1 de maio de 2015

Calculus Cat. Hunt Emerson (Knockabout)

Se bem que seja possível estarmos a reduzir a produção de Hunt Emerson a pouca coisa, diríamos que este autor tem como seus principais territórios temáticos o humor desabrido e o erotismo, ainda que este último, seja sob a forma da série Firkin, the Cat ou as adaptações literárias (sendo Lady Chatterley's Lover o primeiro e de maior reconhecimento), esteja muito formado por uma abordagem igualmente humorística. E, também sendo possível estarmos a incorrer numa redução injusta, é Calculus Cat a sua personagem mais famosa, icónica e que terá surgido em mais locais, tendo começado numa publicação americana, na verdade. (Mais) 

A Knockabout é uma editora de tamanho médio britânica, que teve no seu catálogo alguns volumes de relativo sucesso, sobretudo as antologias do final dos anos 1980 e inícios da de 1990, e que reúnem pequenos trabalhos, mas muitas vezes significativos a vários níveis, dos muitos autores que esse país produziu como sucessos à escala planetária. É caso de Seven Deadly Sins, Outrageous Tales from the Old Testament e 7 Ages of Woman. É aparente o “regresso” à produção, graças a convénios com editoras americanas, à sua associação com Alan Moore (como foi o caso da revista Dodgem Logic e Unearthing) ou a projectos de outros autores de prestígio internacional, os quais permitem precisamente estas outras revisitações à pessoal e idiossincrática “prata da casa”. Ora, já tendo sido alvo de colectâneas anteriores, este novo volume não apenas reúne todo o material a partir de 1979, como algumas histórias que jamais haviam sido publicadas, e ainda uma colecção de homenagens.

Emerson tem um estilo muito vivo, dinâmico e “abonecado”, capaz de instilar muitos pormenores de caracterização às personagens, ou cenários extremamente detalhados, e de justa observação do mundo real. Calculus, todavia, é uma série que vive de uma abordagem de estilização quase absoluta, simplificação das formas, e uma redução de todos os objectos a um conjunto mínimo de traços que sirvam para a sua função diegética. De resto, essa parece-nos ser uma estratégia apropriada para um conjunto de anedotas curtas que vivem de certa forma da repetição de um tema, à la Krazy Kat [por alguma razão estarão sempre a atirar-lhe pedras à cabeça] e às tiras de jornal do primeiro quartel do século XX: uma mesma mecânica entre um número pequeno de personagens, e estudar as variações possíveis. No caso, a situação de partida costuma ser sempre a mesma. Calculus regressa a casa depois de um cansativo, senão merdoso dia de trabalho, deseja encontrar no seu aparelho de televisão um escape simples através de material que o distraia da angústia diária, mas é bombardeado pela sua própria personalidade, personificada numa espécie de pivot embutido no aparelho que prefere esmagá-lo com promessas de publicidade inútil e fastidiosa. Sobretudo do produto Skweeky Weets, saibam esses cereais ao que souberem...

A partir dessa premissa, tudo é possível: discutir com a televisão, claro, mas também tentar desligá-la, tentar apanhar programas a horas inusitadas, vê-la noutros lugares, arranjar companheiros, dormir, escolher outros hobbies, e Calculus chega mesmo a tentar escapar dos anúncios comprando um leitor de VHS, depois de DVDs, ir para o cinema, não pagar a licença de televisão, e por aí fora.

Uma vez que o estilo de Emerson opta por essa abordagem mais simplificada (visível sobretudo no protagonista, já que bastas vezes o autor o contrasta com fundos pormenorizados e com um aturado trabalho de tramas), e tendo em conta que encontraremos aqui revisitações que duraram anos, não é de estranhar encontrar nestas páginas alguma variedade em termos de grafismos, traços, composição, havendo mesmo algumas páginas que, se testemunham um certo “anos 80” da New Wave britânica-americana, ainda hoje têm um seu grau de interesse. Seja como for, a presença da mão de Emerson é particularmente visível, pelas palavras desenhadas (os seus ubíquos “o”s de pontinho no interior), e é quase um jogo tentar compreender as diferenças entre os movimentos de Calculus, que quase parece ser carimbado ao longo das páginas, de modular que é.

Tematicamente, e atentando que Emerson é companheiro da veia underground britânica e norte-americana, é estranho pensar que esta série nascera como uma crítica à cultura televisiva (ou “cultura basura”) daquelas décadas e naquele país. Enquanto meio de comunicação social e de massas, ele hoje não é mais do que isso, um meio, capaz de transmitir desde as mais abjectas das propriedades humanas como capaz de tecer alguns pontos de fuga de interesse cultural, seja ele estético, político, social, etc. Imaginamos nós que dependerá muito do posicionamento dos leitores, acreditando que possa haver uma coincidência, mínima porém, entre aqueles que pura e simplesmente desprezam a televisão independentemente do seu conteúdo como aqueles que a vêem nos seus canais mais usuais pouco importando uma posição crítica em relação à programação.

Mas uma vez que o tipo de humor e críticas tecidas por Calculus Cat (não a própria personagem, que a deseja como consolo, mas a obra de Emerson) não deixa de ser algo ambivalente, superficial e vago, perguntamo-nos se se pode dizer que há mesmo aqui uma “crítica”. Esse foi também resultado da cultura underground, muitas vezes: um desejo vago de querer estipular uma posição ideológica, mas cujos argumentos nem sempre eram particularmente bem estruturados ou expressos.

Talvez seja apenas uma colecção de humor em torno de uma situação particular, de um conjunto de telespectadores, sobretudos os tais acríticos, aqueles que discutirão o que se passa em “Casa dos Segredos”, que pautam o talento musical por concursos, que se informam politicamente pelos “soundbites” dos telejornais e se educam cinematograficamente pelos filmes de Domingo, tornando-se surdos, cegos e mudos perante quase toda a outra produção... inclusive a desta mesma disciplina que Emerson cultiva a seu modo.

Funcionando como volume de balanço e até homenagem, este livro contem ainda uma colecção de pin-ups do protagonista (desenhadas por vários autores, de Gilbert Shelton a Kevin O'Neill, Dave McKean e Max), mas é dúbio se o torna mais atractivo.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

2 comentários:

Joao disse...

Eu sou amigo do Hunt Emerson e posso dizer com orgulho que devo ter a maior colecção de originais (pranchas e capas de livros), a obra dele é enorme, sugiro que vejam a última adaptação que ele fez do Inferno de Dante. Além disso devo dizer que é uma excelente pessoa e ultra acessível.

Pedro Moura disse...

Caro João,
Agradeço as palavras e reitero o entusiasmo pela versão do "Inferno", que se integra na mais pura da tradição do cartoon caricatural britânico.
Obrigado,
Pedro Moura