Tendo como sub-título Superheroes
and the Radical Imagination of American Comics, compreender-se-á
de imediato o objecto de estudo deste volume académico, assim como a
matéria que é desalojada para lhe prestar atenção crítica.
Basicamente, este é um estudo das figuras dos superheróis no
contexto histórico e cultural norte-americano, criando um filtro que
permite ver essas personagens como capazes de reconfigurar
imaginativa mas igualmente politicamente (isto é, com efeitos na
pólis) vários tipos de inscrição cultural. Desta feita, o
autor contribui de uma forma sustentada e feliz para com a
consideração da banda desenhada como, acima de tudo, para citar uma
das cartas enviadas às editoras que o investigador utiliza, “espaço
legítimo para pôr em prática ideais” (195). (Mais)
Existindo cada vez mais volumes
dedicados a estudos ancorados e balizados da banda desenhada, é
verdade que as áreas mais abordadas, pelo menos em língua inglesa,
ou se dedicam à banda desenhada mainstream de super-heróis
ou então a círculos que podem ser descritos como “independentes”,
“alternativos”, “literários”, ou outros. Muitas vezes, os
instrumentos são diferenciados, ou pelo menos as bases da discussão
desses mesmos textos. No caso de Fawaz, se bem que esta nossa
afirmação seja algo deslocada e exagerada, diríamos estar
surpreendidos por vermos tão bem articulados instrumentos que têm a
ver com a Queer Theory, estudos culturais, interpretações
histórico-políticas, etc., numa aplicabilidade sobre estas
personagens de fantasia e, mais ainda, de fantasias de poder.
Todavia, como Fawaz o determina logo no início, o objectivo deste
estudo é abordar “três décadas de inovação na banda desenhada
americana que transformaram o super-herói de um campeão
nacionalista numa figura de diferença radical capaz de cartografar
os limites do liberalismo americano, e a sua promessa de inclusão
universal no período do pós-2ª Guerra Mundial” (3). Isso
permitirá então olhar para “o superherói como uma figura
dinâmica e contestada através da qual os leitores e também os
criadores conseguem reivindicar quem poderá representar mais
legitimamente o povo americano, e mais latamente a raça humana,
enquanto seu embaixador heróico” (idem).
De
certa forma, Fawaz procura seguir a esteira de uma leitura positiva
destas figuras, tais como Peter Coogan, Grant Morrison, Geoff Klock,
Aldo Regalado, e outros, mas aprofunda a questão da
representatividade e identidade. No que diz respeito à Queer Theory,
que aqui deve ser entendida menos num sentido estrito da identidade
da sexualidade, mas num sentido de “estranhamento”, isto é,
prática desviante da normatividade, Fawaz quer entender as figuras
dos super-heróis não apenas como potencialmente “queers” elas
mesmas, mas como potenciadoras de “queer up” a própria banda
desenhada em direcção a uma prática sócio-política. Máquinas do
pensamento. Escreve ele, “[p]enso na banda desenhada como um
objecto historicamente constituído emergindo de condições sociais
e materiais distintas – o que inclui exigências económicas
cambiáveis, as biografias dos diferentes autores, transformações
demográficas do público leitor, e novas tecnologias de impressão –
ao mesmo tempo que vejo o seu riquíssimo conteúdo narrativo e
visual a produzir lógicas imaginativas capazes de oferecer modos de
reconcepção, valorização e resposta ao mundo que não são
reduzíveis a qualquer factor histórico singular” (23). É isto o
que distingue o trabalho de Fawaz, e de outros académicos que
dedicam tempo ao estudo da banda desenhada de uma forma sólida: a de
não julgar todo o território, todo o género, como um bloco
homogéneo, seja para o julgar um campo minado pelo maniqueísmo ou a
falta de sofisticação intelectual, face a outros objectos bem
distintos, seja para o eleger como o único campo digno de alguma
discussão passional, em detrimento de tudo aquilo que não se
inscrever nas suas lógicas representationais, genéricas ou
estilísticas. Numa formulação sucinta e clara, ao autor
acrescenta, “o super-herói fluído [fluxible]
não era inocente de interesses económicos, mas tampouco são os
seus significados redutíveis a eles” (25) [no final voltaremos a
esse conceito de fluxible].
