Por
ocasião das considerações tecidas sobre Supreme: Blue Rose e Batman: Earth One vol. 2, estabelecemos alguns pontos de ligação com esta série de
Grant Morrison, a qual se associa igualmente a outras tantas questões debatidas
cada vez que se fala de super-heróis, multiversos e as estruturas narrativas
específicas dos grandes mundos ficcionais da banda desenhada norte-americana
deste género. Durante um período, pensámos que poderíamos seguir o mesmo
exercício que estamos a tentar elaborar com a leitura capítulo a capítulo de SandmanOverture, mas a leitura dos dois primeiros números fez-nos desistir dessa
direcção, preferindo a leitura global, necessariamente fragmentada, como
veremos. (Mais)
Quando falámos do trabalho académico de Karin Kukkonen,
havíamos mencionado como a autora considerava que os mecanismos da metaficção
(nos quais se incluem as noções variadas de multiverso), ao contrário do
que ocorre na literatura e no cinema – pelo menos os mais convencionais e
normativos -, não criam na banda desenhada distância
mas antes pelo contrário uma plataforma de mais profunda imersão, no
relacionamento cognitivo dos seus leitores. Como o havíamos dito em relação a Batman:
Earth One, mas também em relação a outros trabalhos, a leitura destes
títulos convida toujours déjà a uma re-leitura ou a uma leitura
assombrada por leituras anteriores, comparações e cotejamentos entre vários
textos, versões e tomadas. Mesmo assim, e ao contrário dos seus detractores “generalistas”,
isto é, aquelas pessoas que pura e simplesmente por e tratar do género dos
super-heróis o considerará abaixo da possibilidade de qualquer inventabilidade
narrativa, composicional, gráfica, etc., estamos em crer que é possível ainda,
mesmo que com dificuldade, propor novas formas de compreender e construir modos
de contar neste género. Para sermos precisos, estamos a falar de inovações a
nível formal, já que considerações do campo cultural nos levariam a diferentes
abordagens. Serão necessariamente melhor ou equiparáveis a outros géneros ou
territórios? É a pergunta errada. Já colocar a pergunta se é possível ler estes
textos isoladamente de uma história maior, de uma compreensão alargada do
território, é uma melhor pergunta, e o problema estará precisamente no facto de
que não, não é. Ou é, mas será uma leitura muito incompleta (razão pela qual a existência de notas explicativas, como as da Comics Alliance, se torna não apenas útil mas obrigatória; contudo, sublinha uma vez mais que não se trata jamais de uma leitura individualizante e autónoma).
Apesar desta série ter sido já planeada há muito, de uma forma
ou outra, e se associar a todas as “Crises” e “reboots” sucessivos da DC –
afinal de contas, a existência de 52 universos paralelos no interior do
Multi-Universo DC já vem de 2006 -, foi sendo protelada e atrasada, e ela veio
a ser publicada durante o primeiro ano da nova configuração dessa editora (e,
consequentemente, da nova estrutura diegética dos seus personagens e mundos), e
não parece partilhar com o “Novo 52” os mesmos contornos. Isto é: ela faz e não
faz parte do universo canónico central a um só tempo.
Morrison já havia criado com Final Crisis uma espécie
de apoteose da possibilidade de uma escrita fragmentada e multifacetada,
absolutamente específica aos super-heróis, e que tem menos a ver com o burilar
de uma história (linear ou não, concentrada, coesa), do que de uma gema
que faz dispersar a luz, na mais completa das conquistas da ideia de “prismático”
de D. Falconer. Final Crisis é uma espécie de experimentação sobre os
limites do estilhaçamento da narrativa em várias frentes actanciais, e esperar
que cada um desses fragmentos contribuam para uma ideia central, por mais
fantasmática que ela seja. Ainda assim, todavia, esse outro projecto era
relativamente centrípeto, na medida em que seguia um estilo de escrita similar
de fio a pavio, apresentava algumas linhas de desenvolvimento central (o
combate ultra-maniqueísta entre o Super-Homem e Mandrakk) e os artistas, que
apesar de vários seguiam instrumentos estilísticos algo semelhantes entre si. The
Multiversity é bem diferente.
