Ao
falarmos de Pereira prétend,
falávamos de uma categoria de adaptações à banda desenhada de
obras literárias que não se coadunava com as estratégias mais
costumeiras da “facilitação” e “acessibilidade” dos
originais. Não quer dizer que não existam transposições que,
mantendo uma grande capacidade de “fieldade” para com os
acontecimentos e a caracterização das personagens, não consigam ao
mesmo tempo estruturar-se como obras acabadas por mérito próprio do
seu campo de acção e expressão (alguns casos de Tardi, de
Battaglia, o Milton de Auladell, o recente O astrágalo).
Mas depois há aquelas que partem de uma base literária para se
lançarem a pesquisas mais intensas do seu próprio meio e que entram
num diálogo mais exigente com a teleologia e literariedade dos
originais, sem que essa seja reduzida meramente à intriga. Surgem
assim obras maiores como A cidade de vidro,
Le château,
O
diário de K.,
alguns trabalhos de Breccia, o Disposession de Grennan. Nessas obras, como em poucas obras, há uma verdadeira
preocupação em compreender a intensidade da matéria expressiva
para criar transposições precisas – ali, as palavras, o fraseado,
a sintaxe, a metáfora ou a sua ausência, aqui a composição, o
burilar da superfície da imagem, o agenciamento das vinhetas em
cadeias legíveis, a presença ou ausência de matéria verbal, a
escolha de representações. (Mais)
Diniz
Conefrey tem cumprido esse trabalho de uma maneira que apenas o tempo
e uma leitura aturada e dedicada permitirá deslindar em toda a sua
extensão e profundidade. Não se tratam de livros para leitura
rápida, consumista, “qual é a história?”, mas antes algo que
convida a uma lentidão contemplativa, recorrente, ponderada e
expansiva na capacidade de associações. O autor português já
havia criado um diálogo maior com a obra de Herberto Helder, e em
Judea
procura uma espécie de abordagem concentrada numa novela de Joseph
Conrad, Mocidade
(presumindo, portanto, que Conefrey terá empregue a tradução de
Aníbal Fernandes para a Assírio & Alvim, na já saudosa
colecção Gato Maltês).
Como
no seu romance mais famoso, a importância da escrita de Conrad está
menos patente na trama em si, na sucessão de eventos (“isto e
depois aquilo”), do que nas impressões mentais e anímicas desses
mesmos eventos, por vezes difusos na forma de ambientes e colorações,
nos seus protagonistas, que no caso é o Marlow, avatar
auto-ficcional de Conrad, e personagem recorrente. Tal como é
indicado pelo título, este relato pretende dar conta da primeira
viagem de Marlow pelos mares globais, na sua primeira travessia a um
espaço semi-mítico que dá pelo nome de “Oriente”, a bordo do
Judea,
o qual atravessará um desconchavo trágico para o navio e a sua
carga. Poderíamos dizer que a história “é sobre” o incêndio
que vai destruir o barco e o carvão que levava de Londres para
Banguecoque, as relações no navio entre a tripulação e as
oportunidades que vamos tendo em ir conhecendo uma personagem ou
outra, que abre para novas histórias, e a chegada algures às costas
da Indonésia, representando esse tal “Oriente”. Mas se haveria
alguma concentração narrativa em termos de intriga, Conefrey
transforma essa oportunidade numa verdadeira exploração matérica
da banda desenhada, para tornar como protagonistas não os homens mas
as forças elementais que os rodeiam.
Se
vivemos num momento de grande produção de banda desenhada nacional,
também poderemos afirmar que a esmagadora maioria dessa produção,
ainda assim, se comporta no interior de categorias expectáveis em
termos de organização e finalidade narrativas, psicologização das
personagens, conformidade com géneros e integração em formatos
pré-existentes. A inventabilidade estrutural, ou sequer a liberdade
de expressão artística, nem sempre se torna factor preferencial,
preteridos em nome de uma suposta “legibilidade”.
Alguns
autores, porém, continuam a trilhar mundos seus, próprios, libertos
dessa canga, e atingem outro tipo de naturezas. Se considerássemos
somente as cenas de abertura e fecho deste volume, estaríamos
perante um exercício perene de força gráfica. Qualquer descrição
será sempre redutora e incorre no perigo de dar a entender uma
valorização errónea, sobretudo àqueles que perseguem a
necessidade de “dizer qualquer coisa”, como se houvesse receio em
se ser confrontado com momentos de intensa contemplação (talvez
porque nos permitam subitamente encontrar-nos com aquele interlocutor
com quem se evita cruzar, nós mesmos?). O livro abre com 10 pranchas
que nos permitem observar os lentos matizes do nascer do sol ao largo
da costa inglesa, paisagens desenhadas a linhas em trama, austeras,
em vinhetas sempre horizontais que nos dão a ver volutas e arabescos
que traduzem um clima movediço, frio. Apenas a 10º apresenta um
breve intróito textual, antes de mergulhar num “texto de banda
desenhada” que dará início à “história” (quer dizer, àquela
parte subsumível e redutível a uma intriga). Depois, no fim, há
uma cena de 7 pranchas, algumas das quais em estruturas de 3
vinhetas, 2 x 1, com um par delas verticais, mostrando as paisagens
das montanhas pedregosas desse “Oriente”, embrulhadas em neblinas
e deixando entrever alguma da vegetação densa e severa dessas
paragens. Tecnicamente, parece haver aqui várias intervenções a
pincel, com várias abordagens da tinta sobre o papel, esculpindo de
forma visível as várias camadas de distância, tal qual como se
seguisse forma de perspectiva atmosférica ou os princípios
organizativos da pintura chinesa, em que o mais distante se encontra
ao alto.
