Há um livro bastante influente, da área das Ciências Sociais da Ciência e Tecnologia, de Sherry Turkle, que cunhou uma expressão, ou melhor, um descritivo de um determinado tipo de obectos, a que ela chamou “evocativos”. São estes objectos a que uma pessoa, de um modo quase singular, muito pessoal, mas perfeitamente familiar para quase todos nós, atribui uma tal significância cultural que espoletará respostas emocionais, de memórias ou reflexões particularmente fortes. Um papel, foto, bilhete, cartão que temos sempre na carteira, uma concha ou bugiganga qualquer que temos sempre connosco, um objecto foleiro que dispomos em casa, uma relíquia que estimamos. Seja o que for, esse objecto existe não apenas como âncora de algo do nosso passado, ou que reclamamos para nós, mas que se torna igualmente um veículo das nossas próprias (auto-)narrativas ou de conexões emocionais.
Se se acreditar, pelo menos nos seus traços gerais, na teoria psicanalítica, essa descrição poderá recordar os chamados “objectos transicionais”, conceito desenvolvido por Donald Winnicott, e que diz respeito a algo que serve de “ponte”, num estado de desenvolvimento infantil, entre o si e o mundo externo, contribuindo sobremaneira para o bem-estar emocional enquanto se cresce. A mais famosa ilustração desses objectos é, sem dúvida, a “fralda” do Linus, dos Peanuts de Shulz. Mas poderia ser um brinquedo, um boneco de peluche, uma peça de roupa, etc. e, mais uma vez, é um mecanismo de gestão entre a realidade externa e um mundo interno, de fantasia.
Leitores do fantasioso e cross-genre No. 5, da novela de liceu desportiva Ping Pong, ou da aventura de alta octanagem Tekkonkinkreet poderão ser levados a pensar, num repente, que teríamos entre mãos mais uma longa novela relativamente fácil, leve, e divertida, mostrando as desventuras de todo um rol de personagens jovens sui generis. O seu aparente realismo revelaria uma ancoragem em situações de slice of life, mas estaríamos num território relativamente seguro em termos da complexidade das emoções. Afinal, crianças tão novas não poderão transmitir uma ideia de finitude da vida, por exemplo, ou isolamento, de um modo tão impactante quanto pessoas com mais experiência de vida.
Precisamente o oposto tem lugar em Sunny. O facto de serem crianças “abandonadas” - sem moralidade, aqui, até porque a maior parte deles não apresenta uma clara backstory que faça compreender de modo total qual a razão de ali terem ido parar, mesmo que a personagem de Sei possa servir de “filtro de apresentação” do lar, as suas personagens, rotina e dinâmica – cria de imediato uma situação que nos convida (obriga?) a escutar as suas palavras e atitudes e pensamentos sobre essa mesma situação com atenção plena. E o resultado é, quase sempre, mais que tocante, doloroso. Quase todas elas são muito cientes da condição das suas vidas, são inteligentes a ponderar sobre isso, e até a “defender-se”, mesmo que em alguns casos (sobretudo Haruo; a cena deste a “confessar” que a oferta dele ser adoptado por um realizador de documentários televisivos é dolorosa [v. imagem]) essas reacções pareçam desajustadas, violentas, displicentes, juvenis, etc. É apenas a raiva a encontrar caminhos alternativos, estúpido!
