Mais uma vez, o trabalho de Manuel Caldas merece ser celebrado pela sua incansável dedicação ao restauro (literal) da arte de grandes autores de banda desenhada e (mais metafórico) da memória dessas mesmas obras nos nossos dias. Este post curto servirá apenas para alertar da edição d'O Caminho do Oriente, uma série que foi publicada na revista portuguesa de banda desenhada O Mosquito, um dos títulos mais importantes e de sucesso num tempo áureo, em termos comerciais, na sua primeira série. Surge agora em formato livro, em capa brochada, completa, ainda que num formato menor do que o original, dificultando para alguns leitores míopes (wink, wink) a sua leitura mais fluida. Mais, há aqui uma recepção muito pessoal, dado o trabalho em curso em torno da adaptação de Os Lusíadas para banda desenhada sob a minha responsabilidade. (Mais)
Publicada entre os anos de 1946 e 1948, Caminho encaixar-se-á em toda uma série de categorias expectáveis e “apertadas” da banda desenhada da época. Segue, enquanto lição central, uma estratégia didáctica sobre o seu tema principal – a navegação até à Índia da frota comandada por Vasco da Gama, cuja partida de Belém foi em 1497. É também, como outros títulos, uma celebração do “génio português”, já que a Exposição do Mundo Português estaria ainda avivada na memória, e tinha pautado toda a cultural popular e dirigida aos mais novos durante o Estado Novo. É ainda uma promoção do “Português Suave” nas suas relações coloniais, naturalmente, pela forma como são retratados os outros povos, ora como selvagens inimigos ora como amigos bonacheirões, mais ingénuos e patetas que cândidos, e onde a “esperteza” do português sempre funciona a nosso favor. Existem cenas mesmo que, vistas aos nossos dias, são chocantes por constituirem crimes contra a humanidade, crueldades hediondas, mas que nestas páginas no seu tempo seriam entendidas como a “natural missão civilizadora” do Portugal cristão e para cuja ideologia estas mesmas páginas e publicações contribuiam enquanto indoutrinação social.
O livro possui um texto de António Dias de Deus, falecido em 2018, e quem deixou a obra mais sólida da historiografia da banda desenhada em Portugal. As suas breves notas, esclarecidas, cultas e com um vinco pessoalizado, são uma nota positiva nesta edição. Consabidamente, Caminho baseia-se, em larga medida, na mesma “matéria” que Camões utilizou para criar Os Lusíadas, (surgindo por exemplo a personagem fictícia Fernão Veloso, criada pelo poeta), mas se a obra mais definidora da identidade literária portuguesa empregou fontes eruditas, como os livros de Fernão Lopes de Castanheda, João de Barros e Diogo do Couto, Correio teve a “vantagem” de auscultar a obra conhecida como Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia, apenas trazida a lume no segundo quartel do século XIX, e usualmente atrubuída a Álvaro Velho. É esse relato que vem criar, nas belas palavras de Dias de Deus, esta “epopeia vista por baixo”. Esse “baixo” é tanto social – a classe dos marinheiros, dos soldados, dos homens a soldo, portanto, e não dos “varões assinalados” do poema épico... - como etário, já que, e como manda a lei destas publicações, todo o foco narrativo é feito através do protagonista, o jovem inventado para a saga, Simão Infante. Dessa forma cria-se igualmente um mecanismo de articulação entre outras personagens mais patéticas, e que erram mais, e as outras mais “alevantadas”, como o austero Gama. Não sendo propriamente um mecanismo literário inovador (a honra poderia ser atribuída a François Fénelon), o uso do tropo “perspectiva infantil” para facilitar a leitura da grande viagem é bem trovata.
Todavia, apesar do tom nostálgico de reler esta prosa de Raul Correia (na sua versão primitiva e original), há um sabor que já passou, não para falar da própria estrutura de legenda pesada sob a vinheta, em vez das estruturas mais fluidas da banda desenhada moderna (mesmo na altura, já era um “sabor antigo”). Por isso, “reler” talvez não seja o grande objectivo... Mas é sim o da recuperação da linha de Eduardo Teixeira Coelho, das cores singulares ou duplas que iam mudando de número para número e que aqui se mantêm. Cores as quais, se no original se espalhavam em manchas por vezes menos elegantes para vislumbrar a linha do artista, aqui surgem como nimbos que a sublinham e destacam, na verdade.
Houve uma edição anterior recente, com um trabalho de recoloração digital, a qual, tendo os seus méritos, sobretudo de tentativa de recirculação, trouxe um uso de cor contemporâneo, texturado, de gradientes que, francamente, apagava por completo o trabalho burilado de E.T. Coelho e, mais desvirtuava a capacidade da qualidade arquivística da série. Tendo tido o privilégio de ver de perto e até manipulado obras e esboços originais do desenhador, existem aqui vinhetas que são autênticas pérolas de iustração realista, composição heróica, e momentos de grande dramaticidade. Mas igualmente figuras perras, atalhos menos felizes, histrionismos desnecessários, e tropelias incompreensíveis, todas próprias do “fabrico” comercial da época. A questão da cor, todavia, tem-se igualmente passado com muitos trabalhos de recoloração recentes em companhias como a Marvel, DC e outras norte-americanas, tal como discutido com mestria por José Villarubia (mini-masterclasses no Facebook, e de borla!).
Regressando a uma tecla tantas vezes repetida no Lerbd, esta é uma daquelas edições que vem assegurar a “recuperação da memória”, e estamos em acreditar que haverá matéria aqui de inquirição histórica e política da produção da banda desenhada nacional, contraste entre as condições de produção de então e hoje, formas de escrever história e questões de beleza e estética na linguagem desta arte.
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