É bem possível que, anos no futuro, olhemos para trás e
vejamos o papel de Nuno Saraiva como que ocupando um papel fundamental numa
certa imagem de Lisboa. Uma das grandes desvantagens de existir apenas uma certa
atenção crítica ou massificada para com banda desenhada existente em livros é
colocar na sombra outro tipo de produções, como por exemplo a banda desenhada
em jornal, a qual, não sendo de facto mais uma das colunas vertebrais desta
disciplina artística, como o foi entre os séculos XIX e XX, não deixa de ter
aqui e ali alguma presença. E no caso de Saraiva, uma presença de uma
importância extrema. Afinal de contas, a sua produção tem atravessado décadas
quase ininterruptas de uma média de duas páginas publicadas por semana em
vários semanários, do Independente ao
Expresso, e inclusive o Sol, de onde saem estas páginas reunidas
em volume. E se algumas séries primitivas associadas aos jornais foram sendo
reunidas em livro (Filosofia de Ponta,
Arnaldo o pós-cataléptico, A Guarda Abília), muitas outras nunca
encontraram esse poiso físico mais definitivo, e quase seguramente mais por
responsabilidade do próprio autor, mais preocupado com a produção do passo
seguinte, do que esse balanço e congelamento da forma através da colecção
livresca (restava o blog Na terra como no
céu). (Mais)
Com efeito, é necessário compreender a produção de Nuno
Saraiva de um ponto de vista de “séries” ou “ciclos”, e mais temáticos que
narrativos. Com a excepção do trabalho elaborado com Júlio Pinto, ou algumas
outras colaborações em projectos de livros (como foi o caso do livro dedicado ao
Guadiana Encantado), a esmagadora
maioria do trabalho deste autor tem seguido núcleos temáticos e uma (quase
sempre) fórmula estrutural. Esses núcleos têm rondando questões literárias, figuras
da história, temas sociais e políticos du
jour, sempre com os ingredientes principais do autor – uma certa ironia blasé e uma carga forte de erotismo -, e
acima de tudo com um intuito principal, ou pelo menos um resultado coerente:
uma visão sobre a personalidade ambivalente, mutável, entre o desenxabido e
desenmerdado, dos portugueses. Acresce a essa contínua pesquisa e resposta aos
temas hodiernos a prática que o autor tem tido junto à representação oficial da
cidade de Lisboa, graças aos esforços conjuntos entre a EGEAC e o atelier
Silva!, que lhe tem garantido espaço para criar as imagens das Festas da
Cidade, entre outros projectos que elegem as suas imagens como a “assinatura”
gráfica de Lisboa para essas ocasiões. Mais ainda, a própria actividade
associativa do autor junto à Mouraria com a Renovar Mouraria (desdobrando-se
nos projectos do jornal bairrista Rosa
Maria, de murais, acções recreativas e até mesmo a emergência de uma
espécie de mascote com a “Rosa”, aliás protagonista da tira “A vida em Rosa” do
jornal citado), é apenas mais um ingrediente para reforçar esse papel. Enfim,
muitos factores concorrem para quase pensar em Nuno Saraiva como o artista
oficial de Lisboa.
Quanto à
técnica, referimo-nos à fórmula estrutural aventada acima: todas as histórias
são curtas, de duas páginas, com uma primeira vinheta ou secção ocupada pelo
título e mostrando autonomia entre si. No caso de Fado, as histórias têm quatro páginas, e apesar de um par de
personagens recorrentes, por assim dizer, essas histórias não estão encaixadas
umas nas outras numa estrutura narrativa maior. São quase tão-somente “peças” que
vão contribuindo para o tema central. Mas parece ter sido pensado logo à
partida com vista a um livro
A história do fado é complexa e atravessou várias fases, cada
qual informada, como não pode deixar de ser, pelas correntes das transformações
políticas, sociais e culturais de um Portugal que apenas a custo entrou na
modernidade e depois na democracia. Não pode é haver dúvidas de que, para mal
ou para bem, goste-se ou não, o fado conquistou aquilo que Rui Vieira Nery
chamou de uma “legitimidade político-ideológica e a dignidade estética”, que
até já tem direito de cidadania, senão exigido, em encontros de motards. Mas o autor não está
interessado nem em construir uma narrativa coesa de princípios pedagógicos nem
tampouco erigir um mundo fechado e coerente em que pudesse surgir uma espécie de
“espírito” da vida de fadista, mesmo que mítica. Eventualmente, poder-se-ia pensar
num projecto como Rebetiko, de David Prudhomme,
como um contraponto. O livro do autor francês centra-se na vida de um tocador
de bouzouki, instrumento central da canção grega de influência turca rebetiko, populada no seu início pelos “mangas”,
uma população de trabalhadores pobres, dados à bebida e ao haxixe, às paixões
de uma noite e jogos de faca. Muito idêntico a um certo imaginário de “mânfios”
de Alfama ou do Bairro Alto em torno do fado enquanto canção de putas e marinheiros.
