Há algo de profundamente
desconcertante ao sermos confrontados com mundos demasiado perfeitos,
em que não há espaços para sombras ou as próprias sombras são
inócuas logo à partida. Talvez tenha a ver com o facto de que a
esmagadora maioria das histórias tradicionais sempre tiveram um
substrato de violência e horror, depois higienizado ao longo do
século XIX e para mais no século XX ao passarem pelos filtros
moralistas e materiais de meios como a banda desenhada e a animação,
mormente aqueles exclusivamente dedicados aos leitores e espectadores
mais novos. Se houve caso de estudo para “o regresso do reprimido”,
ei-lo. A emergência dos universos Disney, sobretudo, levariam a esse
desejo de o conspurcar o mais rapidamente possível. Senão, veja-se
a rapidez com que estas personagens encontraram espaço nas Tijuana
Bibles. (Mais)
Mas é graças à explosão dos
underground comics, nos anos 1960, com Crumb e companhia, que
toda a matéria visual e plástica dessa banda desenhada e animação
tipificada, usualmente chamada de “rubber hose” ou “big foot”
se torna uma panóplia re-utilizável em tratamentos de fantasmas.
Sexo, drogas, contra-cultura, agendas políticas específicas
contrárias à via conservadora vigente, etc. são o pasto temático
para re-empregar essas personagens ou figuras similares e interrogar
as fronteiras da moralidade, da mundividência política, da
inscrição social. O caso dos Pirate Funnies será apenas o
mais famoso deles, mas são inúmeros os casos de détournement
dessas figurações, continuadas até aos nossos dias, como os
exemplos de Al Columbia ou Bertoyas. Mas nos anos 1980 houve também
este gesto, em solo francês, de criar uma pequena saga que olhava
para o aparentemente inócuo mundo das Silly Symphonies e
procurava o seu lado negro. É assim que Jean-Paul Dionnet, depois de
ter abandonado o projecto da Métal Hurlant, e Michel Pirus,
que aqui encontrava o seu primeiro longo trabalho, criam a história
de Malcolm, o rato, o qual, ao celebrar o seu quinquagésimo
aniversário na “companhia”, resolve apanhar um pifo descomunal
que o leva a tomar em mãos o que sempre lhe fora negado, a saber, os
afectos – procurados sob a forma de uma violação – da pastora
Mimi.
No mundo de Malcolm, tudo aparece feito
e planeado. Não há que ter grandes preocupações com a alimentação
ou o trabalho, pois tudo surge ex machina.
Apesar das inúmeras elipses e buracos de informação, aos poucos
apercebemo-nos de que todas as aventuras passadas pelas personagens
os fazem retornar sempre ao ponto de partida, e não há maleitas que
se mantenham. Todos cantam, dançam e se divertem, pois não há
preocupação alguma. O acto obsceno e violento de Malcolm, porém,
traz uma divergência nesse mundo e ele acaba por ser expulso para um
“mundo exterior”, um dos quais é o “mundo cizento”,
exagerado, é certo, mas parecido com o nosso. Onde se trabalha, se
pena e se sofre, mas em liberdade. Depois seguir-se-á o regresso de
Malcolm ao seu mundo, com o intuito de inverter a ordem desse
sistema.
Não
deixa de haver alguns aspectos algo moralizantes menos conseguidos da
parte dos autores, sobretudo no confronto com a nossa própria
realidade, apesar de ser esse mesmo o propósito destes exercícios
de détournement, mas
se algumas das piadas podem ser efectivas de modo momentâneo, nem
sempre são conteúdos que se possam revisitar, já esgotados. Ainda
assim, são variadíssimas as observações subtis que nos farão
certamente reler e rever os universos ficcionais a partir do qual
este é criado de uma forma diferente, mais crítica.
Esta é uma antologia de uma série que
foi publicada em episódios na L'écho des savanes, entre 1988
e 1989, mas que já havia sido alvo de republicação em álbum nesse
mesmo ano final. Nesse aspecto é uma reedição importante de um
material histórico para colocar na compreensão da bande dessinée
animalière. A diferença substancial está não apenas no
formato e qualidade de impressão, mas igualmente no acréscimo de um
subsídio final, sobretudo de textos mas acompanhado com muito
material visual, no que chamam “The Malcolm Connection”.
Explicando de uma forma muito sumária, trata-se do caso (que não é
fácil destrinçar se se trata de uma exercício apócrifo
metatextual da parte dos autores, uma mera brincadeira de um terceiro
ou algo verdadeiro) de um suposto especialista de animação
norte-americana que pretende demonstrar como Dionnet e Pirus não
estavam a criar uma nova personagem mas antes a citarem uma criação
de facto de um estúdio obscuro dos anos trinta, o American
Association of Animation. Dessa forma, providencia informações,
dados, datas, e vemos igualmente material visual que corrobora ou
complica essa ideia, fantasiosa ou não. Independentemente da posição
do leitor perante a ontologia dessas informações, o que se ganha é
uma espécie de perspectiva, mesmo que algo distorcida, da produção
real da animação americana de estúdio das décadas de 1930 e 1940,
tocando muitos dos temas que efectivamente os estúdios Fleischer ou
Disney tratavam, explorando muitos dos conceitos de produção,
métodos de trabalho, etc. As imagens que acompanham fazem um esforço
para mimar muitos dos materiais da época (estudos de personagem,
materiais promocionais, logotipos, model sheets e bandas
desenhada de jornal), mas nem sempre há uma mimese mais acabada em
termos materiais, pelo que a ilusão tem os seus limites.
Nota final: agradecimentos a editora,
pela oferta do volume. Quase todas as imagens colhidas da internet.
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