Com efeito, Ramzi Fawaz lerá os
super-heróis não tanto quanto figuras que ocupam um nicho ou um
papel social (e cultural, estético, etc.) predeterminado, congeladas
da mesma maneira para sempre, mas antes como passíveis de mutações
internas que tanto respondem como contribuem para a sociedade em que
se inserem e vivem, por vezes seguindo por outras contestando, por
vezes indo à frente e noutras apenas reflectindo expectativas. O
mais importante, seja como for, é olhar para esta tipologia de
personagens, como reflectoras de uma fantasia produtiva
politicamente. Ecoando algumas ideias de S. Zizek - sem o citar,
todavia - Fawaz encontra neste género uma forma de tornar “a
fantasia num recurso político possível para o reconhecimento e
aproveitamento do prazer em identidades sociais e formas colectivas
de vida usualmente denegridas como depravadas ou subversivas no seio
da lógica política do anticomunismo da Guerra Fria e um
neoconservadorismo emergente” (4).
Ecoando o que John Fiske entendia por
“cultura popular”, sublinhando os seus usos e diferenciando dos
meros produtos de massa, Fawaz acrescenta a isto a consideração da
figura do super-heróis como um “local generativo para imaginar a
democracia na sua forma mais radical, como uma responsabilidade ética
universalmente expansiva para o bem-estar do mundo mais do que uma
estrutura institucional que suporta a cidadania nacional” (7). O
autor parte portanto da leitura da “fantasia popular” como sendo
“a variedade das maneiras com que os tropos e figuras da
fantasia literária (magia, capacidades super-humanas, viagens no
tempo, universos alternativos, entre outros) são capazes de
organizar relações sociais e políticas do mundo-real” (27).
Porém, inflectindo a sua interpretação com os estudos de Lauren
Berlant, uma importante investigadora do campo da Teoria dos Afectos,
sublinha como “novos desejos políticos, novos mundos, através de
modos de encantamento e maravilha” (28) podem emergir neste meio
específico, o qual “modelou visualmente como o encantamento
poderia reorientar compromissos éticos e associações políticas”
(32).
Fawaz não está interessado de forma
alguma em descrições factuais, históricas e contextuais das
personagens que constituem os seus estudos de caso. Não a coloca de
lado, já que as suas interpretações bebem desses factos e de
interpretações atentas à especificidade formal da linguagem da
banda desenhada, mas interessa-lhe ir mais além dessa constatação,
que de resto já se encontra cumprida por muitas outras fontes, para
poder chegar aos significados mais profundos que as várias figuras
estabelecem com os seus contextos específicos. Os capítulos estão
divididos não apenas por grupos de personagens (runs mais ou
menos identificáveis, “períodos” e personagens), mas igualmente
por temas e conceitos culturais e intelectuais que têm tudo a ver
com o tempo particular que aborda, e até aos papéis sociais ou às
possibilidades de expressão política a que vários “segmentos”
da população foram tendo acesso ao longo das décadas: bastar-nos-á
pensar nos grupos de esquerda, nas marchas pelos direitos civis, nos
movimentos estudantis e/ou anti-Vietname, na conquista de uma
expressão pública da sexualidade, do multiculturalismo, e das
identidades que vão minando uma ideia heteronormativa, ainda hoje,
em larga medida, em vigor.
