São por demais os artigos que,
discutindo a banda desenhada e as suas hipotéticas
“potencialidades”, jamais acabam por se referirem àqueles textos
existentes que de facto exploram essas mesmas margens, ou melhor
dizendo, perscrutam novos territórios que se vão estendendo
paulatinamente. Por outras palavras, é uma patetice alegre esperar
pelo futuro da banda desenhada em objectos de mediocridade normativa,
quando esse futuro já medra. Basta abrir a pestana.
A teórica literária Lisa Zunshine,
por exemplo, num seu artigo em que aborda a banda desenhada,
compreende esta como “artefactos que coordenam textos e imagens de
tal forma que a informação sobre os sentimentos das pessoas a que
acedemos ao olhar para a sua linguagem corporal elabora, contradiz ou
simplesmente complica as descrições verbais desses sentimentos”.
Zunshine é uma autora que se tem dedicado à intersecção dos
estudos literários com as ciências cognitivas, por isso não é
surpreendente que mencione com particularidade os sentimentos das
personagens e as inferências (“de uma maneira rápida, confusa e
intuitiva”) que tiraremos das suas representações. E insiste
mesmo quando parece querer olhar para além dessa limitação: “as
narrativas gráficas, sobretudo aquelas inclinadas com a
experimentação visual, examinam intuitivamente a nossa tendência
de observar, interpretar e reinterpretar obsessivamente corpos
demonstrando emoções, ao mesmo tempo que nos mantemos abstraídos
dos vários passos envolvidos neste processo de leitura de mentes
ficcionais”. A autora, portanto, insiste numa agência humana da
narratibilidade da banda desenhada. (Mais)
Se num momento histórico, a
experimentação formal se associava necessariamente à procura por
efeitos apelativos a um público cada vez mais massificado (sobretudo
nas suas relações com a imprensa periódica no mundo ocidental ao
longo do século XIX), foi preciso chegar à autonomização da banda
desenhada face a esse mesmo mundo (e ao do entretenimento
infanto-juvenil, etc.), para conseguir instalar instrumentos de
pesquisa formal mais específicas. Muitas vezes abdicando dessa tal
agência humana, e procurando objectividade no uso da própria
superfície visual, material e estrutural possível na banda
desenhada.
A editora francesa Matière, que é
conduzida por Laurent Bruel, segue mais ou menos uma mesma lógica
nos seus projectos, que é a da found footage, uma prática
nascida no seio das artes visuais e cinematográficas mais fora do
dispositivo do entretenimento, integrando-se imagens prévias numa
nova construção ou montagem que muitas vezes desvia da rota do
propósito original, para se chegar a uma nova realidade, distância
crítica ou efeitos inesperados. Muitos dos livros que se seguem
procedem à recuperação de imagens provenientes de um alargado
“arquivo” de imagens, seja da banda desenhada ou de outros
territórios contíguos, reapropriando-se delas para um significado
que, a um só tempo, pensa sobre essas mesmas imagens e as relações
que elas poderão ter com a nossa posição contemporânea de
leitores.
Parte dessa posição é, na verdade,
deslocada pela própria e existência destes objectos. Apesar dela, e
a contínua abertura das tais “possibilidades” (que não o são,
uma vez que estão cumpridas afinal), ainda existe uma espécie de
inércia na esmagadora maioria dos leitores de banda desenhada
(inclusive aqueles que, supostamente, assumem uma posição
privilegiada de leitores de qualidade), que teima em que não aceitar
estas fronteiras móveis e preferir um certo conforto em categorias
mais convencionais. A Matière, como algumas outras plataformas
editoriais, expande por dentro essa categoria geral chamada “banda
desenhada”, sem a jamais dissolver noutra coisa.
Les écrans. Jacques
Ristorcelli. Comecemos pelo livro que mais tem reunido atenção
crítica daqueles publicados pela Matière, se exceptuarmos os de Y.
