8 de dezembro de 2016

Judea. Diniz Conefrey (Pianola)

Ao falarmos de Pereira prétend, falávamos de uma categoria de adaptações à banda desenhada de obras literárias que não se coadunava com as estratégias mais costumeiras da “facilitação” e “acessibilidade” dos originais. Não quer dizer que não existam transposições que, mantendo uma grande capacidade de “fieldade” para com os acontecimentos e a caracterização das personagens, não consigam ao mesmo tempo estruturar-se como obras acabadas por mérito próprio do seu campo de acção e expressão (alguns casos de Tardi, de Battaglia, o Milton de Auladell, o recente O astrágalo). Mas depois há aquelas que partem de uma base literária para se lançarem a pesquisas mais intensas do seu próprio meio e que entram num diálogo mais exigente com a teleologia e literariedade dos originais, sem que essa seja reduzida meramente à intriga. Surgem assim obras maiores como A cidade de vidro, Le château, O diário de K., alguns trabalhos de Breccia, o Disposession de Grennan. Nessas obras, como em poucas obras, há uma verdadeira preocupação em compreender a intensidade da matéria expressiva para criar transposições precisas – ali, as palavras, o fraseado, a sintaxe, a metáfora ou a sua ausência, aqui a composição, o burilar da superfície da imagem, o agenciamento das vinhetas em cadeias legíveis, a presença ou ausência de matéria verbal, a escolha de representações. (Mais) 

Diniz Conefrey tem cumprido esse trabalho de uma maneira que apenas o tempo e uma leitura aturada e dedicada permitirá deslindar em toda a sua extensão e profundidade. Não se tratam de livros para leitura rápida, consumista, “qual é a história?”, mas antes algo que convida a uma lentidão contemplativa, recorrente, ponderada e expansiva na capacidade de associações. O autor português já havia criado um diálogo maior com a obra de Herberto Helder, e em Judea procura uma espécie de abordagem concentrada numa novela de Joseph Conrad, Mocidade (presumindo, portanto, que Conefrey terá empregue a tradução de Aníbal Fernandes para a Assírio & Alvim, na já saudosa colecção Gato Maltês).

Como no seu romance mais famoso, a importância da escrita de Conrad está menos patente na trama em si, na sucessão de eventos (“isto e depois aquilo”), do que nas impressões mentais e anímicas desses mesmos eventos, por vezes difusos na forma de ambientes e colorações, nos seus protagonistas, que no caso é o Marlow, avatar auto-ficcional de Conrad, e personagem recorrente. Tal como é indicado pelo título, este relato pretende dar conta da primeira viagem de Marlow pelos mares globais, na sua primeira travessia a um espaço semi-mítico que dá pelo nome de “Oriente”, a bordo do Judea, o qual atravessará um desconchavo trágico para o navio e a sua carga. Poderíamos dizer que a história “é sobre” o incêndio que vai destruir o barco e o carvão que levava de Londres para Banguecoque, as relações no navio entre a tripulação e as oportunidades que vamos tendo em ir conhecendo uma personagem ou outra, que abre para novas histórias, e a chegada algures às costas da Indonésia, representando esse tal “Oriente”. Mas se haveria alguma concentração narrativa em termos de intriga, Conefrey transforma essa oportunidade numa verdadeira exploração matérica da banda desenhada, para tornar como protagonistas não os homens mas as forças elementais que os rodeiam.

Se vivemos num momento de grande produção de banda desenhada nacional, também poderemos afirmar que a esmagadora maioria dessa produção, ainda assim, se comporta no interior de categorias expectáveis em termos de organização e finalidade narrativas, psicologização das personagens, conformidade com géneros e integração em formatos pré-existentes. A inventabilidade estrutural, ou sequer a liberdade de expressão artística, nem sempre se torna factor preferencial, preteridos em nome de uma suposta “legibilidade”.
Alguns autores, porém, continuam a trilhar mundos seus, próprios, libertos dessa canga, e atingem outro tipo de naturezas. Se considerássemos somente as cenas de abertura e fecho deste volume, estaríamos perante um exercício perene de força gráfica. Qualquer descrição será sempre redutora e incorre no perigo de dar a entender uma valorização errónea, sobretudo àqueles que perseguem a necessidade de “dizer qualquer coisa”, como se houvesse receio em se ser confrontado com momentos de intensa contemplação (talvez porque nos permitam subitamente encontrar-nos com aquele interlocutor com quem se evita cruzar, nós mesmos?). O livro abre com 10 pranchas que nos permitem observar os lentos matizes do nascer do sol ao largo da costa inglesa, paisagens desenhadas a linhas em trama, austeras, em vinhetas sempre horizontais que nos dão a ver volutas e arabescos que traduzem um clima movediço, frio. Apenas a 10º apresenta um breve intróito textual, antes de mergulhar num “texto de banda desenhada” que dará início à “história” (quer dizer, àquela parte subsumível e redutível a uma intriga). Depois, no fim, há uma cena de 7 pranchas, algumas das quais em estruturas de 3 vinhetas, 2 x 1, com um par delas verticais, mostrando as paisagens das montanhas pedregosas desse “Oriente”, embrulhadas em neblinas e deixando entrever alguma da vegetação densa e severa dessas paragens. Tecnicamente, parece haver aqui várias intervenções a pincel, com várias abordagens da tinta sobre o papel, esculpindo de forma visível as várias camadas de distância, tal qual como se seguisse forma de perspectiva atmosférica ou os princípios organizativos da pintura chinesa, em que o mais distante se encontra ao alto.

