A convergência do
Festival de Beja, o lançamento da Mundo Fantasma enquanto plataforma
de projectos em risografia, as possibilidades de trocas e amizades
criadas online, ou nas escolas, ou em encontros informais, e um
genuíno interesse em ir criando banda desenhada, publicá-la e ver
no que esse caminho traz são alguns dos factores desordenados que
levam ao encontro de publicações variadas. A edição independente,
de pequenos grupos de autores, ou o surgimento de soluções simples
de edição e circulação estão hoje ao alcance de muitos autores.
Não são apenas as fotocópias, mas outras tecnologias de
reprodução; não são apenas os blogs e tumblrs que existem para
trocar informação mas uma vontade em ocupar papel; não é apenas
uma ideia vaga, é meter as mãos à obra. A produção não é
pouca. Eis algumas dessas presas. (Mais)
De modo oficial, a
Bedeteca de Beja publica mais um dos seus cadernos Toupeira, em que
novos autores são apresentados a um público alargado. Esta pequena
monografia é uma antologia de histórias curtas de André Pacheco,
criadas a solo ou em colaboração com escritores. Se quase todas as
histórias se unem por uma preocupação algo poética e vagarosa, em
torno de sentimentos ambíguos. Se em termos de acção, nem sempre
são claras as direcções pretendidas pelo autor, não deixa de
haver aqui uma pesquisa em termos de desenho, composição,
planificação de representação, mas acima de tudo uma procura pela
sua voz autoral. Em termos figurativos, Pacheco tem um domínio
seguro, se bem que há seguramente espaço para explorar outros
caminhos, mas Purgatório, se levado o título a sério, é
apenas um passo para entrar noutras esferas.
La
Dolce Vita, do autor brasileiro sediado no Porto, Sama, é
apenas um dos títulos que o autor apresentou para venda em Beja,
apostado que está em expandir a sua produção, e até mesmo
desdobrando-se em vários projectos editoriais, dos quais daremos
notícia no futuro. Este pequeno conto, feito de vingança e poder
entregue à protagonista feminina, é uma espécie de variação
curta em alguns dos temas gráficos preferidos do autor: um certo tom
noir mas passado pela ironia pós-moderna informada pelo
cinismo dessas imagens, um equilíbrio muito consciente entre
desenhos sumários a contornos negros e uma exploração mais
dramática e densa de tramas e sombras, assim como uma rede de
referências a cada página que não servem de peso, mas antes de
linha de abertura da própria história e universo.
Rocío Landa, Natália
Schiavon, Puipo e Julia Balthazar são um grupo de autoras ou
brasileiras ou que vivem nesse país. Este fanzine, Amigos de
internet, reúne histórias de cada autora, em torno de pequenos
episódios relacionados com aquelas amizades que emergem, nutrem ou
têm mesmo existência nas redes sociais. As autoras estão menos
preocupadas em criar narrativas totalmente lineares e fechadas do que
auscultar alguns ambientes de significados e abrirem às sensações
e impressões existentes nessas esferas. Informadas por uma
alargadíssima família de referências gráficas, da ilustração à
banda desenhada artística, passando pela animação, encontramos
aqui uma linguagem descontraída, fresca e exploradora dos limites
narrativos da banda desenhada.
Chegado ao seu 10º
número, É fartar Vilanagem!, continua o seu passeio pelas
mais diversas plataformas de humor e géneros, estilos e abordagens,
sem jamais coalescer num só território. Mas esse é, talvez, o
charme desta publicação, que fisicamente também procura sempre
diferentes soluções. Trata-se tão-somente de um gesto que
obedecerá à vontade dos autores à medida que a constroem, o que em
si pode ser um excelente cadinho para alguns trabalhos. Temos aqui
uma pequena saga que mete super-heróis e monstros a combater em
Lisboa, em que todos os clichés são visitados mas também aos quais
são pregadas rasteiras. Afinal a desmontagem também é um forte
ingrediente.
A Mundo Fantasma deu
início a uma nova colecção, intitulada Colecção Privada, que
pretende publicar pequenos cadernos impressos em risografia, a uma ou
mais cores, e com valores de produção que, se são simples e
baratos, tiram partido do máximo brio possível. Os dois primeiros
volumes são Liturgia do delírio, uma colecção de desenhos de
Esgar Acelerado, e Vaga, um conjunto de desenhos de Nuno Sousa. O
primeiro é uma espécie de visitação a um universo temático mais
ou menos coerente, mecla de filme de série B em torno de rituais
satânicos e de veleidades jacobinas cujo humor reside no encontro
entre a alta estilização do autor, corroborada pelo superior
trabalho da combinação das duas cores em risografia, e a
representação de cenas BDSM aliadas a formas religiosas. Se hoje em
dia, sob o signo da comercialização das 50 sombras de Grey e
toda a literatura light SM (uma verdade!), o autor ainda
consegue criar algumas imagens com um grau de subversão em termos da
“linguagem média”. Sousa dá uma certa continuidade ao seu
estranho projecto de atomização e apagamento das imagens, unindo-o
aqui a uma veia semi-autobiográfica, transformando memórias de um
espaço concreto da cidade do Porto ligado à sua história familiar
numa linguagem gráfica também ela fantasmática. O livrinho de
Sousa é uma pequena obra, mas que traz questões bastante vincadas
para se pensar questões de fundo e forma.
