13 de maio de 2012

Urban Sketchers em Lisboa - desenhando a cidade (Quimera)

Desde logo que se esperava um entrosamento entre o projecto alargado de Eduardo Salavisa - a divulgação, fomento, discussão, abertura em relação aos diários gráficos, cadernos de desenho, etc. - e o dos Urban Sketchers, fundado por Gabi Campanario - sensivelmente idêntico. A ocasião de organizar o 2º Simpósio desse grupo informal em Lisboa, o projecto editorial de Salavisa na Quimera, e a colaboração de tantos artistas levou a que a existência deste novo volume não levasse muito tempo a concretizar-se. Além do mais, sentimos, que Lisboa se transfigura sob tantas ópticas. Ou que ela está apta a receber tantas visões…
Este volume contém comunicações de alguns autores, e um ensaio mais alongado de Ruth Rosengarten, o qual, como se espera da autora, teoriza e integra a experiência dos diários gráficos numa prática mais alargada das artes plásticas mas igualmente das disciplinas da observação e do pensamento (como escreve mais à frente Manuel Sampayo, não sem razão, “não se vê até se desenhar”, pg. 95). A digestão deste ensaio de contornos filosóficos é complexa e não poderemos jamais fazer-lhe justiça neste espaço, obrigando ele a uma dedicação exclusiva. “Desenhar directamente a partir de um ponto imerso no fluxo da vida”, escreve a ensaísta (pg. 24).  Não poderá essa frase ser vista como um mote desta prática, em que o fluxo é mais capital que o ponto?
Segue-se a secção em que os proponentes dos workshops desenvolvidos tecem breves considerações e explicam os seus exercícios, partilhando-os desde logo, e assim convidando todos a repetirem-nos numa ocasião possível. “Quando partilhamos os nossos desenhos, estamos, de facto, a ensinar outros quanto às nossas interpretações do mundo, ‘um desenho de cada vez’” (escreve Matthew Brehm, pg. 20; a citação interna é o moto/manifesto dos Urban Sketchers). Há ainda uma longa “reportagem” de João Pinheiro sobre todas as acções envolvidas neste Simpósio, que permite reenquadrar cada capítulo. E, como não podia deixar de ser, não há página que não esteja ocupada com uma reprodução de um dos de centenas de diários gráficos que terão estado envolvidos neste projecto…
Se bem que o gesto inaugurado em Diários de Viagem tenha desde logo mostrado como uma multiplicidade de estilos e aproximações a esta disciplina mutável e expandida podia sempre mostrar também uma espécie de respiração conjunta, a repetição dessa ideia em relação a este livro ganha contornos muito especiais pelo facto da circunferência de acção e intervenientes aumentar substancialmente. E o que vemos, no balanço final desse conjunto, não será tanto um conjunto de desenhos - ou somente - mas um conjunto de pessoas. Como escreve António Jorge Gonçalves, referindo-se sobretudo ao seu projecto alargado Subway Life (e não somente ao que foi publicado), “Olhando agora para esses mais de 3000 desenhos que fiz, sabem quem é que eu reconheço? Reconheço-me a mim” (11).
No seu ensaio, James Richards explica como “o desenho in situ (…) [é] uma prática que sobrevive há séculos aos progressos tecnológicos, e por boas razões: converter uma  paisagem em linhas, tons e texturas permite transmitir, de maneiras que a fotografia não possibilita, a essência visual de uma cena e a nossa reacção a ela” (15, nosso sublinhado). Esta última parte surge-nos como a mais crucial (já que temos dúvidas sobre a existência de “essências” de seja o que for, independentes da construção feita por quem observa e discursa). O desenho não é uma representação de um objecto, mas antes a resposta - figurativa, estética, emotiva, filosófica - a esse mesmo objecto, e é essa a razão pela qual os desenhos de Leonardo, de Delacroix, de Constantin Guys são mais importantes pelo que nos dão a ver do pensamento dos seus riscadores do que, por vezes, a matéria figurada em si. É o acto de visão que nasce com a acção da mão, o fluxo que irrompe de outro fluxo. A “conexão entre mente, olho e mão” (17), ainda numa frase de Richards
A selecção, e inclusão, das páginas dos diários - repare-se como não se reproduz um “desenho”, tratado e isolado digitalmente no plano de composição da página do livro, mas sim a total reprodução do caderno aberto - terá atravessado uma tarefa hercúlea, sem dúvida, e não podemos pensar que outra selecção teria alterado o cômputo e equilíbrio final do volume. E, seja como for, bastará seguir os blogs dos intervenientes - alguns dos quais indicados, com breves biografias, no fim do livro, e quase todos disponíveis nas redes apresentadas por Salavisa, o blog dos Urban Sketchers e toda a comunidade - para conhecer mais e melhor os frutos do Simpósio. Todavia, aquele apetite formado pela menção de alguns dos exercícios na secção dos worshops nem sempre ficam imediatamente satisfeitos no interior do livro. Estão em falta, parece-nos, e por exemplo, os exercícios “fechados” das panorâmicas circulares propostas por Cláudio Patanè e Simonetta Capecchi, e os desenhos partilhados propostos por Clara Marta e Guida Casella. (e alucinámos quando vimos algo sobre desenhar com a mão contrária à usual?).