Final
Crisis tentava criar uma narrativa através de um complexo novelo
construído a partir de linhas desniveladas, interrompidas, mas ao mesmo tempo
criando uma forma simétrica. Seven Soldiers of Victory, por seu lado, criava um edifício complicado que partia
de um ponto para regressar a ele, mas em que os caminhos centrais de subdividiam
em vários ramos autónomos. The Multiversity
apresenta-se em blocos individuais e independentes entre si, mas permitindo aos
leitores que compreendam cada número individual como pequenos blocos, em si
mesmos universos completos, que exercerão uma tensão numa estrutura maior, a do
multiverso, esse unido sob um tema comum: o ataque que lhe é feito por uma
ameaça totalmente externa (isto é, que não pertence a nenhum desses
universos/narrativas em particular, mas que vem de fora), a necessidade de unir
esforços para responder à ameaça. Mesmo assim, Seven Solders of Victory, Final Crisis e The Multiversity pode ser lido como uma estranha trilogia de
Morrison em que ele tenta variaçõs de um mesmo princípio de estruturações
complexas com vários mundos ficcionais interseccionando-se. Seria muito apelativo fazer um estudo comparativo da sua estrutura formal.
E onde Final Crisis arregimentava toda a história da DC
para criar uma espécie de Götterdämmerung destas personagens (eis uma
ponta de associação eventual com Alan Moore, conforme adiante), The
Multiversity tanto aproveita personagens existentes (a família Marvel, as
personagens da Charlton, que serviriam de base para Watchmen, as da
Quality, algumas da dita “idade de Ouro”), como apresenta versões daquelas
já existentes (como os da Terra 8, versões pouco veladas das personagens
principais da Marvel, já para não falar de todas as novas variações dos da
própria DC) e outros conceitos relativamente novos, como o caso de Ultra Comics
(nome de uma personagem singular, que corresponderia à da nossa própria Terra).
Na sequência da ideia de se criarem 52 universos compartimentados
e que tiveram desenvolvimentos independentes uns dos outros, sem qualquer
contacto, cada um destes números, apresentados como comic books
individuais e numerados a “1”, corresponderiam à potencialidade de uma editora,
ou uma história diferente de desenvolvimento da editora DC, distinta. Para além
dos títulos em si, e as características particulares das personagens, o design
das publicações, mas também o estilo das imagens e até o modo de escrita, é
singular e separado. Apesar das inúmeras capas “variantes” de cada um dos
títulos, basta olhar para as capas “oficiais” para perceber que Society of Super-heroes pretende
homenagear o mais dramático dos pulps,
The Just segue a estética da dita
imprensa cor-de-rosa, Pax Americana pretende
ser uma resposta directa a Watchmen e
The Multiversity propriamente dito
uma abordagem das sagas mais convencionais e épicas de super-heróis. Nesse
aspecto, e por mais que o próprio Morrison não goste de o confessar ou escutar
sequer, ele continua a trabalhar numa senda que havia sido estreada por Moore,
se bem que este outro autor o tenha feito de formas por vezes apenas como
elementos secundários das suas histórias, ou com intuitos humorísticos, ou numa
mescla de nostalgia e metatextualidade. Ao nos recordarmos de 1963, o
seu run de Supreme, as experiências ao longo de Tom Strong
e Promethea (nos estilos das capas, formatos, etc.), encontraremos
muitas das sementes que desabrocham no centro do palco de The Multiversity
nem termos de mutações formais para veicular as narrativas correspondentes.
