O problema começa de imediato na nomenclatura utilizada: ao
empregarmos “títulos”, estamos a querer confundir cada um destes objectos, projectos,
coisas, textos, com uma natureza mais confinada à literatura textual, aquela
cuja presença, valorização e força se encontram precisamente no texto verbal,
independentemente da forma material com que se veste, autónoma da distribuição
espacial pela qual se veicula. Thomas
A. Bredehoft, em The visible text,
fala de “transparência”, no sentido em que o acto de leitura da literatura é,
na esmagadora maioria das vezes, uma estrutura medial que nos conduz a uma
produção particular de linguagem. Daí que possamos falar do texto “A” do
escritor x, independentemente das edições desse mesmo texto (apesar de, em
certos casos, as edições textuais em si serem determinantes para certas
qualidades e dimensões textuais). (Mais)
Mas há
textos que, ainda com Bredehoft, “não são textos”, uma vez que se apresentam
enquanto objectos opacos, planos concretos e sensíveis, que convidam a “um
complexo modo de interpretar o visível”, o que pode presidir a escolhas
cognitivas e emotivas em relação à parte do texto verbal. Ora, estes
objectos que saem da prensa de João Sebastian, ou Papeleiro Doido, terão de ser
descritos de uma forma atabalhoada, uma vez que não são apenas “títulos” ou “textos”,
mas objectos totais em que toda e qualquer dimensão se constitui como elemento
de interpretação e fruição.
Com a
poesia visual, os poemas-colagem de Rui Pires Cabral, alguma banda desenhada e
alguma literatura ilustrada, temos alguns exemplos intensos da intrínseca e
implicada relação entre uma hipotética e apenas abstractamente separável faixa
verbal e a visual, em que ambas se informam, estruturam, constituem, ou que conjuntamente
moldam a realidade que são. Nalguns casos, devido ao peso exercido por outras
esferas sociais, somos levados a fazer inscrições mais simples ou imediatas,
mesmo que elas revelem alguma limitação. Por exemplo, regressando a Pires
Cabral, repare-se como a recente antologia “completa” da sua poesia, Morada,
não reúne os poemas-colagem. Decisão editorial ou autoral, pouco importa nesta
discussão, mas se compreendemos essa autonomia, perguntamo-nos o que a
informará: uma questão de pura e simples economia de reprodução? Uma
compreensão de que se trata de uma produção poeticamente separável das demais?
E, tal como ocorre com tantos outros casos (pensemos no caso-charneira, William
Blake), quem nos garante que num futuro não haverá a possibilidade de “arrancar”
os poemas de Biblioteca de rapazes à sua dimensão material-visual?
Seja como
for, mesmo ao considerarmos esse livro, o movimento imediato é o de inscrever
esse livro numa categoria lata de “poesia”, ou pelo menos de “literatura”,
regressando ao seu autor, confirmando-lhe o papel de “escritor literário”. Mas
em casos como o do Papeleiro Doido, que categoria sugerir? “Escritor” parece
ser um termo demasiado mole e impreciso para os actos levados a cabo por João
Sebastian, uma vez que não se trata, a nosso ver, de um burilar das frases e
dos parágrafos para depois procurar uma camada de “beleza” circunstancial, uma
belas vestes, para levar o texto ao leitor. Como o próprio autor o diz no seublog, e a escrita em si é levada a cabo com a manipulação momentânea, imediata,
dos tipos de madeira ou de chumbo, das regueretas, dos quadros de composição, do
tipo de papel arregimentado para certo projecto, para tropeções ocasionais numa
ideia, objecto ou “coisa” externa que dite as condições e passos do projecto, da
cisalha, dos carimbos… Um trabalho de unidade, não de complementaridade de
passos sucessivos.
A questão
aqui remete-nos de novo a Walter Benjamin, no símile em que a beleza, a unidade
da beleza, de uma maçã não reside na sua polpa ou na sua pele separadamente,
mas na sua completude, o fruto na sua pele. Por sua vez, esta noção remete-nos
para o professor de Benjamin, Baudelaire, para quem a beleza era uma unidade em
fluxo de um elemento eterno e invariável e um outro relativo e circunstancial. Sebastian
expõe a situação com a sua costumeira linguagem chã, de hombridade prosaica, uma
simplicidade desarmante e de franqueza desopilante: “Serei poeta? Serei pintor?
