopédicos que utiliza nas suas
acções. Não da forma quase sobrenatural da personagem inventada
por Thomas Harris, mas dentro de uma mesma “família”. Além
disso, e apesar de algures se falarem dos “finais felizes”
necessários nas histórias para assegurar o status quo
burguês da justiça que funciona e a manutenção da segurança,
esse não é precisamente o mecanismo ficcional dos nossos dias, que
prefere antes uma vitória do mal, digamos assim, e que aqui, ainda
que modo indeciso, se aventa. Uma das maneiras como a empatia é
negada ao leitor não passa somente pelo tratamento de Enrique ele
mesmo, mas das outras personagens também, sobretudo das vítimas,
retratadas de tal como que encontramos quase justificações para as
suas mortes: a arrogância e natureza afectada do comissário
artístico Fugain ou o apagamento ontológico da funcionária do
museu, ou a total ausência de contextualização do homem degolado
na rua ou o idoso nas termas de Budapeste.
Outro aspecto algo menos feliz é a
forma como as figuras femininas são tratadas. Se existe alguma
diversidade das mulheres da vida do professor, todas elas estão
ligadas à sua valência (ou
ausência) sexual, não havendo qualquer mulher que lhe seja
um verdadeiro par intelectual. E não deixa de, pelo facto do
protagonista partilhar o rosto de Altarriba, haver aqui uma dimensão
de projecção de desejo masculino eventual do(s) autor(es). Todavia,
é preciso ter em mente que esta dimensão pode ter a ver com a
contínua construção literalmente “anti-pática” (etim.,
“contra o sentimento”) do protagonista.
O livro mostrado/citado de E. Scarry,
The Body in Pain, explora pelo discurso filosófico como a
dimensão da dor é impossível de partilhar, e como o controlo do
sofrimento pelo torturador, assassino, etc., tem a ver igualmente com
um controlo da voz ou silêncio da vítima, que perde agência nesse
mesmo acto. Mas Enrique parece querer, na oclusão da agência das
suas vítimas (afinal de contas, ela são mortas por Enrique), que
elas mantenham um qualquer grau de criação de significado que
remete para eles mesmos, agora objectos de arte, e não para o
assassino, isto é, o “autor”. Não é propriamente uma glória
pessoal que o assassino deseja, mas antes uma assunção total da
importância do seu “objecto” (os corpos mortos). Daí que
procure criar um homem-puzzle, que procure incutir uma nova
personalidade ou mesmo existência na sua vítima mais “apagada”,
etc. Essa inscrição de um novo valor continua a ser um apagamento
da vítima “real”, afinal de contas.
O livro cria então uma ficção que,
apesar de colocar um “assassino em série” no palco, quer ao
mesmo tempo desmontar o fascínio que por eles temos. As legendas que
mimam a voz do narrador são as do próprio Enrique, por isso temos
sistemicamente um mundo construído de acordo com a sua focalização.
Não há uma única passagem que nasça da percepção de outras
personagens, com a única aparente excepção quando nos apercebemos
que Enrique é seguido pelo detective Quesada, mas mesmo assim
podemos ser levados a crer que se trata de algo que ocorre com o
conhecimento (e controlo?) do nosso protagonista. Assim sendo, todas
e quaisquer discursividades que possam emergir deste livro a Enrique
pertencem. Não é procurada qualquer “razão” biográfica,
trauma ou segredo, desvendado no momento certo, para os seus
assassinatos, sendo estes subsumidos com efeito a um propósito quase
supramente estético, sem que haja interesses particulares em ganhos
materiais a partir deles. A não ser o da satisfação, quiçá, na
construção de um objecto de arte, de uma nova realidade, de uma
questão inédita até àquele momento.
É claro que a interpretação de toda
a intriga, e da sua “lição principal” dependerá de muitos
factores do próprio leitor, e a frase “matar é uma arte” não
pode ser entendida como uma verdade absoluta, mas antes aquela que
Enrique quer lavrar. Mas falha, claro, por não compreender, mesmo
até quando discute as obras de arte que analisa nas conferências,
desde a Crucifixação de Grünewald aos Desastres da
Guerra de Goya, que a arte se move sobretudo por dois caminhos. O
do ser um “jogo livre” das faculdades, como queria Kant, e de ser
uma construção de uma futura comunidade A destruição de uma vida,
e a “criação” de uma obra não-partilhável, não cria qualquer
comunidade, é anti-humana.
Já tínhamos falado de um livro de Keko, curiosamente também sobre arte, há uns anos, mas não
prestáramos atenção especial à sua própria tarefa de desenhador.
Este livro é necessária e literalmente mais negro que o anterior,
uma vez que as linhas dos sólidos contornos das personagens e
objectos são grossos como filamentos de vitrais, mas a cor está
quase ausente. Quase, pois existem apontamentos de vermelho que se
comportam de modos muito distintos. Por vezes, parecem querer
sublinhar uma percepção especial de alguma personagem (como ocorria
com as cores vivas em Rumble Fish), por outras vezes é apenas
um sinal de presença do sangue, para dramatizar os momentos de
violência (e vejam-se as duas primeiras páginas para se compreender
de chofre essa mecânica de significação). Outras ainda, como é o
caso das maçãs, é antes num papel de simbolismo que traz essas
linhas todas unidas num outro ponto.
O desenho de Keko tem uma
característica entre o estilizado e o empedernido, que recorda um
pouco Marc-Antoine Mathieu, se bem que o propósito seja aqui mais
ancorado na solidez. Mesmo nos momentos mais dinâmicos, há uma
construção preferencialmente estática, que garante alguma
gravidade e peso a esses mesmos movimentos. Daí que o desenhador
tire partido de muitas das marcas gráficas típicas de uma banda
desenhada convencional (linhas de impacto, onomatopeias pop, gotas de
surpresa, etc.), que por vezes parecem algo deslocadas em relação
ao estilo visual. Essa característica estática é ainda corroborada
pelo uso de cenários, sobretudo quando envolvem grandes planos de
conjunto de espaços reais, interiores ou exteriores, sob a forma de
fotocópias “sobre-expostas”, diminuindo a resolução e
aumentando o grão, incutindo uma qualidade sombria, glauca, austera
em relação às personagens mais estilizadas mas jamais leves (o que
nos parece ser uma técnica muito próxima àquela que é seguida,
por exemplo, por Dave Lloyd em V for Vendetta, no original a
preto-e-branco).
Livro austero, portanto, na forma e no
conteúdo, não criando propriamente um ambiente familiar na forma
como trata o seu tema, mas antes de maneira perturbadora, Eu,
assassino, contudo, obriga o leitor a perscrutar-se a si mesmo
para não cair na simpatia pelo diabo.
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