Há um fôlego na
banda desenhada francófona contemporânea que parece alimentar o desejo de toda
uma série de autores em construírem narrativas longas, densas e que procurem
ocupar um nicho a que se poderia dar o nome de “o grande romance gráfico contemporâneo”.
Até mesmo em termos de formato vemos apostas em volumes maçudos, de capa
cartonada, com pormenores de valores de produção, alimentando materialmente o
ensejo interior. Há casos de adaptações literárias, autobiografias ou
reportagens ou relatos implicados, mas sobretudo projectos de ficção, como é o
caso deste novo livro, do autor de Portugal.
Se essa outra prestação nos parecia ter sido algo adocicada no seu tratamento
do “outro” (que, no caso, corresponderia a um “nós”), o novo trabalho de
Pedrosa procura um foco atomizado, mas com isso procura capturar uma
experiência mais alargada de vida. (Mais)
Como havíamos dito
na nossa introdução ao livro de Aimée De Jongh, não podemos deixar de perder de
vista que estes volumes surgem num panorama com um substrato importante
histórico. Há quem acredite que não é necessário pensar a história na
consideração, ou até mesmo a criação, de novos gestos, mas isso revelar-se-ia
uma falácia de abordagem crítica, impedindo uma valorização ou uma
contextualização, mesmo que isso leve a relativizar as supostas “conquistas” ou
“inovações” das obras contemporâneas. Com efeito, apesar de toda a sofisticação
de Cyril Pedrosa, neste livro, que é mais grave do que Três Sombras e Portugal, não estamos perante intensidades
do calibre de um Forest, um Davodeau, um Larcenet, um David B., uma Dominique
Goblet, para citar alguns dos nomes que nos parecem os mais vincados numa certa
qualidade de escrita da emoção humana na banda desenhada de expressão francesa
dos últimos trinta anos. Todavia, isso não serve para minorar o valor de Les équinoxes,
mas antes para o colocar numa senda à qual é nitidamente devedora, mesmo que os
seus elementos materiais ou temáticos não o espelhem de forma directa ou
explícita.
Este é um livro
que se pode chamar de “polifónico” de uma maneira claríssima, até fácil. Com
efeito, Les équinoxes não segue
apenas uma perspectiva, fosse ela associada a uma só personagem, criando uma
visão subjectiva do seu mundo diegético, ou de um narrador externo, criando a
ilusão de um controle absoluto. A trama é atomizada em várias linhas de perseguição,
não apenas de personagens, cujos graus de cruzamento são variados (permitindo
comparações com obras tais como Tungstênio, de Quintanilha, por exemplo, ou até Vive le marée!, de Prudhomme e Rabaté, ambos lidos anteriormente), mas igualmente
de tempos – não apenas se estendendo durante um ano, mas procurando um diálogo
entre eras - e níveis existenciais, se bem que debuxando uma unidade espácio-tópica
coesa: quer dizer, é como se estivéssemos a compreender algo que se passa num mesmo lugar (mesmo que
o não seja, torna-se isso por efeito de um cerzir das várias histórias)
O livro
encontra-se sub-dividido em várias linhas, como dizíamos, de forma explícita.
Em primeiro lugar, existem quatro capítulos, titulados, com página própria,
pelas estações do ano, iniciando-se no Outono. Cada um dos capítulos é iniciado
com pequenas sequências, de páginas generosamente marginadas a branco, com duas
vinhetas flutuantes, seguindo a vida de um pequeno rapazinho selvagem, que mais
tarde nos aperceberemos de ser um jovem da pré-história da zona que
atravessamos durante o resto do livro. Depois introduz-se cada capítulo, que
terá sub-campos próprios, aos quais voltaremos. Esses capítulos seguem, modo
geral, formas de abordagem do desenho e sua coloração particulares, de forma a
transmitir sensações e impressões tipificadas de cada uma das estações. O
outono revela bem o uso de papel texturado e espesso, onde são lançadas as
linhas finas negras dos objectos representados, complementados com lavagens de
aguarela, usualmente de cores variadas mas suaves, com apontamentos de outros materiais
para sublinhar texturas, brilhos ou pequenos efeitos de luz. No inverno são os
lápis, parece-nos, com apontamentos de pastel, de cores sóbrias, que vão
compondo as figuras e ambientes. Na primavera os mesmos instrumentos estão
presentes, mas numa abordagem em que as cores ganham maior vivacidade, e as
linhas maiores transparências, permitindo jogos de sobreposição e leveza
não-naturais mas aéreos (como se notará na capa). Finalmente o verão
(trocadilho propositado) apresenta as figuras talhadas a linhas angulosas, a pinceladas
vigorosas, com cores planas, poucas e contrastantes, mas em várias paletas,
também não-naturais, de forma a traduzir uma luminosidade quase esgotante e
pesada.
