Declaração
de interesses: ver texto anterior.
Depois
de alguns anos a produzirem uma variedade de objectos gráficos,
sobretudo “cadernos” com papéis ilustrados, padronizados ou
estilizados de maneira a tornar até a próprioa ideia de anotar
qualquer coisa num novo plano de intervenção e invenção gráfica,
e que foram construindo a sua fama, a editora ou plataforma Serrote
deu um passo definitivo para o campo da ficção ilustrada, sobretudo
aliada à literatura infanto-juvenil. Uma aventura de
Laurinha e Sulivão parecem prometer-se como uma série de
livros, apesar de apenas terem sido lançados dois livros até à
data (de certa forma, há algumas estratégias similares à Bíblia de Lôá), mas a relação entre um e outro é menos de
consequência narrativa e de coerência linear do que de uma
construção temática que poderá ir, aos poucos, contribuindo para
uma ideia de enciclopédia. (Mais)
Por
um lado, poder-se-ia dizer que cada um dos títulos é tão-somente a
história das férias de Verão dos dois protagonistas, Laurinha, a
irmã mais velha, e Sulivão, o mais pequeno, nas terras dos avós,
longe da cidade em que habitam todo o ano. No entanto, se a ideia
cinética de “aventura” é levada a cabo da forma mais literal e
acabada possível, isso não significa que estejamos perante
histórias capazes de ser reduzidas somente aos seus elementos
narrativos.
Nos
últimos anos temos vindo a encontrar certos projectos que elevaram a
ideia de enciclopédia, de vocabulário, dicionário, ou qualquer
outro instrumento de pedagogia, mais ou menos dedicada a uma área
específica, a objectos de uma beleza rara, tão cuidados como
volumes de intenção poética. São os casos dos actividários da
Pato Lógico (Mar, Teatro), por exemplo, ou o também
recente Lá fora, da Planeta Tangerina. Guias e volumes
dedicados à aprendizagem, mas onde ao didactismo é retirada a
gravidade da sapiência superior e do moralismo, e incutido um grande
grau de humor, imediaticidade e, como é o caso presente, a ficção.
Os
dois livros apresentam a ideia das tais férias no campo dos dois
irmãos. No primeiro caso, Calhabéus, Laurinha e Sulivão
passam as férias na casa de pedra da avó paterna, lá para
Trás-os-Montes; no segundo, Papa-Migas, ficam antes com os
avós maternos (sendo este avô irlandês), algures no Alentejo ou
serra algarvia. Esta exactidão local, ou melhor, a falta dela, não
é de forma alguma um desejo de universalizar ou mitificar esses
espaços, mas é abrir à possibilidade de transformar o país
inteiro numa espécie de território aberto às deambulações dos
irmãos. Pois quer num caso quer no outro, o que ocorre é que
Laurinha e Sulivão têm uma qualquer missão que os leva a cumprir
um passeio. Em Calhabéus, vão dar um passeio com o burro da avó,
em Papa-Migas, têm de procurar o animal de estimação dos avós
maternos. Todavia, esses passeios, que se de um ponto de vista preso
à narrativa imediata, é “ali à volta”, na verdade fá-los
atravessar Portugal inteiro, e é essa dimensão que transforma cada
livro numa espécie de guia livre.
Calhabéus
é uma colecção de pedras, ora naturais, ora esculpidas ora ainda
alteradas ou dispostas pelo homem. O passeio de uma tarde dos irmãos,
que começa na terra ao norte do país, levá-los-á aos menires e
cromeleques do Alentejo, à Pedra Formosa de Guimarães, já para
não esquecer a própria casa da avó Tirapicos. Papa-Migas,
por seu lado, transforma a busca pelo animal de estimação (cuja
identidade de espécie é um mistério que vai sendo explorado
também) por um percorrer os parques e reservas naturais existentes
no território continental, de Montesinho às serras algarvias. A
inclusão de coordenadas geográficas precisas para encontrar os
calhaus, pequenas descrições dos parques, identificação das
espécies aí encontradas, criam suplementos de informação
paralelos à história, mas reforçam essa ideia de um “campo”
unido e visitável. Adicionalmente, uma vez que o avô Finn é
irlandês, introduz-se ainda um pequeno aspecto dos mitos desse outro
país, abrindo assim a possibilidade de um diálogo intercultural
futuro. Outra
abertura ainda enconrtra-se nas guardas dos livros, que brincam com o
conto tradicional “O velho, o rapaz e o burro”, em que se mostram
todas as permutação possíveis do uso da alimária enquanto
transporte. Ou seja, estes livros poderão ser lidos de duas maneiras
diferentes e complementares: ora como “simples” livros das
aventuras familiares destas duas crianças ora como objectos que
ajudem à cartografia de uma re-descoberta do país.
Os
promotores dos cadernos Serrote já haviam criado objectos mais
próximos da tradicional linguagem da ilustração, com uma espécie
de palavrário, Finlândia. De
resto, o ilustrador, que presumimos ser sobretudo Nuno Neves, tem um
longo historial de autor de banda desenhada, tendo autorado uma série
de fanzines ao longo dos anos 1990, sobretudo com o seu companheiro
de longa data nessas andanças, Bruno Borges, este reconhecido autor
de banda desenhada e membro da Oficina Arara. Há assim um decidido
regresso à fabricação de imagens narrativas.
O
uso de fotografias como cenários, e a sobreposição das personagens
em desenho, dá a estes objectos uma qualidade bem diferente da
habitual, e há um encontro muito elegante entre ambos os planos
(quiçá pelo tratamento de ambos pela cor e iluminação, que tem
características comuns e equilibradas). As imagens das figuras
seguem alguns estratagemas estilizados e algo clássicos, mas onde a
representação é realista para com a tipologia portuguesa, e não
só, e a expressividade é eficiente e clara. A linguagem em si é
burilada de maneira a re-absorver vocabulário que não é corrente
pelo menos nas gerações citadinas (começando por “calhabéu”),
e apresentado em pequenas unidades – cada página apresenta um
capítulo, uma etapa dos percursos – que o torna um excelente
exemplo de primeiras leituras autónomas.
Para
ler histórias ou passear em Portugal, veremos que outros passeios se
seguirão.
Nota
final: agradecimentos à DGLB.
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