A verdade é que tenho mãos de operário.”
Quer
acreditemos que a dimensão gráfica e visual de um objecto possui qualidades
intrínsecas, quase “naturais”, e que cor, dinâmicas, texturas, etc., remetem a
certos afectos associados, quer compreendamos toda e qualquer produção gráfica
como resultado de convenções sígnicas societais, a verdade é que aos nos
aproximarmos de objectos tais como os do Papeleiro Louco, não estaremos a ler
somente um texto – a parte verbal -, mas a entregar-nos a uma experiência total
no que respeita aos movimentos de abertura do livro ou do objecto, a sua
manipulação, que pode ou não ser coordenado como “leitura”, ao toque da textura
do papel e da forma, à apreciação das cores e formas da letra, a sua
distribuição na mancha tipográfica, à concatenação dos elementos peritextuais (índices,
cólofons, fichas técnicas, etc.) que contribuem alguma coisa à sua recepção.
Enquanto
membro da Oficina do Cego, e passe a publicidade na parte pessoal que nos toca,
João Sebastian não apenas tem contribuído com o papel de tipógrafo para certos
projectos, tais quais a colecção Abstrusa (em que um dos últimos volumes teve a
nossa mão), como de “operário” textual, como é o caso de Às cegas e O
elogio da cabeça oca. Já estes três objectos, apenas uma amostra da sua produção
contínua – e que penso se intitularem Irra!, desalinhados e Declaração
anónima – têm todos os seus passos manipulados pelo autor: a lavra do texto
ou a colheita de uma frase, a composição dos tipos e a sua impressão, o corte e
dobragem do papel, as outras intervenções nos acabamentos, etc. Como em todos
os exercícios de leituras complementares e comparativas, haverá sempre pontos
de contacto e outros de divergência, quase todos eles óbvios numa primeira
abordagem, noutras exigindo um maior esforço de leitura.
Por
exemplo, os três projectos que estamos a manipular de momento possuem todos
tipos de letra grossas, grandes e impressas a vermelho (para ser preciso, um
deles é a um laranja esbatido). Dois deles são tipos de madeira, outro parece
ser recortado à mão a partir de um material flexível qualquer. Essas letras “principais”
estão todas desalinhadas e são sempre a espinha dorsal do texto verbal, se não
o único. Mas será o efeito idêntico? Não, pois muitos dos outros elementos se
alteram e, consequentemente, alteram as linhas idênticas desta descrição
sumária.
Desconhecendo
a ordem genealógica dos textos – o que poderia revelar algumas linhas de
desenvolvimento em termos temáticos, de atitude, de relações entre texto e
imagem/matéria – tentemos uma aproximação, curta. Em desalinhados, essas
letras, essa palavra, aparece separada de um longo texto de cariz
autobiográfico, para exercer sobre ele o papel de substrato de onde parte,
fantasma que sobre ele preside e fito para onde ele contribui. Em Declaração
anónima, sendo apenas uma única frase que constitui a matéria verbal (“Não
sei se terei lugar no Céu”), impressa na face de um longo rolo, cuja outra face
apresenta duas faixas de cor negra e vermelha, imita-se, talvez, o processo de
descoberta dessa mesma frase pelo Papeleiro, ou procura-se devolver a ideia da
sua eficácia no acto de desenrolá-la/desvendá-la/revelá-la, gesto antigo. Em Irra!,
essa mesma interjeição, surgindo oito vezes (inclusive o título), seis delas
numa folha que se vai consequentemente desdobrando em leporello, ganha uma
presença rítmica e de insistência que traduz a urgência e força da expressão. Fundo,
corpo e exclamação, cada qual a seu modo tem uma presença vincada e
diferenciada conforme o projecto total, dependendo da relação que têm com o
texto principal ou se são esse mesmo texto, se ocupam uma faceta ou várias das
páginas, ou qual o papel que têm na mancha, ou em que medida ela surge em
relação aos gestos necessários para folhear, desdobrar, desenrolar a
publicação.
Poesia? Pintura?
Tipografia? Poesia tipográfica? Tipografia pictórica-poética? É possível que
todas essas categorias sejam tão pertinentes quanto falhas. Há antes um hausto
de burilamento, gesto operário, sólido e urgente.
Nota: agradecimentos a J. Sebastian, pela oferta das
publicações.
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