O isolamento criativo dos autores,
mesmo numa cena incipiente como a portuguesa, poderá dar francos
frutos. Num curto período, o elusivo Nunsky, que havia apresentado
uma fulgurante mas fugaz novela com “88”, que ocupara todo um
número do fanzine mutante Mesinha de Cabeceira, há 20 anos,
regressou para apresentar toda uma bateria de trabalhos acabados,
coesos, densos, inteligentes e graficamente vincados, cada qual com a
sua própria personalidade de humor, género, tradição, e exigência
de leitura. “Espero chegar em breve” é o terceiro desses gestos,
compaginando-se igualmente como totalidade do último número da
mesma série de fanzines indicada cima (o 28º número, cujo formato
e capa texturada o torna como se fosse uma brochura dos serviços
intergalácticos no interior). Desta feita, trata-se de, numa
descrição simples, como reza na própria capa, uma “adaptação
do conto de Philip K. Dick”, cujo título original é “I hope I
shall arrive soon”, apesar da sua versão primeira ter tido um nome
mais prosaico, “Frozen Journey”. (Mais)
Económica, a história centra-se em
Victor Kemmings, o qual por erro acorda do seu sono criogénico a
bordo de uma nave interestelar, dez anos antes de chegar ao seu porto
final. Por forma a que Kemmings não entre em colapso mental, o
computador de bordo vê-se obrigado a estimulá-lo por várias vias,
começando por fazê-lo reviver memórias, que Kemmings “corrige”
através de vários desvios, e depois fazendo-o imaginar como será a
chegada à colónia extraterrestre. Mas seja a experiência
analéptica seja a expectativa proléptica, o cenário acaba por ser
negado pelo próprio Kemmings, que sabota essas tentativas com tiques
neuróticos crescentes, complicando as putativas diferenças entre o
consciente e o inconsciente, a memória e o sonho, a experiência da
vigília e as projecções simbólicas.
Escrito já na fase da trilogia VALIS
e de A Scanner Darkly, estamos num território ainda mais
profundo de P. K. Dick da sua pesquisa sobre o que constitui a
realidade humana, ao compreendermos que a percepção não é feita
somente de dados físicos e de estimulação externa, mas que todo o
substrato mental, psicológico, societal, interrenacional,
misterioso, onírico, etc. cria igualmente uma massa com a sua
própria força gravitacional… Apesar do tema ser claramente a do
cerne que torna um ser humano tal coisa, isto é, a teia da
identidade, a verdade é que as implicações filosóficas mais
tipificadas de Dick não deixam de se fazer sentir imediatamente.
Não nos parece que o mais
significativo deste conto seja simplesmente a ideia da ilusão, e
depois a emergência da paranóia nas suas mais diversas formas, até
tomar conta de forma total da personalidade de Kemmings, que negará
a vivência “real” de acordo com a sua desconfiança
interiorizada. Há, para além disso, como que ecos de uma
religiosidade de laivos cristãos, onde o “chip da culpa” está
sempre presente e se torna mesmo o móbil da relação do crente com
o tempo, quer o passado quer o futuro, manchados ambos pelo grau do
“pecado” em que o crente julga ter incorrido. Para o cristão, o
Inferno não são os outros, é ele mesmo que o tece. Aqueles que
estudam a religiosidade em Dick teriam algo a dizer de modo mais
concreto, balizado e argumentado, mas os messianismos do autor são
relativamente consabidos. Ora esse aspecto surge aqui como que numa
“forma negativa”, uma espécie de âncora ou prisão que se vai
tornando cada vez mais encarnada em Kemmings até este nem sequer
notar nas cadeias. A questão está, naturalmente, em se nós mesmos
reconheceremos as nossas por antonomásia...
Flutuando por entre as várias
“consciências” acessíveis ao mega-narrador – a de Kemmings,
da A.I. da nave e depois de Martine -, e pelos diálogos entre as
personagens (algumas das quais relembradas por Kemmings, outras
“corrigidas”, outras ainda “imaginadas com apoio”, etc.),
cria-se uma rede concentrada mas complexa, das formas como essas
mesmas consciências entram em conflito entre si mas através desses
mesmos conflitos se tecem. A nossa também com elas poderá dialogar.
A adaptação do conto pelo autor
português é fiel, precisa, quase extrema, quase ipsis verbis,
mesmo, ou com transposições exactas das descrições textuais, se
colocarmos de lado o facto, natural e óbvio, de que toda a aportação
imagética não apenas é da total responsabilidade e criação do
artista como traz uma mais-valia de significado não-previsto no
texto original. Isto é, não estamos perante uma experiência de
adaptação livre ou que pretenda partir do texto para
consubstanciar-se numa banda desenhada autónoma em termos próprios,
mas numa transmediação cuidada. O facto de existir no conto uma
referência aos Freak Brothers de Shelton torna esta
adaptação por uma “estrela do underground português”
(esta expressão não deixa de ser tão pateta como aquelas
personagens) particularmente curiosa.
Apesar dos desenhos de Nunsky serem
reconhecíveis como tal, com a sua austera e sólida figuração,
notar-se-á de forma evidente que a assinatura do traço acompanha um
registo distinto daquele de Erzsébet e de Nadja,
seguindo métodos de artes-finais particulares. O uso de linhas
paralelas para marcar as sombras, a oscilação entre momentos
melodramáticos, de poses estáticas e construções simbólicas –
a recorrente apresentação simultânea do rosto de Kemmings tal qual
no seu semi-sono criogénico e a sua consciência interna acordada
(usada de forma excelente e retro-psicadélica na capa) - , faz
recordar muitas das assinaturas clássicas que emergiram nos comics
de terror e de ficção científica da EC Comics (que muito bem
diluía esses géneros uns nos outros), e se manteriam até autores
como John Ridgway, com sentimos algumas afinidades neste volume, se
bem que muito mais sofisticado do que todos eles em termos de
variação de composição. Em 41 pranchas, a densidade intelectual
de Dick (chamar isto de “ficção científica” somente é falhar
o alvo) e expressiva de Nunsky unem-se para apresentar uma soberba
novela.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do volume.
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