A série é então composta por nove títulos individuais. Dois
são The Multiversity (números 1 e 2)
que funcionam como os “book ends” da série (como já havia o autor feito em Seven Soldiers), a sua introdução e a
sua conclusão, a apresentação do problema e a sua resolução, a premissa e o
corolário, de uma forma clara, descomplicada, maniqueísta, se quiserem, mas por
isso mesmo justa ao seu propósito. E de uma maneira “compressa”, no sentido –
já experimentado em Final Crisis – de
um estilo de exposição sumário e rápido, mesmo que haja um número superior de
páginas do que o standard dos comic books. Um deles, apresentado a
meio da série, era um guia, e que além de histórias curtas apresentava uma
série de páginas que serviam de apresentação sucinta de cada um dos 52
universos, desde a Terra 0, a do universo oficial, a Terra 1, da série Earth One, e por aí fora até à terra 51,
correspondente de certa forma ao universo de Kamandi, de Jack Kirby. Por razões de simetria interna, e arcanos
desígnios na fabricação da estrutura – veja-se o mapa e as explicações do seu
designer, Rian Hughes -, alguns desses universos ou são desabitados ou
“ocultos”. Alguns destes universos já tinham uma existência ficcional anterior:
a Terra 3, que o próprio Morrison havia já trabalhado no seu run da Liga da Justiça, a Terra 5, que concentra as história do Capitão Marvel
inventado por Parker e Beck, como imitação-versão do Super-homem, a Terra 22,
da série Kingdom Come, e muitas delas emergindo de títulos da Elseworlds, de
alternativas de Byrne ou Cooke ou de Just
Imagine… de Stan Lee, etc. Outros são versões originais das personagens da
DC, e que prometeriam um desenvolvimento intrigante: a Terra 13, onde todas as
personagens são versões demoníacas e fantasmáticas, a 34 que por não ter
surgido em quase mais lado nenhum, apresenta uma aparência suficientemente
tonta, ou a 36, reminiscente da leveza de um Alex Toth na Hannah Barbera.
Se algumas destas personagens têm um papel preponderante na
série, passando-se a aventura de um ou outro comic book nesses universos, outros cruzando-se nas páginas dos
dois The Multiversity, outros ainda
surgem somente como referência no Guidebook.
A potencialidade de virem a ser desdobrados no futuro ainda está em aberto,
alguns já concretizados de resto, mas outros provavelmente que jamais serão
explorados para além destas páginas. Uma das formas de navegar cada um dos
outros seis comic books individuais
para compreender a sua posição neste multiverso é olhar para a espinha da
publicação, e ver qual dos números correspondentes está acentuado. Esses seis
títulos, então, ou se concentram num só universo ou mostram cruzamentos
intensos em dois deles.
Cada uma destas leituras, portanto, convida a uma posição
diferente em relação a cada história, já que cada um deles utiliza instrumentos
diferentes. A escolha dos artistas parece-nos ser extremamente acertada, uma
vez que cada uma das experiências leva a uma compreensão de um enquadramento
diferente. Recordando o trabalho que teve em Tom Strong, Chris Spouse providencia em Society of Super-Heroes: Conquerors from the Counter-World uma
sensação absolutamente acabada de pulp,
tal como prometiam as histórias do anos 1930 e 1940. Bem Oliver, em #earthme, segue um estilo
semi-fotográfico que encaixa que nem uma luva na história destes belos jovens
ensimesmados, cuja vida parece uma mistura entre as novelas das Kardashian e
criaturas quejandas e a potência dos super-heróis. De uma forma relativamente
expectável, é Frank Quitely quem fica com a responsabilidade de Pax Americana: In Which We Burn, que
tenta seguir, com as personagens originais da Charlton, a estrutura recursiva e
cheia de “entraçamentos” (a técnica complexa descrita teoricamente por Th.