A leitura de todos os textos, com o nosso próprio lápis para sublinhar na mão (uma lição de George Steiner), leva ao surgimento, paulatino, ponderado e coeso de muitas questões levantadas e experimentadas por cada um dos autores ou proponentes dos workshops: Como fazer/montar o seu próprio diário, em termos físicos e objectuais? Como observar a cidade, desde a vista panorâmica circular à mais esmiuçada observação de um canto, de um objecto, de um letreiro? Como ponderar o grau de detalhe, a impressão, a frase escutada, o pensamento tecido, a  exactidão das proporções? Como escolher o melhor local para desenhar: vistas desafogadas sobre o rio Tejo, varandas abertas a toda a cidade, ou ruas íngremes e apertadas, cheias de vida? Que empregar para seccionar a perspectiva, criar enquadramentos e apoios? Que grau de atenção prestar às pessoas e às paisagens urbanas? Que relação estabelecer entre o desenho do permanente - os edifícios, os monumentos, o mobiliário urbano - e o transitório - as pessoas, os eléctricos, mas também as nuvens e a luz baloiçando nas árvores? Devemos aproximarmo-nos das pessoas que desenhamos, falar com elas, ou observá-las à distância (Heisenberg demonstraria que ambas as acções já alteram o curso dos eventos)? Como comunicar as várias “línguas” presentes numa cena? Que instrumentos escolher e como é que essa escolha altera não apenas como se desenha mas como se percepciona? Como podemos aliar o nosso próprio movimento do corpo - quer dos olhos, que vão e vêm do papel ao objecto, quer do corpo que passeia - à factura do desenho? Deve-se começar pelo ponto, pela linha, pela mancha de cor? São os contornos fictícios ou as impressões da luz o que se devem capturar? Como incorporar objectos reais pertencentes à experiência do que se desenha? Que se pode aproveitar da experiência etnográfica, arqueológica, sociológica, das artes plásticas consagradas? Como se retrata uma cidade, enfim? Saber sobre ela ajudará ao retrato ou é retratando-a que melhor a conhecemos? Desenhá-la far-nos-á redescobri-la? Saber a sua história, compreender as suas gentes, ser sensível à sua diversidade interna, aos seus ritmos misturados, em que medida torna o seu desenho mais “justo”?
São algumas das perguntas colocadas por todo este volume. E Lisboa parece ter matéria basta para responder a tudo, como Molly Bloom, com um “sim”.
O diário gráfico em Braga. Eduardo Salavisa (Fundação Bracara Augusta)
Aproveitamos também esta ocasião para apontar um outro título de Salavisa, a solo. Este pequeno volume integra-se numa colecção de livros dedicados à cidade de Braga, repescando textos clássicos das letras portuguesas, históricos e modernos, ou relatos feitos por autores estrangeiros, ou coleccionando aspectos variados da vida da cidade, por ocasião do seu bimilénio, comemorado em 2000. O convite a Eduardo Salavisa nasce de uma primeira abordagem do autor - que não dispensa desenhar em todas as ocasiões que lhe forem tornadas possíveis e imediatamente partilha os frutos desse trabalho no seu blog - e depois já repetindo a visita e a tarefa com o intuito deste caderno. É notável a forma como as costumeiras capas desta colecção - que apresenta um rectângulo central com o título e o nome do autor num campo uniformemente colorido, rodeados de uma tarja com um padrão floreado no mesmo tom (algo reminiscentes da belíssima Insel Verlag) - encontram-se aqui subsumidas ao projecto editorial do próprio Salavisa, havendo uma sobrecapa que é um fac-símile da capa do caderno em que o próprio autor terá feito os seus desenhos de Braga. Temos aqui, então, uma outra instância de entrosamento das pesquisas de cada projecto.
A prática de Eduardo Salavisa mostra preferência, e prima nela, pela rapidez do esboço, pela captura do incapturável, pela expressão do inefável, aquela qualidade - ou ausência de qualidades, pelo fluxo permanente - que Baudelaire descrevia como “o transitório, o fugidio, o contingente”. Isso é igualmente visível pelas propostas de workshop, com Mónica Cid, presentes no Urban Sketchers, e em muitas das noções indicadas pelos autores, sob a forma de desenhos ou dos textos, desse livro.
Se a imagem de uma praça, uma esplanada, ou uma rua movimentada leva a que Salavisa capture esquissos de pequenos fantasmas feitos de uma meia-dúzia de linhas, “xs” que marcam o lugar de quem passou, também a captura dos monumentos de pedra dispensam as linhas seguras do retrato, dito “fiel”, e preferem imitar antes os movimentos dos olhos e dos dedos que afagam as formas. A imagem das cornijas das janelas do barroco Palácio do Raio, por exemplo, mostram um engalfinhar de linhas que é, paradoxalmente, preciso em relação ao próprio espírito barroco e à técnica de apreensão do autor.
Um desenho pode ter várias soluções, configurações e intensidades: “a resposta para muitos problemas interpretativos por der olhar”, escreve Eduardo Batarda em Dois Desenhos, lição que demonstra a centralidade do estudo aturado, a erudição e o conhecimento preciso necessário para a leitura de certas imagens. E lembrar igualmente o perigo que a fácil “interpretação livre”, o abuso a que a expressão “obra aberta” pode levar, o facilitismo em não querer seguir vias comprovadas e necessárias para a aprendizagem do ver, ler e pensar.
No entanto, sem querer nem desprestigiar os desenhos de Eduardo Salavisa em relação a um corpus histórico (ou contemporâneo) nem querendo tornar patética uma suposta superioridade da “liberdade de criação e interpretação” das obras contemporâneas a esse mesmo corpus, essa velocidade moderna aqui presente é a sua via específica. Com esses desenhos, Salavisa mostra o seu modo de percepcionar, de reagir, de reencontrar, para nós, o fluxo da vida.
Nota: agradecimentos a Eduardo Salavisa, pela oferta de ambos os livros. 

