12 de novembro de 2014

Pelos olhos dentro/40 x Abril. AAVV (Abysmo/Arranha-Céus)

Ambos os livros que trazemos à vossa atenção neste único texto provêm de um universo relativamente idêntico. Apesar de nascerem sob dois gestos diferentes, reunirem pessoas diferentes e serem editados por plataformas diferentes, eles contêm afinidades editoriais, criativas, políticas e culturais por demais evidentes, que justifica, até certo ponto, que possam ser consideradas sob o mesmo fôlego. (Mais) 

A Abysmo e a Arranha-Céus são dois projectos editoriais com pequenas diferenças de funcionamento, e sobretudo de catálogo, mas estão associadas aos esforços editoriais de João Paulo Cotrim, sobretudo mas não só. Cotrim é uma das forças por detrás de um ressurgimento que teve lugar na banda desenhada e na ilustração de autor do final dos anos 1990, com ligações em gestos anteriores (a importantíssima revista LX Comics) e a certas continuidades. Claro está que outros nomes lhe deverão estar associados nesses seus gestos, uma longa família que compreenderá Renato Abreu, Jorge Silva, Marta Madureira e Tiago Manuel, entre outros, mas é Cotrim, por assim dizer, o centro gravítico e anímico destas aventuras e configurações de esforços. O papel de um editor é, acima de tudo, e se estivermos a falar sobretudo de um papel, de uma função, que não apenas traz a lume os conhecimentos específicos do mester livresco, mas também uma cultura, neste caso, visual primorosa, um olho certeiro para as melhores uniões entre texto e imagem, mas também de movimento financeiro, circulação cultural, espaço de divulgação mediática, e sensibilidade gráfica, textual, de desgin e material, o papel é, dizíamos, de um agregador. E nesse sentido, não se pode negar que Cotrim tem sido um agregador exímio.

Para além deste aspecto material e funcional, por assim dizer, há entre estes dois livros um tema uno e coerente. A comemoração dos 40 anos do 25 de Abril. Pouco importa fazer um balanço desses 40 anos. Haverá sempre aqueles que sonham numa permanente revolução que não se cumpriu na sua totalidade, e aqueloutros que reagem a ela imputando-lhe todos os escolhos que vieram em nome de progressos materialistas e financeiros, cujos frutos colhemos hoje sob a forma de uma esperança cada vez mais espoliada. É assim que se esgrimem discursos totalmente opostos e irreconciliáveis entre “realismo” e “utopia”, “compromisso” e “liberdade”, “inevitabilidade” e “subversão”, sem se compreender que não há espaço comum sequer para começar a tentar encontrar isso mesmo... o comum. Que comum existe entre partes extremadas?

Como já tínhamos citado a propósito da Buraco, o filósofo Jacques Rancière faz uma distinção clara entre o que ele chama de “polícia”, isto é, a política entendida de uma forma restrita, atreita aos agentes eleitos, funcionários do Estado, a máquina da administração, e a “política”, que é um exercício de poder mais lato, espalhado por todos e quaisquer cidadãoes, até mesmo aqueles que podem não ser considerados “cidadãos” pela parte dos agentes “policiais”. E esse exercício escreve ou reescreve a possibilidade de dizer o que é comum e o que é provado, o que é visível e audível e o que é invisível e inaudível, enfim, são todos aqueles nexos de produção de significado que tentam fazer emergir discursos políticos, fundar vozes. Estes dois livros, cada um à sua maneira, e de maneiras electrificadas, pois é através de gestos artísticos – poéticos e gráficos – fundam vozes. Todas elas singulares, ainda que no seu conjunto dando ímpeto a uma mesma direcção. A de que o conceito do “25 de Abril” ainda pode ganhar contornos de sentido de abertura desse mesmo tecido político.

