O emprego de livros de
banda desenhada com intuitos informativos ou mesmo pedagógicos não
é uma novidade. Todavia, a esmagadora maioria dos projectos que se
entrega a esses fins usualmente trilha caminhos didácticos e secos,
no sentido em que partem de posições de saber ou mesmo de poder
para depois veicular “lições” aos seus leitores. Uma das formas
de corrigir esse posicionamento é aquele proposto por Squarzoni: o
de, ao ir fabricando o seu projecto, procurar ele mesmo compreender a
questão sobre a qual se propõe aprender. (Mais)
O autor não tem respostas
sobre a ideia das alterações climáticas em curso no planeta,
suposto “tema” do livro. Tal como muitos dos seus leitores,
também ele se sentia (ou sente) algo perdido face à rede de
direcções possíveis de investigação. Aliando o seu trabalho
usual – reportagens em banda desenhada – a esta questão
premente, que tinha sido tocada, ao de leve, no seu ensaio sobre o
capitalismo, Dol, Squarzoni
dá início a um processo de leitura e entrevistas que vão
coalescendo nessa tentativa de resposta. Citando as suas fontes,
mostrando os livros que lê, as fontes de informação que consulta,
começa por fazer descrições simples das relações entre a Terra e
o Sol, sobre a temperatura e os gases existentes no planeta,
contrastando com o de outros planetas do sistema solar, ou estudando
o que se sabe da história a longo prazo, sobre os fenómenos
naturais da fotossíntese à decomposição orgânica, e passando a
processos industriais, do abate de florestas à exploração animal e
uso de combustíveis. Além dessas informações, Squarzoni apresenta
igualmente uma sequências de entrevistas editadas, a personalidades
que o ajudam a navegar nestas confusas águas. Jean Jouzel,
climatologista do Laboratório para as Ciências Climáticas e o
Ambiente (LSCE), Hervé Le Treut, director do Laboratório de
Meteorologia Dinâmica do Instituto Pierre Simon Laplace, Stéphane
Hallegatte, climatólogo que trabalha no World Bank Sustainable
Development Network, e outras personalidades entre economistas,
especialista de desenvolvimento, um físico nuclear, etc. Esse
painel, já para não falar de um apoio fundamental do Painel
intergovernamental sobre mudanças climáticas, ou IPCC, que reúne
milhares de cientistas de todos os ramos, “voluntariando os seus
esforços” para “criar uma perspectiva global clara sobre a mais
recente informação científica e sócio-económica sobre ciência
do clima”, é o solo que cria o sustento informativo do edifício
que Squarzoni tenta criar, neste seu livro de mais de 450 pranchas.
É
através dessa diversidade, tecida num fluido passeio pelas mais
diversas facetas, que, aos poucos, nos aproximamos do verdadeiro
“culpado”, se assim se pode dizer: todo o sistema sócio-económico
montado pelo dito Primeiro Mundo, a sociedade de consumo, as formas
rápidas de obsolescência de sistemas, e os modos de cumprir
políticas ambientais, de trabalho, produção industrial, exploração
agrícola e animal à escala global. Daí que não admire que
Squarzoni dedique alguma parte do tempo a estudar as relações entre
países, a certas “quotas” de emissões ou exploração, e até
mesmo à maneira como a publicidade é construída, que nos força
imagens distorcidas das responsabilidades e equilíbrios entre
poderes, energias e interesses económicos específicos.
Dos livros anteriores de
Squarzoni, alguns dos quais lemos aqui, parece-nos que Climate
Changed (no seu título original francês, Saison brune) é
o mais pessoal. Não por o autor se colocar no centro do foco móvel
das suas pesquisas, que era já apanágio das suas reportagens em
banda desenhada (é mesmo uma das facetas ou instrumentos da
reportagem ou jornalismo em banda desenhada), nem por revelar aqui e
ali um pouco mais da sua vida pessoal, mas por centrar o papel
fundamental da dúvida e da indecisão na sua experiência. O livro
começa com considerações de inícios de discursos, e os seus
términos. Recorrentemente, como que “interrompendo” a narrativa
principal, o autor regressa a memórias da infância ou adolescência,
à casa de montanha onde passa uma temporada com a namorada, a
pequenos episódios da sua vida. A reminiscências e problemas que se
lhe atravessam, na vida pessoal e profissional, as contradições que
perfazem a sua vida. Se usámos aspas para a ideia de interrupção,
isso deve-se a de que elas não o são, uma vez que estas dúvidas e
momentos em que se descentra a atenção para o eu constituem o
próprio discurso que estamos a ler, no sentido em jamais retirarmos
o autor das equações estudadas e, por conseguinte, não nos
retirarmos a nós mesmos. Daí que o seu sub-título em inglês seja
“A personal journey through the science”. Ou seja, o que começou
como um processo de compreender certas expressões e o que elas
acarretavam – começando por “alterações climáticas” - acaba
por se tornar uma exploração do próprio comportamento, e do papel
que um indivíduo determinado tem no dito “ciclo do carbono”.
