Dividido em cinco capítulos, com
mini-capítulos extra, Guadalupe centra-se numa road trip
da protagonista homónima, que viaja deste a Cidade do México até a
Oaxaca, para sul, para enterrar a sua velhota avó Elvira, viajando
com o seu tio Minerva. Mas como esse mesmo género pretende, o que se
cria é uma circunstância de focalização constrita em termos de
espaço (paradoxalmente) e de tempo (linear) para que nos foquemos
sobretudo nas dinâmicas mutantes entre as personagens ao longo do
evento-motivo, e como elas se formam por factores externos. (Mais)
A organização da narrativa é muito
simples e até cândida, sendo este um pequeno relato centrado, e não
distendido. Se a intriga lança mão de uma acção que abarca um
longo trajecto e uma história que remonta a décadas, é para melhor
se rebater na contemporaneidade, e ver aí uma resolução de crises
passadas numa felicidade apenas hoje possível. Se bem que não
haja propriamente uma exploração melodramática do que “não era
possível”, para tecer diatribes ou elogios à sociedade em geral,
não deixa de se poder ver Guadalupe como uma espécie de
grito de Ipiranga mais fácil de dar nos nossos tempos.
Como não podia deixar de ser, questões
de sexualidade e de sexo (ou género sexual) estão na linha da
frente do livro. Não cremos que o facto da argumentista ser uma
mulher seja facto suficiente ou explicativo de uma qualquer atenção
particular, mas é sem dúvida um factor a ter em conta numa história
com uma protagonista feminina que tenta cumprir uma promessa que fez
a outra figura feminina na sua vida, e foi educada por um
crossdresser (se é que podemos usar este vocábulo de forma
“neutra”), o qual trabalhara num clube nocturno em que fazia
espectáculos vestido de mulher, e aparenta ser homossexual [seria possível uma leitura paralela com o tio Gabriel de Zazie no metro?], antes de
abrir a sua libraria ambulante. Para mais, a própria
homossexualidade latente da personagem mais velha abre então a
discussão da expressividade tornada possível numa sociedade
contemporânea, lá onde ao valor da tradição e da religião criava
escolhos ou obstáculos por vezes mortíferos (se ainda não são
hoje realidade).
Ainda assim, os autores não tornam a
sua narrativa numa tirada documental ou programática. Não estão
interessados em criar um contraste jornalístico entre realidades –
expressividade sexual livre da parte de uns indivíduos contra o
conservadorismo de outros (uma maioria, pelo menos política). Não,
Guadalupe é antes uma obra de celebração positiva.
Aparentemente, Angélica Freitas utilizou a sua mesma matéria
experiencial no México não apenas para escrever esta colaboração
com o artista Odyr mas também um volume de poesia, essa sim mais
combativa em nome das mulheres daquela sociedade: Um útero é do
tamanho de um punho, onde podemos ler versos como “uma mulher é
uma construção /…/particularmente sou uma mulher/de tijolos à
vista”. O feminismo é então uma dimensão basilar e eléctrica em
Guadalupe, mas onde o programa político surge sob a forma de uma
constatação de facto da felicidade e liberdade das personagens, e
não de uma trama de sofrimento e confronto dramático. E se tema houver redutível a poucos termos, seria mesmo o da liberdade da identidade, livre de quaisquer limitações pré-arranjadas.
Por isso, pelo contrário, os autores
tiram partido de uma dimensão “juvenil” permitida pela banda
desenhada, ou os seus géneros mais conhecidos, já que existem
linhas de desenvolvimento paralelo dos pensamentos das personagens,
que podem ser interpretados como “não-verdadeiros” na economia
da narrativa, e que bebem de imagens feitas mas produtivas da banda
desenhada de super-heróis para essa faceta “imaginada”. Porém,
há também uma dimensão de fantasia que está presente de modo
claro na narrativa, de forma “real” na diegese, uma vez que temos
acesso a acções envolvendo fictícios deuses antigos Mexica-Aztecas
(Xyzótlan e Popolancomelatle) e os seus acólitos sobrenaturais,
cogumelos psicotrópicos (igualmente fictícios) e as Muxes,
figura antropológica e real da cultura zapoteca, de pessoas
biologicamente nascidas como homens mas que se vestem e que vivem
como mulheres. O tio Minerva, de Guadalupe, assume na fase mais
tardia do livro esse papel, mas transfigurado por poderes
fantásticos, à la super-herói, recordando leitores de The
Invisibles da personagem de elementos similares, Lord Fanny.
Não nos esqueçamos que este é um
livro de autores brasileiros sobre personagens mexicanas, mas não há
qualquer exploração superficial de imagens feitas, ou atalhos de
representação. Ainda que haja uma preocupação em deixar claras as
contradições ou sobreposições típicas de qualquer sociedade em
que o desenvolvimento pós-industrial e pós-capitalista convive com
substratos rurais e tradicionais (a frase feita “sociedade de
contrastes” pode ser empregue praticamente a qualquer canto do
mundo), Freitas e Odyr deixam espaço suficiente para o que leitor
compreenda estar a seguir a história singular destas
personagens, e não de cifras do “México eterno” ou coisa que o
valha. Mesmo que haja atalhos que possam não corresponder ao mais
exacto dos olhares fotográficos.
O desenho de Odyr [Bernardi], como já
o havíamos mencionado quando de Copacabana, aparenta-se com o
de um breve e leve esboço que se lança num caderno, mantendo essa
frescura, que todavia revela solidez graças às linhas grossas e
manchas densas em alto contraste, de figurações decididas e
expressivas. Uma vez que existem episódios extra-narrativos (apartes, fantasias, sonhos, etc.), algumas composições apresentam-se de forma menos convencional para apresentarem outras formas de distribuição da informação.
Nota final: agradecimentos ao editor, pela oferta do livro.
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