Escusado será
dizer que cada momento explora formas e abordagens distintas dentro destas
descrições por estratégias gerais, e há quase como que, a determinado momento,
um prazer que nasce da expectativa de virar a página, uma vez que se poderá
revelar uma nova forma, um novo esquema, que procura dar conta de modos
diferentes de aproveitar a luz, a proximidade entre as personagens, o ambiente
e a luz, etc. Há também “ciclos internos” que nascem das necessidades
narrativas, como os momentos em que uma fotógrafa, Camille, que jamais assume
um protagonismo assumido nos “seus” momentos, capta a imagem de uma pessoa na
rua com a sua Rolleiflex: na página desse mesmo acto, surge a fotografia
captada, a preto-e-branco e, nas páginas imediatamente a seguir, segue-se uma
espécie de distorção dessa imagem, quase sempre de um rosto, ao ponto da
abstracção ou simbolização. É como se penetrássemos no olhar da pessoa
fotografada para lhe chegar ao íntimo – talvez verdadeiro, talvez imaginado,
mas por quem? Pois também se seguem páginas preenchidas somente de texto o qual
parece revelar a vida dessas pessoas fotografadas (há pistas textuais
suficientemente claras para compreender isso). Não é claro, porém, quem narra
esse texto: o narrador geral de Les équinoxes (que nunca surge sob a
forma de legendas, mas está na pele do meganarrador da banda desenhada), a fotógrafa
imaginando as vidas de quem captura, um terceiro, o próprio fotografado?
Estas descrições
formais parece excessivas, talvez, mas em grande parte são elas quem contribui
de forma decisiva para o acto narrativo destas personagens. Quer dizer, não tem
de forma alguma apenas uma função decorativa (um risco que ocorre em alguns
autores contemporâneos, como Brecht Evens), mas tornam visíveis, traduzindo,
alguns dos tumultos e relações emotivas das personagens. Estas são todo um
pequeno exército, e descrevê-los seria repetir o acto de leitura. Há mais ou
menos núcleos organizados por “família”, que como que nascem em personagens
secundárias que gravitam em torno das principais mas que por isso mesmo se
tornam o sujeito das “lições”, digamos assim, mesmo que estas não lhes sejam
dirigidas directamente. Como a de Pauline, a adolescente prestes a entrar na
vida série da idade adulta, filha de Vincent, ortodontista, irmão de Damien,
padre de visita à “terra” recuperando memória da adolescência com Vincent para
ambos se aperceberm do tempo que passou e das opções tomadas nas suas vidas
respectivas. Há também o caminho de Antoine, um jovem idealista que faz
companhia ao velho Louis, antigo activista comunista, e que parece ter sido
professor ou companheiro de luta e amigo de Catherine, agora secretária
responsável por assuntos ecológicos e territoriais, tendo como dossier uma obra
que poderá colocar em risco toda uma paisagem, que todas estas personagens atravessam.
Até mesmo o tal jovem pré-histórico, aliás, criando as condições da decisão final
nesse assunto, atravessando milénios o seu gesto incauto.
É possível que
Pedrosa queira com este livro tecer uma daquelas lições redutíveis a um
brevíssimo princípio explícito, como “todos influenciamos todos”, ou “cada
gesto tem o seu peso”, ou “vivemos em redes humanas”, ou resultados quejandos,
muitas vezes roçando o moralismo. Mas o autor jamais o faz de forma bafienta
como esta que fazemos nós, e é elegante a maneira como ergue esta narrativa com
cada linha. Todas elas, ou melhor, cada uma delas, tomada por si em termos
individuais, é tão frágil como toda a vida humana, mas é no seu conjunto que
demonstrarão a sua força. Nisso, então, há uma dessas conquistas.
Nota final:
agradecimentos a Sébastien Praderes, pelo acesso ao exemplar do Lycée Français
Charles Lepierre.
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