Climate Changed não
é, de maneira algum, um livro leve e “feel good”, em que se
apresentem “15 ideias em que podes ajudar o ambiente!”, ou algo
tolo dessa espécie. Bem pelo contrário, a leitura do livro leva a
uma obrigatória depressão, resultado expectável na compreensão
das nossas “pegadas”. São questões pertinentes, difíceis e
abrangentes que vão ao osso da problemática, a qual vai dar sempre,
sempre, ao mesmo denominador comum: as políticas económicas (e
consequentemente industriais, materiais, e, necessária e
propriamente políticas) do capital financeiro, sobretudo aquele
ancorado na exploração de combustíveis fósseis.
O livro está cheio de
contradições, mas essas contradições fazem parte precisamente da
nossa vida contemporânea, de 1º Mundo pós-industrial e burguês.
Ao escrevermos este texto num computador, e colocá-lo num blog,
podemos viver a fantasia de que o digital não tem responsabilidade
nestes gastos, mas o conhecimento das tecnologias que permitem esse
facto – desde o controlo da electricidade ao consumo de
electrónica, a questão da cassiterita ou do volframite africanos,
etc. - corrigirá esta ilusão e revelará, no fundo, se não a
“cumplicidade” ou “responsabilidade”, pelo menos a
“implicação”. Não nos podemos separar confortavelmente desse
processo, se fazemos parte desta sociedade.
O
livro está dividido como que em partes, mas estas não correspondem
propriamente a concentrações temáticas ou inflexões das
pesquisas. Simplesmente o autor aumenta os momentos de pausa e
afastamento da matéria que decorre, de maneira a poder respirar o
ritmo e densidade das informações e do grau de implicação que vai
sendo aventado. O autor trabalha, contudo, as suas características
conhecidas: há, por um lado, linhas de desenvolvimento que se mantém
na mais estrita das representações realistas, devolvendo, por assim
dizer, as hipotéticas experiências que o autor teve, mas por outro
uma profunda pesquisa de representações alegóricas, metafóricas,
misturando de estratégias meramente (nunca o são) infográficas até
sequências quase alucinadas para transmitir uma ideia – como a
assunção de Pais Natais como representantes da sociedade
contemporânea de consumo e o seu sumário assassinato pelo próprio
autor e a namorada, transformados em super-heróicos ninjas
eco-guerreiros. No entanto, esta estranha a hiperbólica acção tem
lugar por várias razões, parece-nos. Não é apenas um paradoxal e
irónico emprego de típicas estratégias de comunicação e ficção
mais apropriados ao escopo de atenção da esmagadora maioria do
público, e como um contraponto à percepção de que as entrevistas,
com as suas “talking heads” é “seca”. Trata-se mesmo de
demonstrar como a ideologia do espectáculo e desse tipo de
mecanismos ficcionais é cúmplice do mesmo substrato social que
preside ao consumo, o qual por sua vez é o denominador comum da
situação analisada pelas suas várias dimensões ao longo do livro.
Este tema é, como se
imagina, extremamente complexo, uma vez que envolve toda uma série
de esferas distintas, elas mesmas já em si complexas. Não se trata,
afinal, apenas de uma questão científica, mas de uma questão que
envolve variadíssimas disciplinas científicas, as quais têm de
trabalhar em concerto. Não se trata somente de uma questão relativa
à política local, mas antes à coordenação internacional e até
mesmo supra-nacional de toda uma série de organismos. Não se trata
de uma questão somente ideológica, se bem que essa faceta tem o seu
papel óbvio, mas uma questão interpelante a nível ontológico. E
que acarreta em si uma pergunta relativamente simples de colocar,
mas impossível de responder cabal e finalmente: somos nós, enquanto
seres humanos, parte ou não da natureza? Repare-se que não
perguntamos se somos parte da “biosfera” ou se temos algum papel
no “ciclo” da água, matéria, transformação de energia e
espaço, etc., que já acarretaria em si uma resposta (positiva). A
utilização do termo “natureza”, desde logo um termo que remete
ao inato, àquilo que emerge, é também uma noção que pode ser
lida com alguma distância do ser huamno contemporâneo, que se vê
fora e afastado daquela outra esfera. Já colocarmos a questão nos
termos do “bio” ou mesmo do “zoe” (a vida orgânica, por
oposição à vivida pelos seres humanos), transformaria
profundamente as condições da pergunta. O autor não procura
ancorar as suas respostas filosóficas em discursos já existentes,
mas nutre, sem dúvida alguma, uma exploração profundamente
filosófica na abordagem do “assunto”, mesmo que de formas
simples.
Nota final: agradecimentos
à editora, pela oferta do livro. Imagens colhidas na net.
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