Yokoyama. O seu motivo é o desastre conhecido por “Fukushima”,
absorvendo metonimicamente o nome da prefeitura do centro do Japão,
na qual a origem de desastre natural, terramoto e tsunami, veio
desencadear um outro nuclear, em que a falha energética levou à
desintegração no reactor, levando a uma crise infeliz. O autor,
todavia, não apresenta pura e simplesmente um relato ora do evento
em si numa estratégia jornalística ou factual, nem sequer mantém
uma linha autobiográfica em que torna clara a sua relação com as
pessoas que lhe escrevem do Japão logo após o evento. As notícias
recebidas por mensagem ou outras fontes torna-se tão-somente mais
uma matéria plástica combinável com imagens procedentes de várias
áreas para criar um modo de pensamento sobre a relação da história
(das imagens) com o evento presente, da memória e do imaginário
entrosando-se com o testemunho real.
Benoît Crucifix fez uma leitura
intensa e teoricamente sustentada deste livro, e para ela remetemos,
podendo-se descobrir lá contornos mais exactos do processo de
trabalho de Ristorcelli (fontes das colagens, técnicas, etc.) assim
como outras questões ontológicas pertinentes que aumentarão o
escopo de interesse e valorização de Les écrans.
Seja como for, considerando este livro
como um projecto de colagem que vai para além de imagens
heterógenas, o que lemos e vemos é antes uma espécie de dominó
complexo de causa-consequência entre um problema e o seguinte, mas
cuja linearidade é, de certa forma, “traduzida” pela forma com
que Ristorcelli promove o avanço do seu livro. Se se ler com atenção
para com a estrutura material do livro, em que se apresentam as
imagens quase sempre duas a duas em cada prancha, ou splash pages
e, mais raramente, spreads, notar-se-á que há um avanço por
efeitos cumulativos das imagens coladas, ou de pequenas variações
conducentes à ideia de um avanço linear. Há uma fraternidade com
um projecto como 978, em que apesar da aparente
superficialidade abstracta do livro de P. Matthey, efeitos visuais
efectivos contribuem para um efeito narrativo. No caso de
Ristorcelli, essa narratividade é maior ainda, já que não apenas
as imagens são claramente representativas - uma paisagem de guerra,
uma explosão, uma figura humana gigantesca manipulando a terra,
imagens de manuais de emergência em caso de perigo, etc. – como o
texto vai contribuindo para uma concentração do tema.
Em alguns momentos, a experiência de
leitura deste volume recorda-nos a cinematográfica de uma Marguerite
Duras, de um Chris Marker, ou outros cineastas na qual não há
propriamente um divórcio entre texto e imagem mas uma relação que
não procura um simples reforço mútuo entre eles, mas alguma
procura por paradoxos irresolutos. Ocorre um “interface incómodo”
entre texto e imagem, para empregar uma expressão de Catherine
Delafield, de um contexto bem diverso, que reforça a visibilidade
desses mesmos textos, ou da matéria verbal, para seguir as lições
de T. A. Bredehoft. Os textos – correspondência pessoal, citações
de notícias e chats – mantêm características próprias,
negando-se a dialogarem entre si para a emergência de uma
“explicação” coerente, uma familiaridade com o evento, mas um
permanente desequilíbrio que obriga a compreender a inacessibilidade
do mesmo. Criando dessa maneira, na expressão de Baudrillard, que
está presente como epígrafe, um ecrã.
Notes sur le
sumo. Laurent Bruel e Risto.
Sendo Bruel o editor desta colecção, é justo que tenha
sido ele quem inaugurou um dos gestos que abre o território que a
Matière pretende ocupar, ao mesmo tempo que o cria, em colaboração
com Ristorcelli, que assina com um pseudónimo de curta duração. De
uma forma simples, este pequeno livro é uma introdução à luta
tradicional japonesa conhecida por sumo, mas não se trata de
forma alguma um caderno que explique de forma enciclopédica ou
pedagógica a sua história, papel social e regras desportivas. Menos
do que aprendermos o que é o sumo, como se pratica, que tipo de
dietas se seguem para se ser um sumotori, que significam cada
um dos gestos rituais do combate, etc., entenderemos antes uma
ontologia mais profunda em relação a como se o vive. O livro
é dividido em três capítulos: ”espectáculo”, “prática” e
“público”. Utilizando colagens a partir de gravuras do século
XIX e materiais vários do século XX, inclusive referências à
banda desenhada norte-americana e à mangá, assim como
possivelmente alguns desenhos originais, o texto é esparso e procura
antes efeitos poéticos do que explicativos. Há uma indicação de
que o texto é de L. Bruel, mas também se indica que é “traduzido
do japonês” e que parte dessas frases haviam sido empregues num
filme sobre o desporto ritual. Sem nos podermos assegurar, diríamos
que a matéria textual é tratada aqui tal como a visual, em que
assume a sua materialidade plástica e comutativa, e menos como
instrumentos esclarecedor de uma razão linear.
