A Kalandraka prossegue o seu papel, ainda que não isolado,
de publicar alguns dos clássicos internacionais dos picture books, ao publicar mais um título de Maurice Sendak, o qual
poderá ser visto como o volume que fecha uma trilogia particular. Se bem que o
autor tenha trabalhado noutras frentes, como a animação e a ilustração de poemas
ou novelas literárias, entre as quais Fly
by Night, onde se encontrarão temas recorrentes, senão mesmo alguns
mecanismos narrativos similares aos seus livros a solo, estamos em crer que,
pelo menos nesta abordagem sumária, concentrarmo-nos nos seus livros ilustrados
não é um desserviço. Além disso, é o próprio Sendak que articula Where the Wild Things Are/Onde vivem os monstros (de 1963), In the Night Kitchen/Na cozinha da noite
(1970) e, o livro agora publicado, Outside
Over There/O que está lá fora (1981) como um só corpo, nas suas palavras, “todos
variações do mesmo tema: como é que as crianças vivem com certas emoções – raiva,
aborrecimento, medo, frustração, ciúmes – e aprendem a conviver com as
realidades das suas vidas”. (Mais)
Outside Over There
é, dos três, o mais lúgubre, mas se observarmos com atenção reparamos que não
há, em termos sociais, grande diferença. Comecemos pelas diferenças óbvias. Os
dois primeiros passar-se-ão na modernidade, é certo, ao passo que esta outra
história se contextualiza num passado pré-moderno. De figuras masculinas
passamos a uma protagonista feminina. De duas viagens nocturnas mas arejadas
passamos a uma travessia diurna e subterrânea. E acima de tudo, de ilustrações
de linhas sólidas e de cores vivas, temos agora uma sucessão de complexas e
matizadas aguarelas de cores sombrias com apontamentos vivos.
Um outro aspecto de crescente complexidade nos três livros é
a textura, por assim dizer, de referências. Estas são criadas a partir de percepções
e memórias pessoais do autor, que se podem descobrir na leitura das biografias
e entrevistas. Não se tratam propriamente de “segredos” que tornassem mais
fluida ou inteligível a leitura das narrativas, mas elas contribuem ainda assim
para uma percepção generalizada dos níveis em que as acções cognitivas da
leitura ocorrem. Monstros é, afinal,
o mais simples dos três livros nesse sentido, em que a hipotética
correspondência dos monstros com os tios de Sendak em nada melhora a leitura. Cozinha, com a sua paisagem pejada de
referências colhidas da biografia do autor, apenas poderá ajudar àqueles
leitores curiosos em descobrir pontos de ligação entre uma referência a um
hospital e um episódio da vida real. Já a associação a Laurel e Hardy, a uma
estranha e oblíqua referência ao Holocausto, e à claríssima citação de
mecanismos oníricos recorrentes nos seres humanos pós-Freudianos/Jungianos se
torna mais produtiva. No caso de lá fora,
torna-se patente que toda a matéria visual nasce de um fascínio, mesmo que
romântico e fictício e artificial, por elementos associados ao século XVIII: a
pintura paisagística inglesa, pintores alemães, um certo quadro de referências
literárias que aliaria paradoxalmente os Grimm às Brontë e a Dickens, Mozart (a
figura na pequena casa a tocar cravo, quando Ida regressa), etc. Também é
possível, se se desejasse, criar analogias e ligações entre Ida e a irmãzinha à
biografia do autor, a acontecimentos reais ou até a mecanismos “universais”
(míticos, arquetípicos), etc. Estamos em crer, porém, que recorrer a modelos de
interpretação que nos surgem como grelhas de correspondências não são
propriamente nem úteis nem iluminadores, uma vez que levam a um exercício
simples de associação entre um ponto de partida, previsto desde logo, e um de
chegada.
Todavia, é nas semelhanças que o projecto ganha a sua maior
força. Mantém-se em O que está lá fora a
equação de uma certa distância entre as crianças e os pais. No caso presente, a
figura paterna está sempre ausente, e distante, e mesmo que não seja sinal de
abandono absoluto, as cartas e a voz incorpórea do pai que vai pautando a
narrativa ganha mais contornos de força sobrenatural do que de amparo tangível.
A figura materna parece absorvida por completo num certo ensimesmamento, senão
mesmo uma melancolia inamovível: repare-se como, na única cena em que a mãe
toca em Ida, o seu olhar ainda se encontra perdido numa carta, e a sua
expressão não parece traduzir as palavras lidas na carta. Haverá um final feliz
neste livro? Possivelmente, mas não é completo, a família “nuclear” não é
recomposta. É até possível que, tal como os livros ilustrados são lidos pelos
pais aos filhos em idades pré-literacia, e há sempre espaço para invenção, as
palavras escritas na carta não sejam aquelas ditas pela mãe. A cena do naufrágio
do veleiro, enquadrado pela portada, o outro estranho veleiro que não parece
mover-se nas águas do rio bucólico visto do jardim, a ideia do ovo quebrado,
tudo isso poderá criar a ideia de uma morte velada, precisamente.