Tal como o rebetiko, os blues, o pansori coreano e outras linguagens musicais
pelo mundo fora, também o fado poderá ter tido uma origem extremamente popular
e mesclada com o “multiculturalismo” das cidades portuárias (se bem que as
relações que se estabelecem com o lundum ou até com as cardjas seja hoje visto
menos como sustentado musicologicamente do que pelas tentativas de criar raízes
identitárias ora míticas, ora antigas ora transnacionais, conforme a ideologia),
mas seja como for, seria profundamente transformado no aproveitamento
contemporâneo pelas suas características identitárias e homogeneizantes.
Afinal, o fado não é mais a canção de Lisboa, mas um património mundial, o que
vem reforçar a canga e pátina comercial, segura e explorável dessa expressão.
O livro
de Prudhomme demorava um dia na vida desse músico boémio, permitindo que a
partir desse filtro entendêssemos não apenas a prática artística, mas o papel
sócio-cultural daquela canção num período muito particular. Nuno Saraiva está
menos interessado num filtro dessa natureza, do que procurar beber mais
livremente de toda a história e elementos para criar trechos soltos que possam contribuir
para o entendimento desse tal património. Todavia, não podemos deixar de sentir
que é precisamente por todas essas escolhas – formais, de estratégia temática,
de dispersão narrativa –que Tudo isto é
fado!, como o próprio título parece confessar, não se quer nem concentrar
nem comprometer. Como se costuma dizer, dá
uma no cravo e outra na ferradura, prestando atenção a figuras mais
localizadas e míticas, como a de Fernando Maurício, à “embaixatriz” Amália,
confirma os mitos em torno de Marceneiro e dá espaço igualmente à mitificação
de Mariza ou de Camané. Mostrando momentos das suas humildes origens no bas-fond da cidade e visitando Las
Vegas, para o Grammy dado a Carlos do Carmo. Sublinhando anedotas conhecidas e
apócrifas, que alimentam os mitos necessários, e visitando experiências de
encontros transdisciplinares em torno da canção. E, de modo repetido, mostrando
imagens em postal de Lisboa, de locais e objectos e pessoas icónicas que
alimentam todo esse “bicho”, inclusive introduzindo homenagens e desvios muito sui generis.
Contudo, como dizíamos, há uma sensação de evitarem-se certos
contornos que poderiam ter-se tornado em elementos mais fortalecedores deste
projecto. Por exemplo, uma das histórias no livro elenca os poetas a quem se
foram buscar as palavras para habitar o fado, de Camões a Júlio Pomar, de Ary a
Natália Correia. Teria sido curioso ter explorado a controvérsia que Amália
teceu quando, com o seu Cantigas numa
língua antiga, rompeu com um tradicionalismo que se pensava que ela
defenderia. Hoje talvez seja difícil vê-la como iconoclasta, mas foi
precisamente isso o que ocorreu. Carlos do Carmo pode parecer uma figura hoje consensual,
mas a faceta de chanteur ou crooner de fado (mais do que “fadista”
propriamente dito) teve os seus obstáculos. A complexa relação entre o regime
de Salazar e a canção que entretanto, contra o gosto pessoal do ditador, mas
perfeito instrumento de propaganda, se tornou a “canção nacional” é apenas
tocada ao de leve. E quando alguma informação surge de atacado, como a catadupa
de nomenclaturas de tipos de fado, não de forma explicada, contextualizada ou
suficientemente diferenciadora, enfraquece o propósito, a nosso ver. Pois
afinal, qual é o papel deste volume? Uma nova apreciação do fado? Uma sua re-apresentação?
Uma celebração da sua história e variedade? Uma reflexão sobre o seu papel
junto a uma nova geração, que tanto abraça a contemporaneidade pós-global como
o reforçar de identidades nacionais? Ou simplesmente uma colecção de pequenas
peças soltas e desirmanadas, unidas pelo tema?
Não é por acaso de que uma das últimas histórias do livro, “Os
desenhadores”, é simultaneamente uma assinatura, uma “confissão de arte” e,
ainda, uma forma de Nuno Saraiva se integrar numa tradição que ele assinala para
nela melhor se posicionar. A “tradução” do fado em imagens passa pelos
tatuadores do século XIX sob as notas plangentes da grande Severa, e a elas
juntam-se a tela de Malhoa, as caricaturas de Bordalo, os desenhos à vista de
Stuart, os “Ecos” de Carlos Botelho e os cartazes de Almada. Para coroar essa
procissão de nomes maiores, e com toda a correcção e merecimento, Saraiva
mostra-se a si mesmo a pintar o famoso mural colectivo nas Escadinhas de São
Cristóvão, à Mouraria. Escreve o autor: “Moral da história: Ao fado tudo se
pinta”. Uma turista tira uma foto (em telemóvel) ao mural, dizendo “Uau! Very typical!”.
Realmente, “típico” não é, mas constitui-se de imediato como tal, uma vez que
se vem entrosar de modo perfeito a esse tal encontro entre a contemporaneidade
do turismo global (tuk-tuks, bares de gin e hispterismo) e a afirmação
identitária “milenar” e exclusiva. Estamos bem longe de desconstruções dessa “tipi-cidade”,
e num contributo a essa imagem algo difusa.
A integração de Saraiva nesse “mural da história” é, porém,
extremamente acertado e correcto, sendo ele um, se não o, novo autor dessas imagens que se irão acumulando num futuro já projectado
de imagens oficiais. E nós somos, é nosso privilégio mas igualmente
responsabilidade, testemunhas contemporâneas.
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