Groensteen de uma banda desenhada que obriga a uma leitura total através dos
seus vários elementos formais) que havia feito a glória de Watchmen, mas ao mesmo tempo responde a essa outra obra maior do
género. Cameron Stewart, outro colaborador de Morrison nas suas abordagens mais
“leves” (sempre com um âmago macabro), providencia a singeleza e cor luminosa
necessária à aventura de Thunderworld
Adventures: Captain Marvel… and the day that never was! A operática,
nacionalista e over-the-top Mastermen: Splendour Falls, está nas mãos
de Jim Lee, que sublinha dessa maneira a mais profunda e ancorada inscrição no
mainstream daquela casa. Doug Mahnke, que havia trabalhado em Final Crisis, tem
um equilíbrio entre o naturalismo, o estilizado, o empedernido e o dramático
que serve bem a Ultra Comics Lives!,
para mostrar como num universo desprovido de acesso a estas criaturas
fantásticas (o nosso), apenas a existência de uma tecnologia de papel barato
(ou não tão barato) e quadricromia poderia inventá-las. Claro, o uso de Ivan
Reis et. Al, Marcus To e Paulo Siqueira para as partes correspondentes (os dois
book ends e as histórias no Guidebook) também trazem características
próprias.
Todavia, não é apenas a nível do desenho que encontramos essas
prestações de diversidade. Já falámos sobre a formatação de cada revista, #earthme imitando revistas de mexericos,
Pax Americana seguindo alguma elegância
das “graphic novels”, Mastermen
ostentando, mais, arvorando o seu
maniqueísmo heráldico, The Multiversity
a sua patente qualidade épica-cósmica, etc. Mas é a própria linguagem de
Morrison que procura formações distintas. Com a aventura de Thunderworld, o escritor procura uma
linguagem leve, diálogos divertidos e trocados durante os momentos de acção, a
qual é apresentada de forma linear e concentrada. Em Pax Americana, cada frase pode ou deve ser lida quer no seu sentido
linguístico-metafórico mas igualmente no seu valor literal, como é traduzido a
par e passo pelas imagens, numa estrutura complexa, cronologicamente invertida
e com desvios metalépticos que obrigam a uma certa distância. Em Mastermen, há uma voz mínima exterior e
posterior à acção, que vai tecendo a ética clara de moralidade superior face ao
“mal”. Em #earthme tudo quase se
reduz a diálogos, quase inconsequentes. Os dois números de The Multiversity abandonam-se na linguagem ultra-tonitruante de
acção em alta octanagem, com momentos de exposição bombástica em que se tenta
“explicitar” a estrutura da trama… Podia-se mesmo dizer que a cada um dos
“capítulos”, Morrison elabora complexos pastiches de estilos reconhecidos da
história dos super-heróis: da dita Idade de Ouro, da época de propaganda, do
Kirby de Kamandi e das óperassiderais, do Moore de Watchmen, etc.
Reparem-se nas duas páginas de Ultra
Comics que, em quatro vinhetas, fazem um historial quase completo das
“fases” de transformação dos super-heróis – “sistemas behavioristas”, reza o
texto -, desde o enquadramento às poses, o tratamento de cor e a linguagem
empregue: a “inocência” dos primeiros anos, o psicadelismo dos anos 1950-1960,
as “crises” dos anos 1980 e o “grim and gritty” dos anos 1990. Enfim, isto é
algo que, correndo o risco de sermos repetitivos, não é propriamente uma
invenção do próprio Morrison mesmo no território exclusivo dos super-heróis
(mais uma vez apontaríamos Moore nessa posição), mas mesmo assim permitindo-lhe
criar um projecto algo inovador e exigente no seio do género.
