19 de junho de 2015

Mais uma pilha de zines.

A convergência do Festival de Beja, o lançamento da Mundo Fantasma enquanto plataforma de projectos em risografia, as possibilidades de trocas e amizades criadas online, ou nas escolas, ou em encontros informais, e um genuíno interesse em ir criando banda desenhada, publicá-la e ver no que esse caminho traz são alguns dos factores desordenados que levam ao encontro de publicações variadas. A edição independente, de pequenos grupos de autores, ou o surgimento de soluções simples de edição e circulação estão hoje ao alcance de muitos autores. Não são apenas as fotocópias, mas outras tecnologias de reprodução; não são apenas os blogs e tumblrs que existem para trocar informação mas uma vontade em ocupar papel; não é apenas uma ideia vaga, é meter as mãos à obra. A produção não é pouca. Eis algumas dessas presas. (Mais) 

De modo oficial, a Bedeteca de Beja publica mais um dos seus cadernos Toupeira, em que novos autores são apresentados a um público alargado. Esta pequena monografia é uma antologia de histórias curtas de André Pacheco, criadas a solo ou em colaboração com escritores. Se quase todas as histórias se unem por uma preocupação algo poética e vagarosa, em torno de sentimentos ambíguos. Se em termos de acção, nem sempre são claras as direcções pretendidas pelo autor, não deixa de haver aqui uma pesquisa em termos de desenho, composição, planificação de representação, mas acima de tudo uma procura pela sua voz autoral. Em termos figurativos, Pacheco tem um domínio seguro, se bem que há seguramente espaço para explorar outros caminhos, mas Purgatório, se levado o título a sério, é apenas um passo para entrar noutras esferas.

La Dolce Vita, do autor brasileiro sediado no Porto, Sama, é apenas um dos títulos que o autor apresentou para venda em Beja, apostado que está em expandir a sua produção, e até mesmo desdobrando-se em vários projectos editoriais, dos quais daremos notícia no futuro. Este pequeno conto, feito de vingança e poder entregue à protagonista feminina, é uma espécie de variação curta em alguns dos temas gráficos preferidos do autor: um certo tom noir mas passado pela ironia pós-moderna informada pelo cinismo dessas imagens, um equilíbrio muito consciente entre desenhos sumários a contornos negros e uma exploração mais dramática e densa de tramas e sombras, assim como uma rede de referências a cada página que não servem de peso, mas antes de linha de abertura da própria história e universo.

Rocío Landa, Natália Schiavon, Puipo e Julia Balthazar são um grupo de autoras ou brasileiras ou que vivem nesse país. Este fanzine, Amigos de internet, reúne histórias de cada autora, em torno de pequenos episódios relacionados com aquelas amizades que emergem, nutrem ou têm mesmo existência nas redes sociais. As autoras estão menos preocupadas em criar narrativas totalmente lineares e fechadas do que auscultar alguns ambientes de significados e abrirem às sensações e impressões existentes nessas esferas. Informadas por uma alargadíssima família de referências gráficas, da ilustração à banda desenhada artística, passando pela animação, encontramos aqui uma linguagem descontraída, fresca e exploradora dos limites narrativos da banda desenhada.

Chegado ao seu 10º número, É fartar Vilanagem!, continua o seu passeio pelas mais diversas plataformas de humor e géneros, estilos e abordagens, sem jamais coalescer num só território. Mas esse é, talvez, o charme desta publicação, que fisicamente também procura sempre diferentes soluções. Trata-se tão-somente de um gesto que obedecerá à vontade dos autores à medida que a constroem, o que em si pode ser um excelente cadinho para alguns trabalhos. Temos aqui uma pequena saga que mete super-heróis e monstros a combater em Lisboa, em que todos os clichés são visitados mas também aos quais são pregadas rasteiras. Afinal a desmontagem também é um forte ingrediente.



A Mundo Fantasma deu início a uma nova colecção, intitulada Colecção Privada, que pretende publicar pequenos cadernos impressos em risografia, a uma ou mais cores, e com valores de produção que, se são simples e baratos, tiram partido do máximo brio possível. Os dois primeiros volumes são Liturgia do delírio, uma colecção de desenhos de Esgar Acelerado, e Vaga, um conjunto de desenhos de Nuno Sousa. O primeiro é uma espécie de visitação a um universo temático mais ou menos coerente, mecla de filme de série B em torno de rituais satânicos e de veleidades jacobinas cujo humor reside no encontro entre a alta estilização do autor, corroborada pelo superior trabalho da combinação das duas cores em risografia, e a representação de cenas BDSM aliadas a formas religiosas. Se hoje em dia, sob o signo da comercialização das 50 sombras de Grey e toda a literatura light SM (uma verdade!), o autor ainda consegue criar algumas imagens com um grau de subversão em termos da “linguagem média”. Sousa dá uma certa continuidade ao seu estranho projecto de atomização e apagamento das imagens, unindo-o aqui a uma veia semi-autobiográfica, transformando memórias de um espaço concreto da cidade do Porto ligado à sua história familiar numa linguagem gráfica também ela fantasmática. O livrinho de Sousa é uma pequena obra, mas que traz questões bastante vincadas para se pensar questões de fundo e forma.


