À medida que o tempo avançar
e a esmagadora maioria dos protagonistas da guerra colonial começarem
a deixar este mundo, o processo da sua memória vai dando cada vez
mais frutos, e poderá mesmo chegar ao espaço público. É algo que
se tem verificado, como um padrão, noutras circunstâncias
históricas. Se quase se pode falar de um “pacto de silêncio”
feito por essa geração em relação àquela que imediatamente
gerou, o tempo aproxima-se em que também os objectos da cultura
popular – no caso, a banda desenhada -, começará a responder. Não
vamos fazer aqui o enésimo exercício de listar os trabalhos desta
disciplina que versaram este conflito. Nos últimos anos, OsVampiros teve algum impacto, se bem que escolheu um caminho da
narrativa de género; Filhos do Rato afasta-se dessa abordagem
mais espectacularizante, validando porém elementos fantásticos. (Mais)
Com efeito, o livro pretende
ter um cariz mais realista e com um impacto político mais sofrido,
tendo como protagonista um soldado guineense a combater pelo Ultramar
luso. Uma voz usualmente arreigada dos nossos imaginários ou mesmo
aprendizagens, e nisso avança desde já uma força inesperada. O
problema está em que, de maneira a não criar um efeito de
densidade, talvez, ou de matéria passível de ser esboroada pela
compulsão dos factos, acaba por escolher uma aproximação mais
diluída. Para já, Filhos do Rato evita criar discursos de
contextualização histórica generalistas ou externos à atenção
central da intriga, no texto central da banda desenhada. Apresenta,
contudo, uns complementos finais que criam esse mesmo quadro,
histórico, mas sumário. Não se cria nenhuma circunstância
espácio-temporal precisa, mas antes vaga: “Guiné”, “Inverno””,
“1973”.
Ainda assim, a escolha dessas
legendas dizem muito. Divida em dois momentos distintos, no Verão de
1973, isto é, após 10 anos de combate e quase no fim da guerra
colonial, e depois no Inverno de 1975, já depois da independência,
no primeiro caso surge “Guiné Portuguesa” e no segundo “Guiné
Bissau”. A transformação do nome significa muito no plano
político. Mas como é que isso se traduz no livro? Traduz-se na pele
e na violência da vida do protagonista, o qual terá a terrível
oportunidade de ser marcada nas duas faces. Por que Pátria se bate
ele? Que “honra” há na mortandade? Que glória o espera? Ele
acaba por se tornar numa metonímia do sofrimento (de parte) do povo
que poderá representar…
Mas o sumo está no aparente
quotidiano que cria a matéria que se adensa para depois ser melhor
derrubada. A camaradagem da soldadesca, as conversas nostálgicas, os
desejos masculinos amarrados a fantasias quando estão ainda mais
presos ao mato e ao conflito. Os diálogos têm um ligeiro sabor de
estranheza, pela forma como são marcados pelo calão da época.
Se a estrutura narrativa é
clássica-moderna, com a sua tripartição cronológica, a intriga é
algo indecisa sobre a inscrição em termos de género. Não é
totalmente realista, muito menos documental, mas tampouco realista
mágica nem abraça totalmente o maravilhoso. A sua ambivalência,
parece-nos, é mais acidental do que planeada.
Em
muitos aspectos, Filhos do Rato é devedor de uma estética
que encontrou na primeira Vertigo, de Karen Berger, um seu ponto
alto: histórias sobre acontecimentos reais, históricos ou
verosímeis com um qualquer grão de imponderabilidade fantástica,
aterradora mesmo, exercendo o seu peso nos sentimentos mais negros da
humanidade, face aos crimes que ela própria consegue perpetrar
contra si mesma. Delano e Ennis na linha da frente, em termos de
argumentos em torno do género da guerra.
Mas
também no plano visual existem afinidades. A arte de Fábio Veras
também habita um território que será familiar aos leitores daquele
selo editorial. Uma figuração entre o estilizado e suave em certos
momentos, com pontos mais realistas e depois desvios brutos gráficos
à la Sienkiewicz ou Kyle Baker aqui e ali, aumentando as
potencialidades expressivas. O autor insiste num preto e branco de
alto contraste, e um segundo cinzento para peso e dimensão, mas em
sequências-chave, lança mão a escolhas cromáticas, limitadas mas
efectivas. Como se fossem relâmpagos: súbitos, iluminadores, mas
nem sempre revelando algo que se queira guardar na memória.
Aliás,
o uso do preto e branco é aqui não apenas escolha (ou até
necessidade), mas torna-se plataforma de significado claro. No
momento de entrada na acção dos protagonistas, o soldado negro fala
com balões preenchidos a preto em contraste com os do soldado
branco, com balões a branco (diria mesmo “normais”, se o uso
dessa palavra, aqui neste contexto, não sublinhasse por demais
precisamente o problema de ver na “normalidade” um sinal de
“normatividade” contra a qual qualquer outro uso é visto como
“excessivo”, “errado”, “desviante”, etc.).
A
história deste volume apresenta-se finita, no seu sentido narrativo.
Mas na representação, teme-se, talvez possa ser infinito.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
3 comentários:
Este texto está melhor escrito que o livro todo.
Bastante mais eloquente que o argumentista da história.
Ao menos, um chinês de Telheiras tenta compensar,
metendo umas piadas secas para vender o peixe.
Pena que não resultam.
realmente tudo isto é triste, um autor que não acredita no seu trabalho, que é realmente medíocre e um crítico a vender esse peixe...
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