5 comentários:

Filipe LF disse...

Obrigado pela reflexão interessada e interessante que fazes sobre o Simpósio de Lisboa, Pedro. Acuso a alucinação do exercício de desenhar com a mão a que não estamos habituados. Fui eu quem lançou a proposta. É um exercício muito comum para "sacudir" a forma habitual de observar. Ao descomprometer o lado racional através de um gesto improvável, descobrimos aspectos insuspeitos no que nos é familiar.
Abraço

Pedro Moura disse...

Caro Filipe,
A alucinação era minha, pois depois quando estava a escrever o post e a consultar as notas, folhei o livro de trás para diante e não encontrava a referência. Por favor, indica-ma, que volto a reescrever a frase, com nota do número da página. E um agradecimento, feito já aqui.
Obrigado,
Pedro

Filipe LF disse...

Grande Pedro, não há que reescrever a frase, para muitas pessoas a proposta de desenhar com a "outra" mão é de facto alucinante! É um exercício incluído no workshop cityscapes que orientei em conjunto com o Marc Holmes (não sei a página).
Um Abraço e obrigado mais uma vez!

José Souto disse...

Talvez interesse como complemento: http://vimeo.com/40228552

Pedro Moura disse...

Muito obrigado! Não estava a par do vídeo. Entretanto reparei que se escrever "Urban Sketchers Lisboa/Lisbon" na pesquisa de vídeos, se encontram muito material
Obrigado,
Pedro