Existem pequenos nódulos, ainda assim,
que explicam todos aqueles pontos que dissemos estarem ausentes: a
história da prática, a sua vivência no Japão do pós-guerra, as
suas transformações modernas, o comportamento do público e a sua
fruição do espectáculo, a simetria física criada entre os dois
combatentes na arena. Mas sempre de um modo atomizado e cujo
propósito nos parece ser o mesmo: falar da alegria (joie), e
aceitá-la como é, tal como é. E não poderá ser essa também uma
maneira de entender estes projectos de banda desenhada? Não tanto
como querendo responder a uma realidade ulterior, fora de si,
protelada numa razão externa, mas num prazer imediato da sua
fruição?
As colagens – pois é disso que se
trata -, ou melhor, as cenas empregues e recortadas, oscilam entre as
realistas e as estilizadas, entre o padronizado e o dinâmico. O
texto aparece igualmente em japonês (kanji e hiragana ao longo das
margens), e invade alguma vez o campo visual sob a forma de
onomatopeias. É tentador cair na ideia de repetir-se aqui a ideia
barthesiana do “império dos signos”, em que o fascínio pelo que
não se conhece ganha uma dimensão material que não teria se
passasse pela decifração cognitiva e racional. Não se procura a
familiaridade com esta estrutura compositiva, visual e figurativa.
Bem pelo contrário, a sua contínua heterogeneidade assegura sempre
uma distância crítica, tal como ocorre, ainda que forma diferente,
no livro a solo de Ristorcelli.
La méthode
Bernadette. Este livro põe em marcha alguns
dos mesmos princípios de Les écrans e Notes sur le sumo,
na medida em que é através da “colagem” de imagens
pré-existentes que ele cria uma nova distribuição do sentido sobre
elas mesmas. Por essa razão, o editor, L. Bruel, assegura-nos que
este volume actua como uma espécie de manifesto pela prática dos
processos recorrentes da Matière. Mas em vez de lançar mão de
materiais heterogéneos de maneira a criar uma tessitura rugosa,
mantém-se no interior de um circuito muito restrito.
O “método Bernadette” é, para
explicar de modo simples, uma forma de catequese por imagens que foi
desenvolvido por um grupo de devotas católicas francesas, as ditas
“irmãs Bernadette”, de uma zona rural-tornada-industrial nos
anos 1910, Thaon-les-Vosges, sob a condução de um abade chamado
Émile Bogard. Utilizando imagens em silhueta, criaram centenas de
instrumentos de evangelização e lições materiais, tentando
combater o sindicalismo e o que chamavam do “materialismo da
modernidade”, o que englobava formas populares desviantes do
cinema, a arte cubista, os discursos comunistas, etc. tudo confundido
num “inimigo” volátil e vago contra os valores ocidentais. Se se
contribuía para a educação das crianças e das jovens meninas,
conduzindo-as ao apropriado papel de donas de casa e futuras mães,
ao mesmo tempo introduzia-se nas lições a mundividência católica,
que cria redes de oposição absoluta entre a via do “modernismo”,
na qual o diabo espreita, e a via da salvação evangélica.
De certa forma, é algo que se aparenta
a algum uso de imagens nas bíblias manuscritas, inclusive as
erroneamente chamadas Biblia Pauperum, os frescos, vitrais e
azulejos nas igrejas, as imagens de Épinal, como instrumento de
comunicação de um conteúdo determinado. Todavia, a sua
contextualização histórica precisa, a ideologia da congregação
feminina entretanto extinta, o programa do padre Bogard e da irmã
Marie de Jésus (a artista principal), e o uso particular das
silhuetas (a qual possui toda uma história técnica que não importa
recuperar aqui) num programa de catecismo (isto é, um tratamento por
redução de toda a teologia e dogmatismo católico em lições
fáceis de transmitir aos mais novos) torna o método Bernadette
sucinto, directo e célere.