O primeiro capítulo aborda a Liga da
Justiça da dita “Silver Age”, acabando por servirem de modelo de
grau zero de uma certa ideia normativa do que representava a
“democracia americana” como modelo para o mundo. Sendo esse o
modelo “mais avançado” para a civilização à escala global,
era natural que se procurasse estender essa influência um pouco por
todo o lado, e se descrevessem todas e quaisquer lutas noutros
contextos como que subsumidas a tiplogias e categorias fundadas “do
lado de cá”, digamos assim. É assim que essas personagens passam
a servir de bitola contra a qual todas as outras que se seguem
apresentam sucessivos desvios e conquistas representacionais. Desta
forma, os dois capítulos seguintes focam a primeira configuração
de super-heróis que procuram respirar uma “não-normatividade”
face à sociedade em que emergem: o Quarteto Fanástico, o qual
“abriu a figura do super-herói às categorias do género e da
sexualidade, as texturas materiais da vida diária, e a dinâmica do
conflito geracional no dealbar dos turbulentos anos 1960” (65). O
segundo capítulo aborda sobretudo o início da “biografia” dessa
família (nas mãos dos seus autores originais, Stan Lee e Jack
Kirby), e é extremamente estimulante que se faça leituras sobre a
“Primeira Família” da Marvel, que numa abordagem superficial
poderia parecer representara a família nuclear por excelência, para
descobrir neles, fantasias de poderes, antes uma “...inabilidade de
interpretar [perform] as funções próprias de uma
heterossexualidade de corpos capazes [able body] (67),
transformando “a família como palco do debate democrático”
(71).
A grande consequência do estudo deste
autor é abrir uma forma de interrogar estas figuras para além de
uma consideração geral e externa de considerar toda e qualquer
fantasia de super-heróis como “a mesma coisa”. A atenção
particular com que Fawaz distingue as personagens, os autores
envolvidos, os estilos empregues, o contexto de produção, a
consideração das cartas enviadas e publicadas nos próprios comic
books (alertando para a impossibilidade de ter a certeza da
genuidade de toda e qualquer frase) como sinal da sua recepção e
negociação imediata (é isto o que ocupa a parte de leão do
capítulo três), etc., torna The New Mutants como um livro
muito completo no tratamento que faz da sua matéria principal.
Estabelecem-se diferenças entre o
super-herói e outras figuras análogas comparáveis, como é o caso
do “frontier hero”, por exemplo. Neste caso, o que definiria a
personagem central destes estudo é a dimensão moderna de uma
“corporificação (embodiment)
da síntese entre o si biológico aparentemente “natural” e as
tecnologias da sociedade industrial” (6). Assim, vamos
descobrindo como “A desidentificação não é 'quebrar sob as
pressões da ideologia dominante' nem 'libertar-se da sua esfera
inescapável' mas antes uma rearticulação de um conjunto de normas
para novos significados através de performances espectaculares e
críticas dessas mesmas normas” (85). A reconfiguração é
interna, paulatina e específica a estas personagens, criando mesclas
entre a fantasia e assuntos do mundo real que a tornavam uma
plataforma genuína (ainda que no interior da tal patina de cultura
popular, e não a de um ensaio intelectual ou o panfleto político
activista) de pensamento e acção.
O capítulo quatro é dedicado
sobretudo ao Surfista Prateado e aos primeiros X-men, se bem que se
discuta o Warlock e outras personagens, procurando linhas de
desenvolvimento que têm a ver, em termos temáticos, com o universo
e a space opera. O autor propõe mesmo um sub-género
representado por Norrin Rad e Adam Warlock, a do “melodrama
messiânico”, que tendo tido curta duração acabaria por se
mostrar influente na maneira como re-inscreveria o super-herói para
fora de alianças nacionalistas e/ou ideológicas para outras esferas
mais alargadas (a família, a comunidade genética, um princípio de
comunidade por perseguição externa, etc.), e que iria contribuindo
para a elasticidade do valor conceptual dessas mesmas figuras. Nas
palavras do investigador, “Ao popularizar o mutante genético como
uma minoria social e de espécie, a série [Uncanny X-Men]
lançou as bases para reimaginar o super-herói enquanto figura que,
longe de atrair os leitores para uma visão de cidadania ideal
através do dever patriótico ou do sofrimento justo, dramatizou as
política de desigualdade, exclusão e diferença” (144). A
evolução interna dessas personagens levaria a que “os novos X-Men
[o run mais tardiode Claremont e Cockrum] articularam a mutação às
críticas radicais de identidade promulgadas pelas culturas da
liberação das mulheres e homossexuais” (145).