Gonçalo Duarte e Vasco
Ruivo são dois alunos do Ar.Co, no curso de Banda Desenhada e
Ilustração. Do primeiro já havíamos falado de uma publicação
recente. Estes dois autores, com um conjunto de outros amigos,
colegas do curso ou não, têm publicado uma série de pequenos
fanzines monográficos ou colectivos - de tamanhos diferentes, de que a imagem acima não dá conta - de ilustração e curtas bandas
desenhadas. Lobijovem, Narrativas folclóricas
no. 1, e uma publicação sem título saíram todas pelo selo Dor de
Cotovelo, ao passo que Beijos de mão são brincadeiras de burro
parece estar sob a égide do projecto meussenhores. As linguagens são
variadíssimas, desde o mais estilizado e colorido dos universos à
mais melancólica e soturna das prestações gráficas, passando por
criações feitas a “esferográficas distraídas”. Com material
tão diverso, mas com um humor algo derisório, que talvez seja o
ponto comum, haverá aqui matéria suficiente para procurar várias
vontades, mas seguramente que se encontrarão aqui muitos primeiros
passos, tal como no caso de André Pacheco, de autores que
encontrarão caminhos mais visíveis no futuro.
A OhZona é o
encontro, nada fortuito, entre a publicação Zona e a alemã
Oh, por ocasião de um projecto lançado pelo Instituto Goethe
em Lisboa. Para criar uma rede de colaborações internacionais, e
sob o signo do Carnaval, este pequeno livro apresenta duas histórias,
a “portuguesa” escrita por Gabriel Martins (do blog Alternative
Prison) e a “alemã” por Christoph Mathieu. Cada uma delas é
desenhada por três artistas, a primeira por Caroline Ring, Rui Alex
e Lew Bridcoe, e a segunda por Fil (um dos editores-chave da Zona),
Asja Wiegand e Miguel Santos. “Noite do Diabo”, de Martins, é
uma história coesa, em que cada parte, apesar de desenhada por um
artista diferente, não se desvia de uma unidade de tempo e espaço,
e uma concentração em personagens e motivações. Essa unidade leva
a que haja, da parte do leitor, uma atenção para com as geometrias
criadas entre essas personagens, e vejamos a rapidez com que certas
dinâmicas se criam. Porém, apesar dessa aparente “telenovelização”
dos diálogos, o seu contexto cultural apresenta-se tanto ancorado na
realidade histórica como num desvio surpreendente, para depois
terminar de uma forma emocionalmente inesperada e, por isso,
chocante. Quanto à criação de Mathieu, são na verdade três
histórias curtas, todas elas quase na totalidade narradas por uma
voz desincorporada das personagens, todas elas sobre situações bem
diferentes, sentimentos íntimos, mas todas unidas ora no tal signo
do Carnaval ora numa dimensão qualquer de violência, que pode ou
não ter uma saída de redenção. Graficamente, as prestações são
equilibradas entre trabalhos mais acabados e coerentes e outros mais
titubeantes, mas bem vistas as coisas mesmo aqueles que parecem algo
menos conseguidos apresentam-se de forma sólida e oferecendo o solo
necessário às histórias.
Last but not the least,
encontramos uma publicação que reúne nomes de outros jovens, mas
cuja presença na “cena” nacional já está ancorada, pelo menos
para quem acompanha a edição mais independente – e onde pulula
talvez a mais viva energia deste território. Malmö Kebab Party
é uma pequena publicação que reúne como que os “relatórios de
viagem”, de quatro páginas cada, dos cinco artistas já publicados
nas antologia QDCA, da Chili Com Carne, pela ocasião da sua
visita colectiva a um festival de banda desenhada em Malmö, na
Suécia. Amanda Baeza, Hetamoé, Sofia Neto, Afonso Ferreira e
Rudolfo, autores de quem já falámos no passado igualmente por
várias das suas publicações, encontram-se no mesmo espaço, quer o
simbólico da mesma publicação quer aquele físico e real que
partilharam naquele país. À la Rashomon, podemos ler cada
uma destas histórias, mais ou menos coincidentes, e criar uma imagem
mais alargada que une as pontas soltas, se acreditarmos que estas
confissões autobiográficas correspondem a uma realidade qualquer.
Mas a compreensão dessa realidade nem sequer é o mais importante em
MKP, mas sim estudar com atenção as formas como cada autor e
autora exploram a limitação do formato para os máximos efeitos
expressivos, e compreender também como cada um deles vai ao âmago
das suas próprias linguagens.
Não se ficará o ano de
2015 por aqui no que diz respeito a edições independentes ou
fanzines, mas até à data, a safra parece excelente.
Nota final: agradecimentos
aos autores e/ou editores das publicações, pelas ofertas, descontos
ou encaminhamento.
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