Desde já peço desculpa pelo carácter mais pessoal e confuso deste post, menos acerca do livro em si do que de considerações apensas. Espero, no entanto, que sirva de exposição de uma questão que me surge de quando em vez. Eis-me aqui deparado com uma aporia, ou provavelmente nem tanto, ou ainda menos: uma breve e mera questiúncula. Ao receber um livro da parte do seu editor, mormente quando se trata de grandes plataformas cujo interesse comercial está à frente de outro tipo de preocupações, de expressão, contributo ao alargamento do campo no qual se integram, etc., haverá uma consequente preocupação do crítico em estabelecer uma mínima boa relação com esse mesmo editor, para que haja uma manutenção dessa relação, a qual se traduz pela contínua recepção de livros. Parte desse registo é o que leva a que a chamada “crítica de imprensa” dê mais atenção aos produtos de grandes editoras, capazes dessa política de divulgação, ao invés de vermos, pelo contrário, um esforço da parte dessas vozes em procurar produções relativamente fora da atenção mais usual do público (seja esse o “grande” ou o “especializado”). Por outro lado, é minha política crítica – enleada com o grau de “divulgação” que lhe é próprio, isto é, baixo, uma vez que este espaço quer-se co-leitor de livros lidos, e o tipo de discurso academizante que cultiva elaborada desde logo uma triagem de leitores (que não passa por uma “qualidade” ou “hierarquia”, atenção, mas sim de “interesses” ou “preocupações”) e não mero repositório de “novidades” – de passar em silêncio aquelas obras que pouca matéria crítica me suscitam (é importante esta pessoalização, já que a crítica atravessa naturalmente um crivo e prisma que é construído individualmente, se bem que deva dialogar com outras instâncias – daí que se fale de um verdadeiro discurso crítico por oposição à mera recensão de jornal, ao impressionismo da opinião, etc., afastada pela presença da argumentação, ou de “massa crítica”, que é o entrosamento por toda uma série de referências específicas ao estudo de uma determinada área, neste caso, o da banda desenhada: o apelar ao típico “não é preciso estudar para falar de bêdê”, clamar contra a “pedantice intelectual” de um determinado tipo de discurso, etc., não é mais do que pusilânime defesa e desejo de “queimar etapas”; enfim, menos um “gosto” do que um “juízo de gosto”, sintético, estético, reflexivo...).
Isto deve-se ao facto de ter recebido da Casterman, entre outras publicações, estes dois volumes da nova faceta da colecção Sakka, a qual acompanhámos aqui através dos títulos de Hideji Oda, Kiriko Nananan, Daisuké Igarashi, Akira Sasô e Kan Takahama. A primeira surpresa, por não termos acompanhado o desenvolvimento das políticas editoriais, foi a divisão desta colecção em três frentes relacionadas com o tamanho (a saber, 15x21 – ao qual passam a pertencer as edições anteriores e aqui debatidas – 13x18 – ao qual pertecem estes títulos – e ainda 11,5x18), possivelmente enquadrando-se precisamente nas políticas editoriais mais clássicas dos tankobon japoneses. Esta decisão prende-se com a saída de Frédéric Boilet enquanto director da colecção, a qual suscitou alguma discussão, sobretudo de fãs acríticos da “mangá” (esta entendida não só como um todo como ainda enquanto plataforma de uma projecção de fantasias em torno da cultura japonesa extremamente enviesada, de adolescência tardia e verdadeiramente fanática) contentes pelo fim do seu “elitismo” e afunilamento a títulos que não eram bem “mangá”... Independentemente da personalidade Boilet, a verdade é que essa sua política mais estreita fez dele um editor atento e inteligente precisamente a todo um tipo de material contemporâneo que estava afastado das atenção mais generalizada dos “fãs de mangá”. Dificilmente encontrarão estatuetas de personagens de Kiriko Nananan ou pessoas mascaradas de Yukiko ou de feiticeiras de Igarashi nos desfiles de “cosplay”. Com a sua saída, a alegria é apenas sentida pelos leitores ávidos de material como aquele impresso pela Kana ou pela Soleil – esta, líder de vendas neste momento -, cujo lema é “tous les mangas”, não sendo isso totalmente verdade... Enfim, a mangá, que por mais desconcertados que fiquem os seus fãs, não é mais do que a banda desenhada produzida no Japão (ou com algumas características que para ela remetem), é capaz de produzir todos os graus de validade, qualidade e gestos, tal como qualquer outra produção do mundo. No entanto, a divulgação daqueles autores que experienciam uma outra maneira de ver para além dos títulos adolescentes é bem menor, quer entre nós (pela sua falta de tradução, com a excepção de um meteoro feliz com Taniguchi) quer noutros países, apesar dos esforços pontuais de certas editoras, quer a Drawn & Quartely com Tatsumi quer a Casterman/Sakka com os autores escolhidos por Boilet. A não diferenciação de público, e a amálgama da mangá (de resto, como da “banda desenhada”) como um “todo”, manterá os leitores descontraídos não só afastados como continuamente desinformados. Resta-nos, na Sakka, estes desvios para produtos de maior sinal comercial. [ainda que se mantenham alguns autores mais fortes nessa colecção, como Kiriko Nananan]