Se bem que não exista qualquer
hierarquia entre os capítulos e, logo, entre as personagens, estamos
em crer que Fawaz tem uma predilecção (quiçá informada por
questões menos académicas e mais pessoais) pela família alargada
dos X-Men que, de resto, dão mesmo título ao livro (já em relação
à “terceira família” de mutantes). Isso deve-se sobretudo
porque o âmago conceptual do livro encontra nelas os instrumentos
mais apropriados mas também a fábrica mais intensa de conceitos
novos para re-pensar a sociedade. Esta é uma das grandes forças
deste livro. É que Fawaz não somente parte de uma série de saberes
disciplinados feitos e os aplica à banda desenhada para entender
como é que ela funciona face a essas ideias, mas ausculta a produção
desta área criativa para entender que conceitos dela emergem para
melhor pensar a realidade cultural abordada. Assim, o autor faz uma
leitura mais detalhada desta série, explicando como ela “propôs
uma alternativa para o signo aparentemente inclusivo da 'humanidade
universal' sob a forma de uma rede de parentesco através das
espécies que deveria ser antes descrita como uma mutanidade
estranha” [queer
mutanity]. Muitos
leitores recordar-se-ão da saga da “Fénix Negra”, e do modo
como se procuravam instituir alianças e rivalidades cósmicas, redes
de compreensão trans-espécies, e sacrifícios à escala individual
mas com repercussões colectivas. É em relação a essa famosíssima
história que o autor profere uma frase carregada – que tem tanto
a ver com a grande parte da força narrativa da história de
Claremont e Byrne e com os seus significados sociais – que surge
aquilo que poderia ser o moto do grande modelo que estas personagens
todas poderiam instituir face aos seus leitores, num usage
(à la Fiske) positivo e libertário: nessa sage instituem-se
“encontros mutuamente transformativos entre aliados inesperados”
(161).
O quinto capítulo foca o curto mais
influente run do Lanterna Verde e o Arqueiro Verde na lavra de
Dennis O'Neill e Neal Adams de 1970 (mas
também a primeira aparição de Luke Cage e a fase em que o Capitão
América se tornou Nomad) para “descer” da space opera
à paisagem urbana, deslocando-se para o género chamado de urban
folktale. Apesar dos diferentes
contextos imaginativos, ambos “respondiam às mesmas preocupações
sócio-políticas, incluindo o colapso da Nova Esquerda e das
coligações políticas liberais, a Guerra do Vietname, a corrupta
liderança política, e o falhanço dos serviços sociais em
repararem as desigualdades materiais que continuavam a assolar a
nação. Porém, cada um destes géneros propunha estratégias
criativas e posições ideológicas alternativas nessas respostas
aos falhanços da vida política americana” (166). No caso deste
outro género moderno, fazia-se um interessante uso de elementos e
estratégias comunicacionais e representacionais oriundas do
documentário e da etnografia cultural para estas histórias de
fantasia. “Os vários métodos com os quais o urban
folktale desconstruía a
reivindicação do super-herói de ma cidadania ideal... abriu
caminho para a renegeração moral da figura, ao encorajá-lo a
responder às críticas aos seu próprio carácter através de uma
vontade em se melhorar a si mesmo, assim como a uma educação
política que poderia ser partilhada semelhantemente com o leitor
através da forma do próprio comic book”
(180).
A dado
momento, o autor cita o conceito da “imaginação sociológica”
de C. Wright Mills. Trata-se da capacidade cognitiva de, a partir de
problemas individuais (tais como o desemprego ou a
toxicodependência), subir ou descer a escala social para realidades
sociais e económicas mais latas (incluindo o racismo e a
distribuição desequilibrada da riqueza e privilégios) que
permitiram trajectórias destrutivas da vida (182). No caso do
Lanterna Verde e Arqueiro Verde, os autores (O'Neill e Adams) criaram
uma clara dicotomia dinâmica entre posicionamentos ideológicos
diferentes, sobretudo tornando o segundo personagem, menos poderoso
que o primeiro, numa espécie de guia social, criando-se um mecanismo
de atenção que desviava a atenção de um “sobre-investimento no
individualismo liberal” para um “bem-estar colectivo e uma
empatia pelo sofrimento dos outros” (183). Daí que O'Neill e Adams
tenham colocado essas personagens numa espécie de tour pelos vários
estratos sociais dos Estados Unidos da época, tentando compreender
qual a valência e pertinência política dessas figuras, anos antes
do que seria mais tarde conhecido como o “desconstrutivismo” de
um Squadron Supreme ou
dos vários títulos de Alan Moore et al., que, se citados, não são
alvo do estudo de Fawaz (sendo esses já objectos textuais largamente
estudados por outras fontes).