Se insistimos nesta estranha filiação do autor noutro autor,
uma filiação que, como se sabe, tem alimentado uma espécie de feudo contínuo e
até à pouco tempo silencioso da parte de Moore, é porque existem razões
relativamente claras também em The
Multiversity para encontrar razões dessa “rivalidade” (que a nosso ver, não
é, já que Morrison tenta atingir um nível com um patente esforço onde Moore
chegara antes com maior panache, brio e produtividade). Repare-se nas três
entidades iniciais que surgem como os “devoradores” do Multiverso, e as quais
podem ser lidas como substanciações de conceitos afectos à banda desenhada na
qual Morrison trabalha: a “Gentry” pode ser lida como o processo generalizado
de “gentrificação”, isto é, de melhoria superficial e “comodificação” de
produtos que, até ao momento, não faziam parte dos bens centralizados num
capitalismo global. Ele próprios o dizem: “Tornamos este[s] mundo[s] viáveis para
a nossa espécie prosperar”. Esta dimensão não deixa de ser estranha, uma vez
que estas personagens e criações pertencem a uma companhia privada, integrada
por sua vez num gigante mediático, logo é desde logo constituinte desse mesmo
capitalismo. Será que Morrison tenta aqui apresentar a ideia de que seria
possível imaginar algo de mais “inocente” ou “genuíno” no interior de uma
maquinaria deste tipo? Mas reparemos nas criaturas singulares dessa força
invasora, devoradora ou aglutinadora como o capitalismo o é: Dame Merciless,
Hellmachine, Lord Broken, Demogorgunn e Intellectron. Lord Broken, por exemplo,
é uma casa, gótica, cheia de olhos. Poderíamos intentar um exercício de
interpretação selvagem, e encontrar aí a hipótese de todas aquelas versões que
“quebraram” os heróis para as suas versões mais atormentadas, inclusive mesmo a
ideia da Vertigo, como uma casa separada da DC (até ao ponto de nos recordar as
Houses of Mystery e of Secrets)? Não seria de todo
displicente, considerando como The New 52 absorveu precisamente as personagens
que lhe pertenciam que ali estavam entregues há anos. Demogorgunn é um corpo
feito de centenas de outros corpos (humanos): poderíamos ver nisso o eterno e
consumidor ciclo de substituição dos autores envolvidos nestes títulos, os
quais, independentemente dos fãs ou da recepção crítica que possam ter, serão
sempre permutáveis entre si, dada a importância maximal das marcas registadas
das personagens? Será a ideia de Intellectron uma consideração algo derisória
de um desejo de, de facto, trazer algum tipo de profundidade ética, cultural e
até literária e artística para este género em particular? Ou, como vemos nas
páginas de Ultra Comics, das formas
de descrição académicas que explicam os mecanismos desta forma de expressão, criando
uma distância que Morrison considerará redutoras e desviantes do prazer? Será
Hellmachine a tradução da ideia da destruição maciça de histórias alternativas
e imaginárias (como se costumam chamar todas as versões não-canonicas ou
não-continuidade da DC) em nome de uma controlada centralidade, que Morrison já
por várias revelou não gostar? Será a Dame Merciless uma deadline?
Se for esse o caso, estamos em crer que Morrison demonstra que
afinal o seu trabalho não é de forma alguma o de transformar pode dentro a
indústria, ou elevar estas ficções a um ponto distinto daquele formato até
agora, mas antes confirmar a sua valoração e função culturais, ainda que de um
modo intensificado. Dito isto, todavia, e por um lado, este tipo de
interpretação é algo vão, uma vez que não pode ser provado em absoluto, mesmo
que o autor as confirmasse ou apresentasse uma outra justificação explícita.
Por outro, isso não é importante, pelo menos em Morrison, uma vez que neste
autor, o objectivo destas personagens é menos o de funcionarem como símbolos do
que máquinas pensantes ou, com Deleuze e Guattari, desejantes: são parte imanente dos objectos sociais com que lidamos
e que são parte constituinte e alimentadora do próprio desejo.
No seu livro Grant Morrison. Combining the Worlds of Contemporary Comics, recordemo-nos como Marc Singer discutia
o facto de que Morrison considerava as suas “ficções” enquanto representações
não-mediadas, hipóstases, que garantiriam um efeito real na nossa experiência.
