Declaração de
interesses: tendo sido convidado para fazer parte do júri do Prémio
Nacional de Ilustração deste ano, organizado pela Direcção-Geral
dos Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, recebi o conjunto de
livros concorrentes. Tendo escrito já sobre alguns deles, cabe-me
agora a oportunidade (e responsabilidade?) de abordar alguns dos
títulos que me parecem mais interrogantes da sua própria natureza.
É o que farei nos próximos dias.
Se no princípio era o
verbo, faz sentido que comecemos precisamente por dois livros que
desejam revisitar uma certa ideia de origem, de inocência até do
acto criativo, mas onde o verbo e a imagem se desenrolam em conjunto. (Mais)
Dulce Maria Cardoso, romancista arguta do nosso tempo e cujos livros escavam
algumas das faces incómodas dos sentimentos e da história recente
portuguesa, a qual nem sempre é abordada pela memória mais desperta
e esclarecedora, revisita com estes dois livros (parte de uma série
que terá continuidade) as tradições textuais das religiões
judaico-cristãs, utilizando a matéria verbal do dito Antigo
Testamento como elemento permutável e cambiável para construir uma
nova narrativa, associável a toda uma linha da literatura dita
juvenil. Se repetimos o “dito”, dever-se-á o facto de que se
aceitamos que esses ou aqueles textos possam ser adjectivados de uma
determinada forma (“infanto-juvenil”, por exemplo), essa só pode
ser entendida como uma descrição que permite compreender alguns dos
mecanismos estruturais, e não enquanto ditame ou limitação
determinante nem do seu público nem de uma atitude apriorística em
relação ao texto. Servirá este volume como forma de introdução
aos contos da Bíblia? Não. [e seria produtivo um estudo comparado com outros projectos que o são de forma clara, como é o caso de alguns concorrentes deste ano ao PNI] Trata-se de uma aventura empolgante da
sua protagonista? Não. Tratar-se-á de uma revisão cultural e
relativista de uma dos pilares da nossa sociedade? Talvez, mas não
de uma forma nem programática nem redutora.
A Bíblia de Lôá
centra-se numa jovem menina que, numa tarde, como tantas outras
meninas, se põem a rabiscar numa folha branca. Os desenhos, os
mundos que aplica com brio e cor, ganham uma vida própria, uma
existência tangível, na qual a protagonista consegue mergulhar e,
dessa forma, dar uma outra continuidade aos seus esforços de
criação. Mas mais importante, isso também lhe permite encetar
diálogos com esses mesmos objectos e criaturas criadas, aprendendo
talvez a conhecer-se a si mesma nesses actos de resposta. Neste
sentido, não nos parece haver grande diferença entre Lôá e o Deus
da Bíblia.
Não será com inocência
que ao nome da protagonista se preste aos mais convolutos
desdobramentos. “Loa”, tal qual, poderá cobrir toda uma série
de produções discursivas que tenham a ver com o acto de louvar, o
qual pode ser feito, em relação ao recipiente dessas palavras, a um
vivo como a um morto, e de forma tão desinteressada como
interesseira. Em termos poéticos mais específicos, é também a
parte introdutória de uma composição mais alargada e na qual
ocorrerá aquele mecanismo retórico conhecido como captatio
benevolentiae, isto é, a parte de um discurso em que se diz algo
que tente capturar a simpatia do público, a sua atenção e
aceitação tácita do que se discorrerá a seguir. Isto é, um acto
de pedido de algum amor, que não é senão aquilo que os deuses mais
desejam e, talvez, aquilo que o Deus da Bíblia mais procura junto
aos seus acólitos, por vezes de modos rocambolescos. Se ligarmos a
palavra ao seu correspondente latino, laus,
e pensarmos em termos de estrutura textual, é uma simetria elegante
também apontar como algumas composições terminavam precisamente
com a fórmula Laus Deo,
“louve-se a Deus”. Os círculos aqui estão sempre a
completar-se.
Mas esta personagem
mostra-se logo afastada dessas regras, mesmo ao nível gramatical, já
que possui dois acentos gráficos no seu nome (algo que não é
permitido na língua portuguesa), a um só tempo incutindo-lhe uma
particular presença gráfica mesmo ao nível da verbalidade, ou
melhor dizendo, dando um peso e visibilidade gráfica ao seu nome, e
provocando uma estranheza a nível fonético que ainda assim remete
mais uma vez para o universo de referências a que se reporta.
Recordemos como na origem dos nomes divinos da Bíblia judaica
encontraremos muitos “Ba'al”, “El”, “Elohim” e derivados.
No livro, ainda aparecerá uma figura aparentada à serpente
sibilante, a reflectora “Sôssô” e a figura masculina criada,
“Êló”, e outra feminina, “Élá”. Tudo isto cria redes
intertextuais bíblicas complexas, desde a resposta ensimesmada,
repetidora e vexante de Deus para Moisés, no Monte Sinai
(basicamente um “Eu sou eu”), às complexas geometrias entre
figuras masculinas e femininas que se espraiam nas várias narrativas
da Bíblia, explícitas ou não, passando por todos os cumprimentos e
saudações que compõem os elementos principais das narrativas.
O encontro entre a ciência
literária e a interpretação bíblica é já bastante antigo.