Estes títulos,
bebendo das várias fases de discussão do feminismo e das lutas
sociais e políticas pelos direitos civis, são mais atentos a
diferenças particulares, e procuram não tratar todo e qualquer
“bloco identitário” como um corpo homogéneo, antes “exigem
uma compreensão mais intersecional de raça como uma categoria de
identidade internamente heterogénea e contingente, incluindo um
património nacional, de sexo, de classe e de localização
geográfica” (196). Essas questões identitárias têm mais uma
inflexão “para dentro” no capítulo seguinte, dedicado
exclusivamente ao tema da possessão demoníaca, surgindo como
figuras principais a relação entre Jean Grey e a Fénix, o
Homem-Aranha e Venom, e, mais tarde, Ilyana Rasputin ou Magik. De
certa forma, estes desancoramentos sucessivos do herói dos seus elos
familiares, nacionais ou até de espécie, eram um reflexo da cultura
do final dos anos 1970 e início dos 1980, em que surgira aquilo que
alguns comentadores culturais chamaram de 'a cultura do narcisismo'”
(201), constituindo assim “uma alegoria para a vulnerabilidade do
cidadão individual aos assaltos psíquicos incessantes da sociedade
de consumo” (206-207).
O último capítulo
aborda o grupo conhecido por New Mutants, que surgiu em 1984, criados
por Claremont, mais uma vez (e desenhados por Bob McLeod). Esta série
é o corolário do trajecto proposto pelo autor, numa derradeira
transformação do papel do super-herói, uma vez que veio trazer
“novos termos para a produção de solidariedade numa ordem mundial
neoliberal, os quais eram eco de vários projectos construtores de
mundos da banda desenhada de super-heróis do pós-guerra, incluindo
a cidadania ética da Liga da Justiça, a cosmopolítica dos livros
do Quarteto Fantástico, e a mutanidade estranha dos X-Men.
“A
noção de que o propósito dos super-heróis era sempre
necessariamente melhorar as injustiças sociais significava que a
figura era meramente um meio criativo para um fim social alternativo:
melhorar relações inter-rácicas, combater o conservadorismo da
Guerra Fria, libertar as mulheres, levar a cabo a justiça social...
[ou seja, refundar o género para o tornar] “um espaço de fantasia
popular em que os tipos de solidariedade necessárias para
transformar as condições que tornavam possíveis estas atrocidades
[fome, racismo, intolerância religiosa, etc.] podiam ser realizadas”
(235). Esta mudança radical, em que as personagens já não agiam
sobre as consequências ou os sintomas, mas antes as próprias
condições da emergência dessas identidades espelhavam a maneira
como muitas plataformas (entre as quais a Act Up, especialmente
citada) funcionavam: “os movimentos radicais dos anos 1980 sugeriam
que o fito da política não deveria ser a busca por uma identidade
humana universal, um mundo utópico livre de opressão, ou a
aquisição de direitos de um estado liberal mas antes a prática do
desenvolvimento de respostas sociais significativas para diferenças
concretas que foram, a dado momento, democráticas e críticas”
(237), o que explica, pelo menos em parte, a maneira como nessa série
se abordavam as classes sociais, as religiões e as proveniências
sociais de cada uma das personagens. Ainda que tenha sido o próprio
Claremont que, na segunda família dos X-Men, tinha introduzido uma
maior variedade étnica e nacional nos mutantes, é em New Mutants
que eles abandonam a ideia de serem representativos de estereótipos
mais ou menos condicionados para se explorarem especificidades mais
individuais.
A pluralidade dessa
série, portanto, é de tal ordem que Fawaz se permite a lê-la tal
como esta havia sido delineada pela segunda onda do feminismo, isto
é, “não é um facto demográfico ou existencial, mas uma relação
política para com... diferenças; exige que eu faça algo em relação
a essas diferenças, que eu as considere de uma forma politicamente
significativa” (Fawaz está a citar a partir de Linda M. G.