Dito isto, o que nos traz Mirai Nikki? O estudante relativamente isolado, excêntrico q.b., de escola secundária Yukki nutre a fantasia de falar com criaturas fantásticas, um Deus que gere o universo, e escreve o seu diário no telemóvel. Este Deus oferta-lhe um “serviço”, em que o diário lhe aparece já escrito, permitindo-lhe aceitar o mudar o futuro. Tudo se complica quando descobre que Deus o lança num jogo com outros indivíduos que têm acesso a “cronógrafos” semelhantes (em telemóvel ou outros formatos) e se devem eliminar até ganharem o lugar do califa... Premissa linear, sem complicações, e sem que as barreiras éticas tirem o sono às personagens. A trama em si parece lançar este livro naquele novo território de terror no qual encontraremos quer os vários títulos de Junji Ito (se bem que este não explore narrativas de longa duração, e mesmo Tomie ou Uzumaki são compostos por episódios autónomos), a famosa série de mangá/animé Death Note, e toda a procissão de filmes de terror contemporâneos japoneses (e chineses e coreanos). As características que permitem criar esse território comum é a ideia de jogo, de uma rede que envolverá de imediato um número geométrico de intervenientes, cujo objectivo é que ela se desfaça até se atingir o “vencedor”. Aliás, a história poderá fazer recordar de algumas premissas de One Missed Call, título inglês de um dos filmes de Takashi Miike. Ou as de Death Note, com o seu deus (Deus Ex Machina é o nome do deus deste título). Ou ainda de Battle Royale, com a sua moral de eliminação gradual e total. Ou seja, é mais um bric-à-brac de elementos pré-existentes do que de uma escrita instituidora.
A tecnologia faz sempre parte da equação (a cassette de vídeo, o telefone, a cirurgia plástica, e no caso presente, o telemóvel e/ou o diário), tal como a componente física, corpórea ou fisiológica (o cabelo de Tomie, a espiral ditando a carne, os olhos substituídos, a premonição por um preço), o que cria um entreleçamento que nos recordará o maior mestre cinematográfico dessa união: David Cronenberg.
Porém, se há em Mirai Nikki todos esses componentes, não se forma porém a mesma força, parece-me. Por um lado terá a ver com o estilo gráfico. Não faço parte daqueles leitores que desprezam a banda desenhada japonesa como mangá – num sentido desinformado e estreito - colocando dentro do mesmo saco seja o que for produzido nesse país. Entendo que há de facto características que aproximam uma grande parte dos trabalhos uns dos outros mas se por um lado isso se deve ao próprio substrato cultural asiático, em que o trabalho artístico se desenvolve a partir da inscrição numa linguagem de continuidade e manutenção de elementos comuns, e não na ruptura “radical”, como no ocidente, por outro estou em crer que os detractores de várias áreas de criatividade da banda desenhada como “de super-heróis”, “de tiras humorísticas”, “de aventura franco-belga”, “de rabiscada alternativa”, “de fanzineiros”, etc., terão igualmente dificuldades em separar o trigo do joio, ou até mesmo a serem capazes de vislumbrar trigo no que lhes surge como um coeso monte de joio… Dito isto, não atinge os pequenos graus de diferenciação e expressão de artistas comerciais como Junji Ito ou Takeshi Obata (Death Note), ou até Hideo Yamamoto (Ichi The Killer, Homunculus), e muito menos daqueles que serão os alternativos dessa onda mais famosa e comercial, de quem temos falado neste espaço.
Existindo oito volumes no Japão, e não se dando por terminada a série, prevê-se o seu lançamento em língua inglesa para breve, o que provavelmente a tornará mais famosa mundialmente e, já existindo planos para um jogo de computador, e adivinhando a sua fácil transmutação em filme ou filme ou série de animação, mais se esperará do seu crescimento exponencial em termos de fama. Todavia, no que nos toca, esta obra, traduzível por Diário Futuro (e a própria não-tradução do seu título para francês parece aumentar esta impressão de servir os interesses juvenis dos seus leitores, mencionados acima) constituir-se-á mais enquanto novo fenómeno (social, comercial, político, cultural) da nipomania do que de uma obra contribuinte às formas mais acabadas do seu próprio modo de expressão. Tendo em conta que muitos fãs de Death Note passaram a usar sebentas de capa preta, e que os de Mirai Nikki poderão aumentar a carga com que actualizam os seus diários digitais e confirmam os sms no telemóvel, não seria tempo de um educador com boas intenções inventar uma mangá sobre a Tabuada do Ratinho?
As minhas desculpas pela leveza, é a despedida do Verão.
1 de setembro de 2009
Mirai Nikki. Sake Esuno (Sakka)
Nota: os meus agradecimentos, quand même, à Casterman pelo envio dos vários títulos.
Publicada por Pedro Moura à(s) 2:09 da tarde
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2 comentários:
Só para dizer que a versão inglesa já saiu com o nome de Future Diary e foi editado pela Tokyo Pop.
Obrigado pela informação.
Pedro
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