Se a banda desenhada classicamente narrativa reforça esse fito através da criação de nódulos de acção, começando in media res, criando pontos de suspense, debuxando arcos de desenvolvimento e resolução, Conefrey procura outra linguagens, em que a intensidade está sempre presente mas não na organização dos “episódios”. A mera escolha de ter nos limites do relato propriamente dito estes momentos de largos e fundos respirares da paisagem prometem desde logo uma outra forma de leitura.

Porém, não será apenas isso o que torna Judea numa experiência diferente. Como se disse, há um ou vários “acontecimentos” centrais na intriga: uma tempestade, o incêndio, o encontro com um navio a vapor, o abandono do Judea, a chegada à ilha. Mas Conefrey não os “representa” com cadeias figurativas realistas. São variadíssimos os momentos em que as vinhetas, independentemente de estarem ocupadas também por legendas do narrador ou até balões de fala das personagens, mostram estruturas abstractas, feitas de padrões volitantes, manchas e linhas sinuosas, ballets de tinta-da-China. Naturalmente, existem também as vinhetas-naturalistas, em que vemos o barco, as paisagens dos portos, das costas e do mar revoltado ou calmo, assim como as personagens que povoam esta novela. Estas imagens surgem ora no desenho exímio deste artista feito a aparo fino, ora em pinceladas mais expressivas, por vezes a tinta branca sobre fundo negro, criando impressões de silhuetas iluminadas na noite. E se há retratos angulosos, livres, distorcidos, destes corpos dinâmicos, há igualmente construções mais icónicas, de movimento suspenso, seguramente baseadas em referências fotográficas históricas. Tudo isto torna a matéria do livro não propriamente em elementos de consumo da leitura, que nos lançam na roda sistemática do desvendamento narrativo, mas em paragens elas mesmas de apreciação de cada um dos desenhos. Não há aqui qualquer compromisso ou subsunção do desenho em nome de um objectivo ulterior que as secundarize. Bem pelo contrário, elas erguem-se em si mesmas como unidades completas de significado que obrigam a uma apreciação mais tranquila, o que não deixa de contribuir para um outro nível de desassossego a nível do programa narrativo, porém.

Se aliarmos a leitura de Judea ao projecto anterior, Meteorologias, encontraremos afinidades estruturais, figurativas e estilísticas entre ambos os livros. Em Judea há graus de abstracção, e quase seria possível (mesmo que fosse uma violência disparatada) criar um espectro do naturalismo ao totalmente abstracto entre as suas vinhetas redistribuídas. Mas nessa comparação poderíamos interpretar a maneira como Diniz Conefrey pretende dar uma presença mais activa, corpórea, destacada, aos elementos na sua adaptação. Ganham protagonismo não apenas os ventos, o mar, o fogo que lavra no porão e o fumo que ele exala, mas também ao velame e ao cordame, à madeira (“a selva de paus de lenha”), e os brilhos das chamas ou do fraco sol estilhaçados nos reflexos da superfície da água. Sem propriamente procurar escalas do sublime, apequenando o homem face à natureza, o autor português parece querer desvendar, talvez não uma igualdade, entre homem e elementos, mas um parentesco qualquer que humilhe os primeiros mas permita uma réstia de esperança de entendimento entre ambos.

Todos estes elementos, fossem eles ainda necessários, colocam Conefrey, como já estava, numa categoria de mestres pictóricos tais quais Breccia, Muñoz, Battaglia, Mattotti, mas também outros exploradores de formas texturadas como Alex Barbier, Barron Storey, Alain Corbel, e outros. Quer dizer, onde o prazer da banda desenhada tem menos a ver com a costumeira “aventura” (que não é de todo eliminada, porém, aqui, já que se trata de um “clássico” da “aventura do mares altos”!), do que a sua degustação. Ou, pelo contrário, bem vistas as coisas, se calhar apenas tem a ver com a aventura, já que é no movimento da sua leitura-viagem, e não na conclusão-chegada, que reside a sua força máxima.

Mocidade tem menos a ver com uma moralidade presa a uma lição, do que a experiência cumulativa das relações, que se vão agregando e formando o homem que conta esta história (já com a distância de anos, uma vez que é Marlow quem recorda este episódio na sua idade adulta, num porto, anos mais tarde). A qualidade elegíaca em relação ao barco torna-se o pasto de um outro crescimento que se depreende. A linguagem sugestiva, e jamais explícita nos seus contornos, vai demonstrando a aliança que se vai formando entre estes homens, e na fidelidade e amizade rigorosa e rude que medra entre eles. O episódio da última refeição e soneca no barco, antes de o abandonar, é um corolário desses sentimentos, provavelmente impossíveis de compreender na sua plenitude por burgueses a seco, como nós. E é nessas forças literárias que Conrad exerce a sua superioridade intelectual, cultural e política, provocando um curto-circuito na ideologia que era defendida pela literatura de género na qual se instalava, afinal. Judea, por sua vez, não perde precisamente de vista essas mesmas forças, focando no seu equilíbrio entre os retratos das gentes e do barco e entre as esquivas formas abstractas a fuga necessária à normalização da aventura, tornando-a afinal em algo que penetra mais fundo no âmago da aprendizagem humana. Um encontro com o outro, mas também um desafio para com o si mesmo, fronteira mais difícil de transpor mas ao mesmo tempo uma vitória maior.

Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta do livro.

Sem comentários: