Declaração
de interesses: remetemos ao texto indicado.
O acto de leitura não é apenas a transposição de um código
gravado na superfície de um objecto traduzido em conceitos. Nem, no caso de
imagens, no da identificação das marcas gráficas com um qualquer objecto da
experiência mundana. A coerência textual nasce do entrelaçamento de toda uma
série de factores, alguns deles inscritos no objecto-livro, outro nas relações
sociais que nos levam a ele, e outros ainda que apenas ao indivíduo-leitor
pertencerão. Nos casos bem-sucedidos, a cognição e descodificação é
complementada, senão mesmo ultrapassada, por um encontro com uma alteridade
total, a qual despertará um desenvolvimento do si substancial. E tal como
podemos identificar situações sociais produtivas e facilitadoras do encontro que
a leitura constitui, e tal como podemos identificar indivíduos com maior ou
menor propensão para a completação desse acto (que nunca é jamais completo,
como apontou Georges Steiner), também poderemos assinalar objectos que, em si
mesmos, convidam a um acto mais completo do que outros. Os livros da editora
Planeta Tangerina, quase na sua totalidade, são livros que convidam
precisamente a actos dessa espécie e qualidade, actos completos de leitura. (Mais)
Conforme já havíamos exposto quando discutimos dois outros títulos desta plataforma editorial, o que encontramos aqui é, a um só tempo, a
fundação genuína de um campo estético holístico, em toda a sua acepção
(inclusive ontológica e ética), assim como um recentramento das possíveis
relações entre o leitor e o livro, entendido este último como um objecto total
e totalizante. Remetemos a esse outro texto, todavia, um mesmo enquadramento
geral que faz sentido recuperar para a considerações destes outros títulos.
Dois dos títulos presentes, agora trazidos à colação, pertencem
à colecção Cantos Arredondados, que fazem avançar uma forma de entender o “livro-jogo”
não através de mecanismos exteriores mas antes pela directa e entregada
interacção física e manipuladora do leitor ou leitora e o objecto em si. Livro Clap
e Daqui ninguém passa! são livros cujas páginas não são “janelas” metafóricas
para um mundo diegético que tem lugar lá dentro, mas objectos em que esses mundos
têm uma osmose total com o próprio livro.
Livro
Clap,
de Madalena Matoso, é um livro na verdade que apenas quando está fechado está a
cumprir o papel a que se promete. Todos os flap,
flap, os bong, bong, clap, clap, plim, plim, e as onomatopeias que se seguem apenas funcionam quando
as personagens no seu interior vêem novamente unidas as páginas, e os objectos
assinalados que anseiam pela sua união sonora: as palmas das mãos, as asas de uma
borboleta ou de um pássaro, as abas de uma tostadeira, os corpos que se dobram.
Ou na verdade, é abrindo o livro, descobrindo a situação e voltando a fechá-lo,
e depois repetir o abrir e fechar, abrir e fechar, que as acções se vão
cumprido e as onomatopeias se vão formando. Sobretudo se os leitores se
entregarem a esse jogo, externo ao livro, mas tornado obrigatório por ele.
Daqui ninguém passa!, de Isabel Minhós Martins e Bernardo
Carvalho, é um livro sobre dois temas. Por um lado, o da autoridade, a lógica
das suas acções e poder, e sobretudo arbitrariedade e total inépcia em
compreender a verdadeira vida. Por outro, um declarado prazer na ocupação e
alastramento gráfico que o desenho permite. A gestão das duas páginas – cada spread é uma unidade ou passo na
história – é totalmente decisivo na compreensão da narrativa e até na mecânica
do seu protocolo de leitura. Até as guardas do livro concorrem para a ideia de
celerada e alegre ocupação dos espaços, com a chusma de personagens incontáveis
inquietamente esperando entrar em cena e, depois da situação que as permite
atravessar a “linha imaginária da autoridade”, abandonadas no seu frenesim. Talvez,
talvez, também se poderá ler este livro como um manifesto sobre as fronteiras…
Os outros volumes pertencem à colecção dos livros mais
regulares da editora, e aqueles que costumam ser pesquisas profundas de uma ou
outra dimensão da existência humana através dos textos que as enfrentam sem
pejo, vergonha ou derrota. Bem pelo contrário, a escrita de I. M. Martins é uma
extremamente ponderada pesquisa de níveis de linguagem, vocabulário e tom. Se há
naturalmente uma preocupação em burilar textos acessíveis a um público mais
jovem e alargado, não há qualquer tipo de distanciamento artificial de palavras
“difíceis”, e mais, de “temas” que seriam vistos como difíceis. Com o tempo, criado em colaboração com Matoso,
é precisamente sobre as consequências da passagem do tempo, observando não
apenas o comportamento incansável dos ponteiros de um relógio, mas também do
crescimento de grelos em legumes ao bronzear da pele até mesmo às alterações
físicas que se esperam nos nossos corpos ao envelhecer ou em outro tipo de
transformações menos imediatas, como aquelas que emergem das viagens, da
aprendizagem, as transformações comportadas pelo avanço da tecnologia ou da
malha urbana, ou da moda e dos ciclos naturais. Montada a sequência de uma
maneira que articula estes vários níveis de existência, com os jogos visuais de
Matoso em que a simplicidade se alia à redução icónica e ao pormenor de textura
que assinala um significado especial, criando ecos e repetições que trazem uma
ideia acrescida ao que explicitamente se expõe, o tempo passa também pelo
próprio livro, tornando o acto da sua leitura e descoberta numa ilustração ela
mesma desse mesmo conceito.
Abzzzz…, também
de Martins, com Yara Kono, é basicamente um abc hipnótico, que quer mostrar os
passos necessários ou suficientes em direcção ao sono. Cada página apresenta
uma letra, cada letra um objecto (que pode ser um objecto propriamente dito ou
um animal, uma acção ou uma expressão, uma medida ou uma característica), cada
objecto uma pequena lição descritiva do que se tem de fazer antes de dormir ou
para que se consiga dormir. Ao mesmo tempo, é uma corrida, tanto de pressa como
de resistência, para entender (a jogar, mas sem excitação) quem conseguirá ler,
pausada e tranquilamente, todas as letras antes de adormecer.
Mais uma vez, como os outros, um livro que obriga não somente
a um acto “simples” de leitura, mas a actos complexos, entregues e integrados
de uma performance completa, que
abrace os corpos aos livros, entreteça as palavras às imagens, estas às páginas
físicas, a navegação a um prazer de descoberta delicado.
Nota final: agradecimentos à DGBL.
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