Um posicionamento que o próprio Morrison iria expor, de forma menos ou mais
clara, em Supergods. A personagem Ultra Comics, por exemplo, é apenas o
corolário dessa ideia. Alan Moore debate em vários dos seus escritos (e na
banda desenhada, inclusive, como é o caso de The League of Extraordinary
Gentlemen) do chamado “Ideaspace”, um plano da realidade alguns graus acima
do nosso onde todos os nossos conceitos e produtos da imaginação têm não apenas
uma existência material palpável como conjunta, e ao qual acedemos através das
várias disciplinas artísticas (ou outras). Nesse sentido, Moore é algo
platónico ou transcendental. Morrison, por outro lado, compreende que as ideias
são imanentes à própria existência ontológica do ser humano, e que é uma
questão de grau – uma “magia”, por hipótese – que a tornamos palpável, ou
melhor, é transformando a nossa própria consciência dessa tangibilidade, acesso
e poder que transformamos a (nossa) realidade. Ultra Comics é então a tradução
ficcional (ou estaremos a reduzir o projecto?) da possibilidade de dar corpo
material a essas ideias: trata-se de um super-herói criado na “nossa” terra,
sintetizando toda a cultura do comic book,
inclusive os seus aspectos mais materiais, num corpo tangível e animado através
de uma tecnologia incrível. Animal Man, The Filth e outros
trabalhos anteriores já tinham explorado esta ideia de uma possível travessia
de níveis encaixados, mas esta incorporação num super-herói de todas as
esperanças (nutridas pelas fantasias de super-heróis) é, parece-nos, nova.
A relação entre esses níveis também traz
uma navegação complexa, já que encontramos estas personagens a lerem, no
interior das suas diegeses, os próprios comic
books a que teremos ou temos acesso. Se é Ultra Comics o exemplo que mais vezes surge, outros também concorrem,
e nas histórias no interior de Guidebook
as personagens têm acesso ao próprio Guidebook.
E as considerações que cada personagem faz sobre o entendimento desses mesmos comic books serem mensagens de universos
paralelos, sistemas de comunicação e complicação, são também um guia para
compreender as ideias mais estranhas e complexas do autor, sobre a arquitectura
do seu multiverso e, por conseguinte, a relação que esses mundos ficcionais
estabelecem igualmente com o nosso mundo “real”.
Regressando a Singer, “”Morrison
apresenta mundos múltiplos que operam em escalas narrativas e ontológicas
variáveis”. Uma descrição absolutamente exacta da “pilha móvel” de The
Multiversity. Dizemos “pilha móvel” pois a metáfora que poderá melhor
servir a descrição das relações entre cada universo é a mesma que tem sido
empregue em algumas das áreas da física mais contemporânea, nomeadamente, a
“teoria das cordas”, e que outros escritores, como Warren Ellis, têm empregue
nos seus escritos (uma história em Guidebook
mostra uma estrutura muito similar àquela proposta em Planetary, que surgiu em duas versões). A ideia de que cada
universo separado existe num plano vibracional diferente, tal como uma corda de
violino existe fisicamente mais ao vibrar de modos diferentes produz sons
distintos (notas). A questão é que Morrison não cria entre estes universos uma
hierarquia simples, onde um seria mais real que outro, o que levaria a uma
complexa rede de níveis hipotextuais (à la 1001 Noites, de histórias
dentro da história), mas uma complexíssima e intricada configuração
não-euclidiana que não tem nem princípio nem fim, nem alto nem baixo, mas
cadeias de interrelacionamento e entradas e saídas infinitas e em qualquer
direcção. Por isso, ao lermos cada uma das revistas nos apercebemos que, neste
universo, aqueloutro é uma ficção, existente precisamente nos comic
books desse mundo diegético, como vimos. Mas no segundo universo, “ficção”
para o anterior, a relação inverte-se, ou complica-se. A conclusão, portanto –
e que corresponde à “nossa” verdade -, é que todos os universos são ficcionais,
ou pelo menos contêm contornos que são alimentados pelos outros, num eterno
processo de autofagia produtiva. Mas de certa forma, não é mesmo isso que se
trata no caso particular da banda desenhada de super-heróis norte-americanos,
desde o momento 0? Afinal, Batman é uma “versão” negra do Super-homem, o
Capitão Marvel uma sua imitação, e o próprio Super-homem não é mais do que um
grau exponencial de várias outras personagens fantásticas já existentes anteriormente
na banda desenhada... The Multiversity então,
surge como o complexo mecanismo de espelhos permanente móveis, e que, com
pequenos cálculos e giros de pequenos ângulos, vão criando cada vez mais a
ideia de um potencial infinito.
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