Gonçalo Duarte e Vasco Ruivo são dois alunos do Ar.Co, no curso de Banda Desenhada e Ilustração. Do primeiro já havíamos falado de uma publicação recente. Estes dois autores, com um conjunto de outros amigos, colegas do curso ou não, têm publicado uma série de pequenos fanzines monográficos ou colectivos - de tamanhos diferentes, de que a imagem acima não dá conta - de ilustração e curtas bandas desenhadas. Lobijovem, Narrativas folclóricas no. 1, e uma publicação sem título saíram todas pelo selo Dor de Cotovelo, ao passo que Beijos de mão são brincadeiras de burro parece estar sob a égide do projecto meussenhores. As linguagens são variadíssimas, desde o mais estilizado e colorido dos universos à mais melancólica e soturna das prestações gráficas, passando por criações feitas a “esferográficas distraídas”. Com material tão diverso, mas com um humor algo derisório, que talvez seja o ponto comum, haverá aqui matéria suficiente para procurar várias vontades, mas seguramente que se encontrarão aqui muitos primeiros passos, tal como no caso de André Pacheco, de autores que encontrarão caminhos mais visíveis no futuro.

A OhZona é o encontro, nada fortuito, entre a publicação Zona e a alemã Oh, por ocasião de um projecto lançado pelo Instituto Goethe em Lisboa. Para criar uma rede de colaborações internacionais, e sob o signo do Carnaval, este pequeno livro apresenta duas histórias, a “portuguesa” escrita por Gabriel Martins (do blog Alternative Prison) e a “alemã” por Christoph Mathieu. Cada uma delas é desenhada por três artistas, a primeira por Caroline Ring, Rui Alex e Lew Bridcoe, e a segunda por Fil (um dos editores-chave da Zona), Asja Wiegand e Miguel Santos. “Noite do Diabo”, de Martins, é uma história coesa, em que cada parte, apesar de desenhada por um artista diferente, não se desvia de uma unidade de tempo e espaço, e uma concentração em personagens e motivações. Essa unidade leva a que haja, da parte do leitor, uma atenção para com as geometrias criadas entre essas personagens, e vejamos a rapidez com que certas dinâmicas se criam. Porém, apesar dessa aparente “telenovelização” dos diálogos, o seu contexto cultural apresenta-se tanto ancorado na realidade histórica como num desvio surpreendente, para depois terminar de uma forma emocionalmente inesperada e, por isso, chocante. Quanto à criação de Mathieu, são na verdade três histórias curtas, todas elas quase na totalidade narradas por uma voz desincorporada das personagens, todas elas sobre situações bem diferentes, sentimentos íntimos, mas todas unidas ora no tal signo do Carnaval ora numa dimensão qualquer de violência, que pode ou não ter uma saída de redenção. Graficamente, as prestações são equilibradas entre trabalhos mais acabados e coerentes e outros mais titubeantes, mas bem vistas as coisas mesmo aqueles que parecem algo menos conseguidos apresentam-se de forma sólida e oferecendo o solo necessário às histórias.

Last but not the least, encontramos uma publicação que reúne nomes de outros jovens, mas cuja presença na “cena” nacional já está ancorada, pelo menos para quem acompanha a edição mais independente – e onde pulula talvez a mais viva energia deste território. Malmö Kebab Party é uma pequena publicação que reúne como que os “relatórios de viagem”, de quatro páginas cada, dos cinco artistas já publicados nas antologia QDCA, da Chili Com Carne, pela ocasião da sua visita colectiva a um festival de banda desenhada em Malmö, na Suécia. Amanda Baeza, Hetamoé, Sofia Neto, Afonso Ferreira e Rudolfo, autores de quem já falámos no passado igualmente por várias das suas publicações, encontram-se no mesmo espaço, quer o simbólico da mesma publicação quer aquele físico e real que partilharam naquele país. À la Rashomon, podemos ler cada uma destas histórias, mais ou menos coincidentes, e criar uma imagem mais alargada que une as pontas soltas, se acreditarmos que estas confissões autobiográficas correspondem a uma realidade qualquer. Mas a compreensão dessa realidade nem sequer é o mais importante em MKP, mas sim estudar com atenção as formas como cada autor e autora exploram a limitação do formato para os máximos efeitos expressivos, e compreender também como cada um deles vai ao âmago das suas próprias linguagens.

Não se ficará o ano de 2015 por aqui no que diz respeito a edições independentes ou fanzines, mas até à data, a safra parece excelente.

Nota final: agradecimentos aos autores e/ou editores das publicações, pelas ofertas, descontos ou encaminhamento.  

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