Pelos olhos dentro nasceu de uma exposição comemorativa em Viana do Castelo, e com uma intenção mais ou menos programática: não só a de criar imagens que dissessem respeito a esta passagem do tempo desde essa data mas também à possibilidade, como escreve Cotrim no seu belo texto introdutório, a de providenciar uma “reinterpretação” dos ícones que marcaram essa data. Assim, para além dos nomes dos próprios participantes, surgiriam igualmente aqueles todos que fizeram a história dos posters, murais, cromos, calendários, páginas de revistas e jornais, que circulavam nos anos quentes portugueses. O de João Abel Manta acima de todos os outros, decerto, mas não seria o único.

Como escreve Cotrim, num sentido baudelariano agudíssimo, estes são “mestres do efémero”, mas é precisamente nessa efemeridade que se esconde a mais pequena centelha, súbita mas acutilante, do eterno. Os nomes desses autores são (e copiamos) Alberto Faria, Alex Gozblau, Amanda Baeza, Ana Biscaia, André da Loba, André Letria, Bernardo Carvalho, Carlos Guerreiro, Catarina Sobral, Cátia Vidinhas, Constança Araújo, Cristina Sampaio, Cristina Valadas, Daniel Lima, Emílio Remelhe, Esgar Acelerado, Filipe Abranches, Gémeo Luís, João Fazenda, João Lucas, Jorge Nesbitt, José Manuel Saraiva, Júlio Delbeth, Lord Mantraste, Manuel San Payo, Mariana A Miserável, Marta Madureira, Marta Monteiro, Miguel Rocha, Nuno Saraiva, Pedro Brito, Pedro Cavalheiro, Pedro Lourenço, Pedro Proença, Ricardo Castro, Rui Rasquinho, Rui Silvares, Sebastião Peixoto, Susa Monteiro e Tiago Albuquerque.

Aquelas atitudes antagónicas que apontámos acima, ou posições (necessariamente ideológicas, sobretudo aqueles que gostam de se disfarçar por essa impossibilidade de “estar acima das” ou “estar fora das ideologias) relativas ao que significa a Revolução de 1974, estão presentes no livro sob a forma das imagens. Algumas são claramente comemorativas, com um certo tom de alegria e esperança; outras apresentam antes espaços ou objectos de dúvida ou de ironia perante as conquistas, mas menos para as desprezar do que questionar uma espécie de desaceleramento dessas mesmas conquistas ou dos âmagos, sentimentos e motores que ainda as podiam mover. Essa diversidade é imensa, tal como o é da materialidade das imagens, as estratégias de composição, de ocupação do espaço, de escolhas cromáticas, de níveis de legibilidade e de referências extratextuais, de ironia ou poeticidade. Cada imagem permitiria uma interpretação ensaística, como a de Pedro Brito que sublinha um certo ensimesmamento de toda uma geração (de várias idades), e que poderia ser uma explicação possível para alguma da falta de fôlego de “Abril”, ou a de Esgar Acelarado, que apresenta uma outra concepção do mesmo problema, mais cabisbaixa. A de Susa Monteiro, prometendo desde logo uma narrativa de uma amizade que ainda poderia acontecer. A de Rui Silvares, arvorando uma certa bílis que tem desaparecido do cartoon actual, e recorda os esbirros verdadeiros do Estado durante anos? E que podem voltar, mesmo sob a forma de pequenos gatos... Ou então que abraçam totalmente a ambiguidade, como a de Miguel Rocha, que planeia afogamentos em confusões de bandeiras, ou a de Filipe Abranches, que apresenta uma estranha paisagem, desolada de traços humanos e onde a tecnologia não parece prometer muito, ou de Ricardo Castro, cuja forma fantasmática poderia assumir formas diversas, do voto ao lixo, do fantasma do passado àquele que nos assola no presente, e se calhar assumem todas... E apontará a de André Letria, de forma metonímica, desviada, elíptica, para um testemunho pessoalíssimo? A de Amanda Baeza para uma memória que lhe foi ditada, de fora, mas adoptada?