Se
a banda desenhada classicamente narrativa reforça esse fito através
da criação de nódulos de acção, começando in
media res,
criando pontos de suspense, debuxando arcos de desenvolvimento e
resolução, Conefrey procura outra linguagens, em que a intensidade
está sempre presente mas não na organização dos “episódios”.
A mera escolha de ter nos limites do relato propriamente dito estes
momentos de largos e fundos respirares da paisagem prometem desde
logo uma outra forma de leitura.
Porém,
não será apenas isso o que torna Judea
numa experiência diferente. Como se disse, há um ou vários
“acontecimentos” centrais na intriga: uma tempestade, o incêndio,
o encontro com um navio a vapor, o abandono do Judea,
a chegada à ilha. Mas Conefrey não os “representa” com cadeias
figurativas realistas. São variadíssimos os momentos em que as
vinhetas, independentemente de estarem ocupadas também por legendas
do narrador ou até balões de fala das personagens, mostram
estruturas abstractas, feitas de padrões volitantes, manchas e
linhas sinuosas, ballets
de tinta-da-China. Naturalmente, existem também as
vinhetas-naturalistas, em que vemos o barco, as paisagens dos portos,
das costas e do mar revoltado ou calmo, assim como as personagens que
povoam esta novela. Estas imagens surgem ora no desenho exímio deste
artista feito a aparo fino, ora em pinceladas mais expressivas, por
vezes a tinta branca sobre fundo negro, criando impressões de
silhuetas iluminadas na noite. E se há retratos angulosos, livres,
distorcidos, destes corpos dinâmicos, há igualmente construções
mais icónicas, de movimento suspenso, seguramente baseadas em
referências fotográficas históricas. Tudo isto torna a matéria do
livro não propriamente em elementos de consumo da leitura, que nos
lançam na roda sistemática do desvendamento narrativo, mas em
paragens elas mesmas de apreciação de cada um dos desenhos. Não há
aqui qualquer compromisso ou subsunção do desenho em nome de um
objectivo ulterior que as secundarize. Bem pelo contrário, elas
erguem-se em si mesmas como unidades completas de significado que
obrigam a uma apreciação mais tranquila, o que não deixa de
contribuir para um outro nível de desassossego a nível do programa
narrativo, porém.
Se
aliarmos a leitura de Judea
ao projecto anterior, Meteorologias,
encontraremos afinidades estruturais, figurativas e estilísticas
entre ambos os livros. Em Judea
há graus de abstracção, e quase seria possível (mesmo que fosse
uma violência disparatada) criar um espectro do naturalismo ao
totalmente abstracto entre as suas vinhetas redistribuídas. Mas
nessa comparação poderíamos interpretar a maneira como Diniz
Conefrey pretende dar uma presença mais activa, corpórea,
destacada, aos elementos na sua adaptação. Ganham protagonismo não
apenas os ventos, o mar, o fogo que lavra no porão e o fumo que ele
exala, mas também ao velame e ao cordame, à madeira (“a selva de
paus de lenha”), e os brilhos das chamas ou do fraco sol
estilhaçados nos reflexos da superfície da água. Sem propriamente
procurar escalas do sublime, apequenando o homem face à natureza, o
autor português parece querer desvendar, talvez não uma igualdade,
entre homem e elementos, mas um parentesco qualquer que humilhe os
primeiros mas permita uma réstia de esperança de entendimento entre
ambos.
Todos
estes elementos, fossem eles ainda necessários, colocam Conefrey,
como já estava, numa categoria de mestres pictóricos tais quais
Breccia, Muñoz, Battaglia, Mattotti, mas também outros exploradores
de formas texturadas como Alex Barbier, Barron Storey, Alain Corbel,
e outros. Quer dizer, onde o prazer da banda desenhada tem menos a
ver com a costumeira “aventura” (que não é de todo eliminada,
porém, aqui, já que se trata de um “clássico” da “aventura
do mares altos”!), do que a sua degustação. Ou, pelo contrário,
bem vistas as coisas, se calhar apenas
tem
a ver
com a aventura, já que é no movimento da sua leitura-viagem, e não
na conclusão-chegada, que reside a sua força máxima.
Mocidade
tem menos a ver com uma moralidade presa a uma lição, do que a
experiência cumulativa das relações, que se vão agregando e
formando o homem que conta esta história (já com a distância de
anos, uma vez que é Marlow quem recorda este episódio na sua idade
adulta, num porto, anos mais tarde). A qualidade elegíaca em relação
ao barco torna-se o pasto de um outro crescimento que se depreende. A
linguagem sugestiva, e jamais explícita nos seus contornos, vai
demonstrando a aliança que se vai formando entre estes homens, e na
fidelidade e amizade rigorosa e rude que medra entre eles. O episódio
da última refeição e soneca no barco, antes de o abandonar, é um
corolário desses sentimentos, provavelmente impossíveis de
compreender na sua plenitude por burgueses a seco, como nós. E é
nessas forças literárias que Conrad exerce a sua superioridade
intelectual, cultural e política, provocando um curto-circuito na
ideologia que era defendida pela literatura de género na qual se
instalava, afinal. Judea,
por sua vez, não perde precisamente de vista essas mesmas forças,
focando no seu equilíbrio entre os retratos das gentes e do barco e
entre as esquivas formas abstractas a fuga necessária à
normalização da aventura, tornando-a afinal em algo que penetra
mais fundo no âmago da aprendizagem humana. Um encontro com o outro,
mas também um desafio para com o si mesmo, fronteira mais difícil
de transpor mas ao mesmo tempo uma vitória maior.
Nota
final: agradecimentos ao autor, pela oferta do livro.
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