Isso dá um peso e responsabilidade sobre a irmã mais velha, Ida,
substancial, e que se torna fonte de terror e ansiedade, confirmado pela “perda”
da sua irmã bebé. A travessia nocturna é aterradora, joga Ida contra a
necessidade de distinguir os bebés (todos eles desenhados de maneira a serem
confundíveis), coloca-a no limbo entre a responsabilidade de proteger e salvar
mas também as tendências de abandono ou piores destinos… Sendak – apesar de uma
superficial percepção imediata criada pela fluidez divertida de Montros – explora sempre territórios que
nada têm a ver com as alegrias açucaradas da Disney e companhia. Bem pelo
contrário, ele obriga-nos a atravessar espaços glaucos, assustadores e tenebrosos,
não apenas num sentido literal – covas de gnomos e paisagens tempestuosas – mas
em formas várias que serão interpretadas, conforme a inscrição social dos
leitores, como situações menos felizes (divórcio, viuvez, miséria, outros
factores). Mas a vantagem destas histórias reside precisamente no impacto
dramático e na integridade emocional que consegue conquistar.
As imagens vivem numa estranha combinação de perfeita
perspectiva e gestão dos planos visuais, e uma certa desconfiguração das
personagens em relação aos mesmos. Sobretudo na parte do “voo” – o passeio
onírico obrigatório das personagens de Sendak – o corpo de Ida parece estar
desligado do espaço, o que é o tema e condição dessa mesma passagem, para um
espaço que não coincide com aquele real e euclidiano que vivemos na vigília. Se
Max atravessou semanas e dias, e Miguel para baixo para a noite, Ida cai de
costas para “dentro do fora que ali está” (a tradução, de Carla Maia Almeida,
é, como sempre, cuidada, ponderada e eufónica, mas há necessariamente neste
passo uma dificuldade intransponível em jogar com os contraditórios prefixos proposicionais
e proposições, que arrancam os pontos fixos de referência espácio-temporal
típicos de Sendak).
Além do mais, a representação das personagens afasta-se da
estilização simplificada dos dois livros anteriores, para se aproximar de uma
mais pormenorizada representação de corpos realistas (que aliás, tiveram
referências reais), levando a uma certa gravidade, com as suas posições
hieráticas e de teatralidade excessiva, e até feiura, se quiserem. Mas é a
solidez dessas personagens, as naturais desproporções das partes, como os pés
enormes de Ida, os refegos da carne do bebé e dos duendes-bebés, as expressões
estáticas dos rostos, que as tornam desconcertantes e, por isso, perfeitas para
a narrativa. Tais como os complexos jogos de cores, algo sombrias com a
construção de céus cobertos de nuvens sombrias, folhagens que impedem de
perscrutar um horizonte desimpedido, espaços confinados (quer interiores quer
exteriores) e pejados de objectos, as vestes das personagens algo apagadas, com
a excepção da protectora capa amarela, ou o vestido vermelho da mãe. Mesmo nas
cenas mais bucólicas e ensolaradas – a partida do veleiro ao início, o percurso
de regresso de Ida e a irmã, as cenas finais, encontram-se enclausuradas no seu
espaço, não prometendo uma saída total.
Qualquer leitor das versões mais antigas dos ditos “contos
populares”, como nas páginas dos Grimm, por exemplo, que Sendak havia ilustrado
imediatamente antes de dar início a este novo projecto, ou dos mitos gregos,
das histórias da Bíblia, saberá que todos esses extractos estão pejados de
aspectos que poderão ser vistos, à luz do delicodoce internacional, como
violentos, horrendos, sexualizados, negativos, melancólicos, destrutivos… Mas
tal como Sendak assinala com perfeição, estes sentimentos menos prestigiantes,
digamos assim, ocorrem de facto nas crianças, não devendo ser evitados, anulados ou protegidos mas antes
encarados com franqueza e debatidos com inteligência. Apesar de serem mais
ambivalentes e difíceis de gerir, eles têm também o seu papel catártico e
fundamental na construção de uma personalidade multidimensional, forte e
autónoma dos leitores. E é nessa convergência de vontades, de leitores pais e
leitores filhos, que estes livros se tornam fulcrais.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Imagens
colhidas na internet, sobretudo no site da editora.
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