Aliás, a verdadeira crítica literária nasce com a hermenêutica, e
não admira portanto que se retorne, vez atrás vez, à Bíblia como
texto-Ur para desdobrar instrumentos e compreensões que se podem ir
alterando graças a toda uma série de factores. O estudo da
perspectiva feminina da Bíblia não é tampouco uma invenção nova,
e não foi preciso The Book of J, de Harold Bloom, por
exemplo, para assinalar os papéis importantes que estão reservados
às figuras femininas da Bíblia, mesmo que textualmente, e em termos
de poder social, pareçam sempre subalternas face às figuras
masculinas. Mas essa é uma discussão que nos afastaria do objecto
em si, e a outros caberá uma leitura destes volumes à luz dos
instrumentos fornecidos por esta disciplina específica. Seja como
for, o traço que devemos ter em conta é o desvio (pequeno?
Fundamental?) para uma figura feminina enquanto demiurga e condutora
da narrativa, o que em si pode funcionar como fonte de
responsabilização e capacitação (aquilo que inglês se chama de
empowerment) dos leitores
(não é por acaso que usamos o masculino “plural”).
A linguagem em si –
primeiro ponto de aproximação - emprega formas simples e sucintas,
procurando seguir algumas das estruturas mais simplificadas do Antigo
Testamento. Afinal de contas, o número de espaços, objectos e
personagens é reduzido a uma cena constrita, a partir da qual a
“magia” é a sua desdobragem sucessiva. Porém, é perfeitamente
expectável que haja algum escavar a língua para que se introduza
algum grau de diferença entre aqueles mitos herdados ao longo de
milénios e o estado da linguagem da contemporaneidade. Daí que haja
algum jogo de trocadilhos, sobretudo a dois níveis. Em primeiro
lugar, e informado de forma óbvia pela Alice de Carroll,
sobretudo do segundo livro, algumas das palavras surgem invertidas, e
onde os Testamentos remetem às religiões e povos do Livro,
Lôá segue o caminho que lhe é ofertado pelo “Orvil”,
percorrido pelo “sapil” da demiurga. Por outro lado, algumas
palavras são cortadas ou grafadas de maneira a que, se as podemos
ler no seu sentido mais imediato e contextual, obrigam-nos também a
entender que segundo jogo se pretende sublinhar. Daí que o espaço
percorrido seja o do “Para-isso”, o que nos levaria a ler também
várias linhas de associação.
Criando o mundo a partir
de uma folha em branco do seu caderno ou livro, soprando sobre ele,
Dulce Maria Cardoso une o sopro de Yahweh (e outras figuras) ao dos
actos demiúrgicos solitários de outros deuses e ainda ao próprio
acto de criação a que a escritora e a ilustradora se entregam a
cada novo projecto. Mas ao contrário de uma certa angústia ou
melancolia mallermiana, Lôá entrega-se antes ao imediato prazer de
preencher rapidamente o mundo, não sem dúvidas, mas com uma certa
alegria urgente, própria das crianças. É isso o que nos remete,
por sua vez, à trilha visual.
As ilustrações de Vera
Tavares têm aquela qualidade de achatamento total que se lhe
conhece, sobretudo nas capas dos livros que produz na Tinta-da-China,
inclusive dos da escritora. A construção das imagens é feita
através de manchas semi-geométricas, fragmentadas de cores planas,
sobrepostas e interrompidas por pequenos entalhes, também ele
simplificados: círculos para os olhos, por exemplo, inscrevendo a
autora em toda uma tradição de ilustradores que representa os olhos
deste modo, o que cria uma certa distância e teatralidade afastadas
do naturalismo. Mas esse passo atrás, digamos assim, do mais
imediato realismo, não só é cumprido pela linguagem do texto que
vai discorrendo, como por todas as outras estratégias visuais e
compositivas: todas as letras, do título ao texto passando pela
ficha técnica, é sempre do mesmo tipo, ainda que em tamanhos e
cores diferentes, mas encaixando-se nas páginas e coordenadas com as
imagens que ocupam todas as duas páginas, ou espraiando-se de uma
para outra, como se se repetissem padrões próprios das iluminuras
medievais, numa estranha mistura entre a escola irlandesa (em termos
de espalhamento do texto e imagem, mas não dos pormenores
filigranados e brilhantes), e a espanhola (as cores planas e simples,
as figuras algo toscas e hieráticas, mas não a concentração da
mancha).
Em alguns casos, a
ilustradora opta mesmo por repetir algumas das palavras do texto, mas
sem que estas sejam reduzidas neste, criando um outro nível de
reflexão e devolução dos ritmos das palavras, dos ecos e dos
espelhos. Dessa forma, é como se algumas das palavras ganhassem o
mesmo peso dos outros objectos tangíveis na realidade da história,
o que não deixa de ser uma consequência “natural” neste mesmo
universo narrativo, como vimos.
Leia-se este projecto de
uma forma mais espiritual ou mais lúdica, ou preferencialmente em
que uma certa consciência cultural mas também transcendental nasça
dos jogos, A Bíblia de Lôá é, desde logo, um projecto
desconcertante no panorama da literatura (ilustrada) para os leitores
mais jovens, sem traços de didactismo mas procurando tocar num ponto
mais profundo do entendimento, pela parte mais importante: colocar
perguntas.
Nota final: agradecimentos
à DGLB, pelo convite e, claro, pela passagem dos livros.
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