Independentemente da idade e da condição deles, e do grau de relação que têm com os pais (alguns visitam os pais no trabalho, outros recebem os pais em visitas ou encontros fugazes, outros apenas contactam por telefone, outros vivem na sombra da expectativa de uma carta que nunca, nunca chega), vemo-los não apenas a navegar os vários matizes do abandono, do isolamento e da solidão (mesmo numa casa tão cheia, mesmo com brincadeiras boas, mesmo com solidariedade mútua, há sempre um espaço de absoluta solidão, como se soubessem que o consolo humano, à la Stigerman, não encontrará satisfação nenhures), mas a aceder, de quando em vez, a um espaço de fuga, um escape, uma fantasia protectora: o Sunny. O carro, abandonado ele também, sem “pai”, mas que lhes serve de porto de abrigo, sala de leitura, ponto de encontro, palco de diálogos profundos, mas igualmente de carro de corridas malucas, nave espacial, ou pura e simplesmente canto para estar sozinho e pensar com os seus botões. O Sunny é o objecto evocativo que todos partilham, criando o elo principal entre as crianças – mesmo que seja invisível para elas, mesmo que nunca o digam, não percebam sequer. Ele também é um objecto transicional através do qual elas gerem as dores e frustações dos seus crescimentos diferentes nesse afastamento parental e aproximação geracional uns com os outros (e demais personagens, desde o administrador, o sr. Adachi, ou o alienado mental Taro, ou as lojas e ruelas e animais à volta da casa).
Alguma da recepção mais popular sente-se frustrada na leitura destes volumes, uma vez que não existe uma absoluta centralidade de um só protagonista e depois a perseguição de uma unidade de acção na narrativa. Com efeito, não estamos de forma alguma perante uma estrutura aristotélica e centrada na “unidade”. Há, pelo contrário, uma multiplicidade da atenção, em que cada capítulo elege uma das crianças da Hoshinoki, focando-se nela de forma singular ou em relações com outra ou outras personagens, para criar, em cada qual, uma narrativa finita. Não quer isto dizer que não se possam notar em elos de um capítulo para o outro, consequências morais ou de emoções que ocorram num capítulo desembocando na melhor compreensão dos eventos de um outro, mas sem quaisquer tipos de – para já, nos dois volumes iniciais – crescendo linear. Mas se os leitores lerem, não com a pressa da totalidade, cada um dos relatos individuais de forma pausada, e deixarem o impacto de cada capítulo ecoar nas suas mentes, e corações, entenderão a potência fulminante de Matsumoto.
Não sabendo japonês, não entenderei qual é a subtileza da diferença entre as palavras que são empregues no original e que criam uma espécie de binarismo (num sentido de tensão de duas noções distintas), e quem em português é traduzida, em ambos casos, por “casa”. Mas o leitor compreende de imediato que existe uma espécie de patina que cobre aquelas crianças que vivem na dita casa de acolhimento Hoshinoko, e as outras com que dividem as aulas na escola e que vivem com os seus pais. Ambos têm casa, mas essa noção não diz respeito somente a um espaço com tecto, nem um nexo em que co-habitam familiares (de sangue) ou até de uma relação de amizade. É um traço na construção das suas identidades, é um descritivo (não-dito) de quem são, e que os fundaciona.
O desenho de Matsumoto é um misto entre uma expressividade nervosa e um minimalismo estilista, nesta série. Usando o que imagino ser canetas de várias espessuras, aplicações de aguadas, e, nas páginas a cor, ecolines e outras tintas em papel pardo, criando de imediato texturas, o artista lança mão de técnicas diversas para criar um permanente desequilíbrio e dinamismo nas cenas. A composição é particularmente influenciada por autores europeus, tirando partido de estratégias retóricas de diversidade do tamanho e distribuição de vinhetas, por vezes mesmo multiplicando o seu número até às 6 ou 7 (o que não é muito comum na mangá), e até mesmo a enquadramentos muito apertados, atenções “ambientais”, diminuindo o tempo, sempre no intuito de criar espaço suficiente para as emoções, pensamentos, choques, terem tempo de serem geridas não apenas pelas personagens, mas pelo leitores também.
Esta é uma série de precisa de leitores alheios a estratégias de fantasia fácil, ou storytelling com pressa de chegar ao clímax. Sunny apresenta-nos pequenos momentos, intervalos nas vidas destas crianças, que estão já pejados de emoções em todas as perguntas que fazem, em todos os gestos que cumprem, em busca de quem as oiça e ame.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos volumes.
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