40 x Abril, nascendo do mesmo gesto em termos gerais, tem um contexto bem diverso. Trata-se de um livro que reúne poemas e imagens, todas inéditas, mas que não estão numa relação directa, “ilustrativa” entre uns e outras, tão-somente juntas na coreia global. Alguns dos nomes dos ilustradores são os mesmos do projecto anterior, e há casos mesmo em que as matérias são praticamente idênticas (André Letria citando objectos de hipotéticas memórias pessoais, André da Loba com umas personagens homens-mão que marcham), tal como há momentos em que parece haver artistas a partilhar temas e variações (Nuno Saraiva e Cristina Sampaio mostrando uma “evolução” do revolucionário), mas há também outros que não se cruzam.

Os poemas são de lavra nova, de poetas activos, muitos dos quais da geração “sem qualidade” (para citar uma famosa antologia de Manuel de Freitas, também presente), que citam e evocam episódios do nosso mundano, do nosso momento passageiro, do agora que já se dissipou mas por isso, e regressemos a Baudelaire, toca nas franjas do verdadeiro eterno. Mais do que tentar-se, por exemplo, um estilo, digamos, “grandíloquo”, “épico” e “celebratório”, que cairia na esparrela da "lagrimeta ou da emoção empacotada. Vivendo-se num país cheio de indivíduos “forrados a pele de 'antes assim que'” (Carlos Alberto Machado) e onde “O lixo e o dinheiro são a única estação” (Luís Quintais), a única celebração possível é de facto a dos dentes rilhados e de um punho erguido e lívido, pronto a agir novamente. Por isso algumas imagens parecem conter alguma raiva: Luís Manuel Gaspar apresenta-nos um coração feito de galhos retorcidos, pintados com uma listra vermelha que parece assinalar a coutada onde a caça é possível; Ana Biscaia transformando um cravo num grito de trompete mas também numa explosão demolidora de fogo; Tiago Manuel revela uma pequena personagem torturada sob o jugo do Pai-Nosso na doutrina do silêncio; Alex Gozblau mostrando um emigrante pronto a partir, restando-nos adivinhar se se trata dos que já partiram ou dos que ainda partirão; Manuel San Payo, Rui Raquinho e André Lemos mostrando-nos um irascível José Mário Branco, demolindo os contornos (e os cornos) do FMI à força da palavra; João Maio Pinto dando-nos as boas-vindas com uma imensa aranha vermelha, feita de pétalas de cravo aceso; e António Jorge Gonçalves, bebendo novamente de Manta, revelando-nos a verdadeira forma de cooperação política e económica que se nos espera nos palcos globais...

Dirão muitos que nem um nem outro livro se nos apresenta um discurso verdadeiramente balizado, ponderado, educado, e aceitável sobre os 40 anos do desenvolvimento do país. Que pouco se diz do crescimento económico e da entrada de Portugal em instituições internacionais, e o que se contribui para elas e o que elas contribuíram para o país. Que não há um balanço equilibrado das responsabilidades do que está mal, da educação à justiça. Que não se citam directamente nenhum dos agentes, vistos como “positivos” ou “negativos”, em todos esses processos.

Mas para quê personalizar, fulanizar, a vida mais profunda de um país, de um corpo bem mais largo e imenso? E por que razão respeitar as regras quando estas somente existem para decidirem, logo à partida, quem tem direito de falar e em tempos de antena cronometrados?

Essas vozes menos se conquistam do que se ocupam. Estes dois livros ocupam-na e ocupam-nos agora com as que leva.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta de ambos os volumes. 

3 comentários:

Renan disse...

Olá, Pedro!

Venho acompanhando seu trabalho aqui no blog há anos e seus textos foram bastante importantes para que eu construísse um pensamento crítico sobre banda desenhada.
Estou conduzindo um trabalho acadêmico sobre o tema e gostaria de conversar melhor contigo, será que você poderia me fornecer um email de contato?

Abraço!

Pedro Moura disse...

Caro Renan,
Com muito gosto, e obrigado pela confiança.
O meu email é pedrovmoura AT gmail PONTO com
Até breve,
Pedro Moura

Pedro Moura disse...

Dear Anonymous,
You seem to be a very petty, if not obnoxious, individual. Your blog or whatever that is is absolutely ridiculous. If calling oneself a "man" means to spew that kind of thing, then I would rather be called a "woman" indeed.
Good day.
PM