O que ocorre porém no livro da
Matière é uma re-estruturação, redistribuição e re-ordenação
de todas essas imagens originais, sem qualquer manipulação sobre
elas mesmas, de maneira a contar precisamente a história do próprio
método Bernadette. Joga-se portanto com a materialidade das imagens,
como manda a lei da editora, até no nome. As imagens encontram-se
distribuídas nas páginas como se se tratassem de vinhetas de banda
desenhada, mesmo que os editores/autores sejam cuidadosos a não
querer confundir esta produção original de imagens passíveis de
narratividade com a banda desenhada propriamente dita (mesmo que este
“propriamente dito” seja entendido de um modo lato e elástico,
como deve ser). Simplesmente é uma forma de compreender o diálogo
ou convivência possível, uma interpretação, enfim, um
re-agenciamento das imagens para que se contem a elas mesmas.
O livro tem ainda dois textos
explicativos e críticos do contexto de criação do método
Bernadette, de forma a providenciar aos leitores uma compreensão
variada e alargada do mesmo. As imagens em si, como se disse, não
são manipuladas com excepção da sua composição, e os textos
acrescentados são mínimos e, apesar da sua forma poética e aqui e
ali elíptica, não são irónicos nem desconstrutivos. Todavia, ler
material catequético sob a forma de um livro de banda desenhada
moderna num contexto de livros de banda desenhada experimental traz
consigo toda uma patina de distanciamento crítico e até, diríamos,
sarcástico. O que surpreende é a eficácia destas imagens sumárias
de silhuetas a prestarem-se a este exercício de re-propósito, o que
as reforça enquanto imagens. E apesar da dificuldade em seguir todos
e quaisquer passos ideológicos previstos nelas (a demonização do
cinema, do sindicalismo, o elogio do papel doméstico da mulher, da
subserviência das crianças às instituições, etc.), há uma
espécie de candura aberta, que afasta o discurso de, por exemplo, os
“tratados” de Jack Chick, em que a demonização do outro é
cabal.
La salle de la
mappemonde.
Yuchi Yokoyama. Em relação aos livros anteriores de Yokoyama, de que havíamos falado, há asseguradamente
um passo em direcção a territórios mais “normalizados” da
banda desenhada. A introdução de balões de fala, de uma claríssima
progressão narrativa integrada num objectivo claro (no sentido
narrativo, já que não em termos de significado), e até de alguns
elementos de dinâmica actancial entre as personagens fará imaginar
que esta é a tentativa do autor criar “mangá” convencional e
não poderosos ensaios sobre a superficialidade de todas e quaisquer
marcas gráficas lançadas na superfície do papel. Se quase todos os
outros livros aqui agregados impedem a consideração da banda
desenhada como uma “janela” para um ”mundo ficcional”, aqui
essa esperança emerge, mesmo que de leve, uma vez que os elementos
visuais e estruturais do autor se mantêm inalterados. La salle
parece fazer parte de uma hipotética trilogia prometida pelo autor,
mas não estamos perante um projecto que venha a ser publicado com o
mesmo ritmo que os títulos convencionais e comerciais.
Em termos de acção, o livro não
podia ser mais linear. Três personagens são chamadas a uma cidade
(para eles) estrangeira, atravessam-na, e chegando ao seu destino,
contemplam um jardim interno a um edifício e encontram que os
chamou. Qual a razão desse chamamento e qual o desenvolver dessa
acção apenas para o futuro está reservado. Como nos casos de
Voyage e Combats, incute-se uma natureza épica a todo
e qualquer movimento da acção: observar a cidade num alto, observar
aviões a passar em voos baixos, descer umas escadas, atravessar um
rio de barca, tocar à campainha, servir um whiskey, tudo é tratado
com traços de ultra-dinamismo e máximo impacto, impedindo que haja
flutuações de intensidade. É tudo intenso. O facto do autor não
criar distinções em primeiros planos e fundos, linhas cinéticas e
de figuração das personagens, cenários de onomatopeias, cria
igualmente uma espécie de plano confuso das marcas gráficas, o que
obriga o leitor-observador a se aperceber que existem operações já
familiares na interpretação da banda desenhada que são aqui postas
em causa. Obriga o leitor, como as melhores experiências da banda
desenhada, a ver.