Zerilli; 238).
Para além da discussão destas figuras
e seu papel sócio-cultural, o autor vai fundando vários conceitos
próprios, que poderão tornar-se aplicáveis ou contudentes em
situações futuras. Por exemplo, o conceito da “fluxability”,
que em português se poderia escrever “fluxoabilidade” (mais do
que “fluído” como tentámos acima), e que diz respeito a uma
“transição ou mudança constante” (11 e ss.) das figuras,
projectando a maleabilidade (ou mutatibilidade) dos super-heróis
conforme o novo enquadramento cultural. Um outro conceito é o da
“cosmopolitics” ou “cosmopolítica”, a qual se expressa de
três formas distintas: em primeiro lugar, pela forma como as
personagens corporizam um modelo de cidadania univeral, que se foi
expandindo; o modo como o público leitor passou a participar
activamente na construção narrativa e imaginativa através das
cartas ao editor no pós-guerra, que levavam a interessantíssimas e
produtivas discussões e conselhos; e finalmente, “o investimento
ressurgente do meio nos valores liberais do antiracismo e do
antifascismo, ao mesmo tempo que a sua absorção por uma política
mais radical dos movimentos sociais da Nova Esquerda, nascida no
final dos anos 1950 um pouco por todo o mundo ocidental, numa espécie
de redemocratização dos princípios pós-comunistas...” Com
efeito, lendo calma e atentamente certas histórias e inclusões
verificar-se-ão uns quantos exemplos de temas que eram abordados com
maior urgência e avanço na bd de super-heróis em fatos coloridos
do que nas páginas dos jornais sérios do mainstream
(o autor nunca defende que há uma “vanguarda” de pensamento
nesta bd comercial, mas simplesmente que não mima a norma dos meios
de comunicação social vigentes).
O epílogo é
igualmente um exercício de imaginação para os tempos
contemporâneos, mas estamos perto demais do quadro para o
compreender. Poderemos dizer que o último capítulo é dedicado à
forma como se elegem enquanto temas centrais da banda desenhada de
super-heróis contemporânea a morte e a destruição, chegando-se a
um novo conceito que é o do “cadáver maravilhoso”. Este
“ofertou uma meditação visual sobre o que poderia significar se o
super-herói desenvolvesse uma relação anti-social para com o
estado e a comunidade nacional, abrangendo o valor da morte como uma
maneira de galvanizar a acção pública contra possibilidades
políticas limitadoras” (273) – o autor discute sobretudo as
mortes do Super-Homem no início dos anos 1990, a do Capitão América
por Brubaker et al., etc. Mas essa operação não é mais do que uma
transformação nos papéis das personagens, que se vão alterando
para tentar corresponder a um mundo (pelo menos no “Primeiro
Mundo”) em que as alianças transnacionais, identitárias em fluxo
e a cultural global colocam em crise inscrições culturais mais
estreitas.
Todavia,
o autor está também alerta ao tipo de co-optação, como se diz nos
nossos dias, ou recuperação, ou aproveitamento, ou absorção, da
parte dos poderes normativos, pelas práticas “desviantes”. Como
exemplo, apresenta uma capa “variante” de Astonishing
X-Men no. 51 por Phil Noto, em
que se subsume o casamento homossexual das personagens Northstar e
Kyle Jinadu a toda uma série de outras alianças entre personagens
da Marvel, e ainda um espaço em branco para a fotografia do leitor.
O que parece ser uma actividade de empowerment
e implicação directa do leitor no mundo imaginário daquelas
personagens acaba por, na verdade, “achatar (ou pelo menos
homogeneízar sentimentalmente) a heterogeneidade das experiências
de vida dos leitores individuais com uma imagem tradicional da
reprodução e geração heterossexual, [i.e.] 'mais uma foto para o
álbum e casamento...'” (280).
Ainda assim, é
precisamente a abertura e flexibilidade destas personagens perante as
novas realidades sociais que merece pelo menos uma atenção aberta e
cuidada para tentar compreender em que medida é que podem ajudar a
pensar melhor.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do livro.
3 comentários:
Olá Pedro:
Escreveste muito, mas nada do que escreveste me convence de que este livro não é politicamente naïf. Se não vejo acima as três palavras "separação de poderes" é porque o é. Por outro lado também nada acima me diz que nas histórias de super-heróis não há bons e maus e ergo maníqueísmo. Espero é que não aconteça aqui o que aconteceu no livro de Bradford W. Wright em que este escolheu ler só o que lhe interessava (pág. 3 de Captain America # 122) e "esquecer" o que não lhe corroborava a tese (pág. 5 do mesmo comic).
Estou a preparar uma entrevista ao autor (vamos ver se corre bem), e compreendo perfeitamente essas perguntas. Porém, o ponto de vista de Fawaz é menos o de uma crítica política como uma desmontagem marxista automática, digamos assim, do que uma inquirição ao uso da cultura popular como forma possível de expressão de identidades alternativas àquelas que são pressupostas pelos próprios produtores. É nesse sentido que me parece que ele segue alguns instrumentos que foram lançados por Gramsci e tornados mais articulados no campo cultural por John Fiske. Como o próprio escreveu em "Understanding Popular Culture": "Everyday life is constituted by the practices of popular culture, and is characterized by the creativity of the weak in using the resources provided by a disempowering system while refusing finally to submit to that power." Não me parece que Fiske seja politicamente naïf. Se Fawaz o é, não utilizando todos os instrumentos que teria para empregar, não sou eu a pessoa certa para julgar.
Não penso que tenhamos de ver as coisas de uma forma exclusiva, do tipo "tudo o que é de super-heróis é mau", integrando numa suposta ideologia hegemónica e unilateral, tal como outro qualquer território. Sem dúvida que são fantasias ancoradas em compreensões muitas vezes populares do poder, do excepcionalismo, do individualismo e, claro está, o necessário opositor reduzido à unidimensionalidade, mas é precisamente no interior dessas limitações que o autor tenta explorar em que medida é que essas fantasias populares alimentam, ainda assim, papéis activos de re-inscrição social e cultural. Uma das limitações do livro estará em que lhe faltaria um último capítulo(?) mais virado para a sociologia, que analisasse a "vitória dos geeks", que tem ocorrido nos últimos dez anos (repare-se a popularidade nas notícias de um jogo como o "Pókemon Go", que há décadas estaria relegado a uma coluna em revistas da especialidade; ou o sucesso comercial de toda uma série de filmes baseados em comics, jogos e literatura juvenil).
Aceitam-se sugestões para "apertar" o autor.
Obrigado!
pedro
Todas essas leituras estão muito bem, mas tenho três objecções: 1) utilizar instrumentos críticos alheios de forma acrítica, passe o paradoxo, não me parece muito inteligente (podia-se citar também Michel de Certeau, Gayatri Spivak, etc..); 2) até que ponto é que é avisado às minorias macaquear o poder? Quando me dizem que super-heroínas representam mulheres "fortes" pergunto-me sempre: para que o são? Para fazer o mesmo que os seus congéneres super-heróis? Por outro lado pergunto-me onde está o "empowerment" se "combatem o crime" em trajes menores e em saltos altos? Digo o mesmo mutatis mutandis para as Barbarellas e companhia; 3) e este é mesmo um ponto fulcral: se o super-herói gay ou negro serve de polícia, juíz e carrasco num mundo a preto e branco e em que o establishment é sempre o bem está ou não está a servir o poder à la Uncle Tom? Não podemos perder nunca de vista que a banda desenhada de super-heróis é uma exploitation: se falamos de blaxploitation, sexploitation, em suma, minorityxploitation é sempre de superfície que estamosa falar. Se os problemas das minorias fossem retratados com profundidade num comic de super-heróis (o simples facto de estar a escrever isto já me parece ridículo) o comic implodia comercialmente (não reconhecer isto é ser politicamente naïf). O problema da democracia é um problema à parte, mas liga-se ao que escrevi acima: mesmo que a democracia seja uma piada de mau gosto (e é o que é, realmente) é sempre preferível aos valores fascistóides (de que a glorificação da violência e o posturing é um subproduto estético) subjacentes a qualquer história de super-heróis. (Não reconhecer isto é também se politicamente naïf.)
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