Le programme
immersion. Léo
Quivreux. Quivreux é um
autor que oscila entre livros de aparência convencional e
experiências mais radicais em termos de figuração e agenciamento
dos elementos narrativos, assim como participa quer em colaborações
quer projectos a solo. Mas pertence a uma família que se estende por
colectivos como Le Dernier Cri e artistas individuais como Bertoyas,
mostrando desde logo uma integração numa constelação de
experimentação. Mesmo quando os seus livros parecem inscrever-se
num género determinado e balizado, como o policial de Agents
dormants ou a ficção científica de Le programme
immersion, isso serve apenas como palco para criar desvios
significativos desses mesmos géneros, sobretudo no que diz respeito
à ontologia, teleologia da narrativa e estratégias de
representação. Daí que apesar deste livro ter um formato maior,
aparentado ao álbum ou ao “romance gráfico”, conter uma
história passível de sinopses claras, ele não deixa de participar
na natureza comum dos livros aqui discutidos, de trabalhar em base de
arquivos livres de referências visuais, estruturais e temáticas.
Poderíamos reduzir a história e dizer
que é uma intriga linear policial ou de espionagem de cariz
ficcional-científico, em que duas agências opostas jogam xadrez com
os seus agentes e outros elementos, em torno de uma máquina especial
que, ligada directamente aos cérebros das pessoas, lhes permite
através de uma técnica incrível surgirem no que parecem ser ou
mundos paralelos ou numa existência paralela no mundo em que vivem.
Cada vez que se executa uma “passagem”, o autor mostra vinhetas
cabalmente ocupadas com padrões visuais, texturas, formas, números
ou algoritmos, espirais de luz, que não parecem subsumir-se a nada
em concreto, mas deixando que essa natureza abstracta seja
interpretada das formas mais distintas possível.
Ao mesmo tempo, inscreve-se uma intriga
que se centra numa mão-cheia de agentes com relações
contraditórias entre si, como a camaradagem profissional, a
responsabilidade, a amizade e até o amor, onde ele é possível de
interpretar. Mas com grandes limitações, já que Quivreux não está
interessado em lavrar perfis psicológicos matizados. Ainda assim,
esse pequeno grupo de protagonistas, deuteragonistas e antagonistas
tecem uma perfeita rede de dinâmicas centrípetas muito coerentes. E
finalmente há toda uma camada de uma patética melancolia, com os
agentes a deambularem sem fito por paisagens urbanas decadentes, sem
terem a certeza de que ordens ou regras cumprir, em que o propósito,
o valor e a justiça das suas acções jamais são esclarecidas,
mostrando uma espécie de engenhoca em movimento perpétuo por um
qualquer poder ambivalente e descentralizado, do que acções que
levem à felicidade ou liberdade dos demais cidadãos. Le
programme immersion funciona dessa maneira como uma semi-velada
desconstrução de toda a ficção de espionagem, que assegura sempre
uma razão ao status quo central nas histórias. Aqui, tudo é
composto de dúvida e incerteza.
Em termos visuais, o autor parece ter
limado alguns dos seus instrumentos e se não trabalha a colagem
(pelos vistos uma técnica preferida nesta editora), como o havia
feito com o artista Samplerman, por exemplo, mesmo assim poderíamos
chamar “de colagem” a origem das marcas gráficas empregues. Um
pouco como Berliac, há uma espécie de fundo referencial que nos
recorda uma certa produção de gekigá presente nas personagens, mas
que poderiam recordar igualmente, pela sua estilização máxima,
radical e quase não-natural, tanto Yokoyama como Charles Burns, ou
mesmo Chester Gould: linha grossas e personagens estranhas nos seus
pormenores físicos, contra cenários altamente detalhados e
esquálidos num momento, e minimalistas e despojados no outro, numa
economia flutuante de meios. A estrutura narrativa é organizada, mas
dado os vários “níveis” de existência e de “passagem”
providenciados pela máquina conhecida por “EP1”, há momentos em
que nos perdemos. Le programme immersion, nesse aspecto, tem
menos de Inception (que mantém sempre a possibilidade de uma
cartografia inteligível) do que de eXistenZ (o qual apresenta
uma estrutura compossível e irresolúvel). A “imersão”
prometida, portanto, apesar da sua aparente clareza narrativa, é
total para os próprios leitores.
Nota final : agradecimentos à
editora, pela oferta dos livros. Igualmente a Benoît Crucifix e Filipe Abranches.
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