Se
os homens não são ilhas, alguns deles bem o tentam ser. Pereira,
sem outro nome ou apodo que o torno à partida uma personagem cheia
de vida, parece querer viver a sua vida no interior de uma redoma
suficientemente confortável, longe dos tumultos que os outros
agregam. Já lhe basta as agruras da viuvez e da solidão, mas que ao
mesmo tempo o sustentam nesse seu isolamento. O pior é quando a
força das circunstâncias, marés incontroláveis, impulsionam essas
ilhas, afinal, para um arquipélago, senão novos continentes. Ora
Afirma Pereira, o famoso romance do escritor Antonio Tabucchi,
é a história de um homem cuja suposta mundividência, teimosa,
atreita, esguia, é forçada a abrir-se para o verdadeiro mundo, por
mais doloroso que isso possa ser. (Mais)
O
título do livro é de uma importância extrema por razões
narrativas, de forma dupla e, consequentemente, por razões
teleológicas e éticas. O título italiano, Sostiene Pereira,
remete a uma espécie de locução que será empregue como mantra ou
metrómono de toda a intriga. Tudo o que lemos é lido como se
estivesse removido em segundo grau, como se tivesse sido algo dito
por Pereira a uma terceira instância que, agora, nos relata a nós a
história. O verbo, para além de criar uma distância e, logo, uma
dúvida, que poderá mesmo nascer nas próprias afirmações do
Pereira, cria uma confusa figura do narrador, que surge então como
mero veículo intermediário entre a experiência vivida pelo
protagonista e o relato que o leitor recebe. Além do mais, cria uma
impressão de relatório oficial, de algo que terá sido ditado de
forma a tornar-se parte de um processo, acto burocrático, regrado,
que faz patinar uma certa qualidade novecentista expectável do
romance. Isso leva então à questão teleológica, a de que ler
Afirma Pereira seria como ler-se um relatório, fruto
de um inquérito policial, que traz por sua vez uma gravidade,
intensidade emocional e até, porque não?, suspense à intriga,
mesmo nos seus momentos iniciais e alongados em que parece não se
passar grande coisa. Finalmente, desemboca tudo isso numa questão
ética e que tem a ver com a figura do próprio Pereira, e a sua
ulterior transformação.
Como
é consabido, a relação de Tabucchi e Pessoa é profunda, tendo
sido o poeta português o coup de foudre que
tornaria o escritor italiano português de afecto. Ora, a personagem
de Pereira não deixa de parecer um construto sob a égide dos
heterónimos de Pessoa. Afinal de contas, Pereira é, como Ricardo
Reis e Alberto Caeiro, cada qual a seu modo bem distinto, um
observador, não agente, da vida que passa. As coisas sucedem e
sucedem-lhe, e mesmo que haja uma breve vontade de intervir por entre
a inteligência de como julga os factos e os outros, esses sim,
agentes, é a inércia (observadora) o verdadeiro princípio,
sobretudo na esfera do anímico e político. Como o autor do Livro
do Desassossego, acrescente-se, Pereira orbita por entre espaços
fechados e minúsculos, pequenos cosmos sem grande tumulto – o
apartamento onde vive, o apartamento que faz as vezes de redacção
do suplemento cultural do jornal em que trabalha, o café Orquídea
em que vai almoçando as suas omeletas de ovos. E, no fim, acto
único, revolucionário e irrepetível, talvez esteja ali um grito de
Álvaro de Campos.
Mas
também há outra dimensão e que importa sublinhar quando se fala em
adaptações da literatura pela banda desenhada. Nos casos mais
usuais, a adaptação cinge-se a tão-somente fazer uma transposição
da cadeia de acontecimentos, mais uns quantos laivos de
caracterização das personagens e dos cenários, de um meio (no
caso, a literatura) para outro (a banda desenhada), sem haver um
escavar mais profundo do valor estético da obra original, uma
preocupação em traduzir as inquietações primárias da obra, sem
uma devolução das mesmas intensidades. É o que tem alimentado
grande parte das adaptações “escolares” que fizeram escola em
Portugal – independentemente de terem levado a obras magistrais do
ponto estrito do desenho (desenho, não composição), como é o caso
de Eduardo Teixeira Coelho – e que se mantém como a bitola dessas
normalizações, muitas vezes medíocres, com algumas excepções que
o são precisamente por auscultarem outras preocupações (Filipe
Abranches, Miguel Rocha e Diniz Conefrey, sobretudo nos projectos em torno de Herberto Helder e, mais recentemente, Conrad). Ora a frase ou fórmula “afirma Pereira”
surge ao longo dos capítulos do romance de Tabucchi como uma espécie
de marca rítmica, algo que ancora o relato, que mantém a distância
do relato em segunda mão.
Organizado
em breves capítulos o conciso romance, a adaptação cria algumas
transformações necessárias, como por exemplo uma tessitura mais
contínua, que simplifica as deambulações e paragens de Pereira num
percurso mais concentrado. Essas alterações são necessárias,
claro está, uma vez que estamos perante dois meios diferentes e, em
termos gerais, quase todas elas são aceitáveis (também o filme de
1995 as faz). Mas o Pereira de Gomont, porém, que nada tem a ver com
o modelo que Mastroianni criara para a versão cinematográfica,
também está algo distante do de Tabucchi: menos assertivo e seguro,
quase menos arguto, um contraponto ligeiramente mais patético em
comparação com as figuras heróico-trágicas dos jovens com que se
relaciona. No romance, há um tratamento mais equilibrado, em que
tanto os defeitos e qualidades de cada qual surgem à tona, sem
criar-se hierarquias fáceis entre as morais das personagens. O
aspecto menos feliz, a nosso ver (para além da mudança de um
franciscano em um dominicano, o que não tem nada a ver), é a
assunção de uma voz “real” e “tangível” - na superfície
da banda desenhada – do retrato da mulher morta de Pereira, com a
qual ele fala à noite, em casa. Se no romance essas conversas apenas
têm uma direcção, criando uma empatia pela solidão mas ao mesmo
tempo uma saudável saudade de Pereira pela mulher, e que poderá ser
lida como um exercício da sua introspecção e consciência
contínua, na banda desenhada ganha laivos quase de uma fantasia, por
vezes mesmo delicodoce, que impede encontrar em Pereira um
crescimento ético mais vincado, lição máxima do romance.
Gomont,
porém, mantém grande parte do charme dessa mescla entre a inércia
de Pereira – desenhando-o como uma espécie de Mr. Hulot rotundo,
de grande presença – e as suas divagações mentais e físicas
pela cidade de Lisboa e arredores. Empregando vários tipos de
registos do desenho ou da estrutura de composição, temos momentos
mais esquemáticos e simbólicos que quase dispensam as palavras em
nome de outro tipo de intensidades interiores, e outras estratégias
que trazem para primeiro plano muitos dos sagazes diálogos de
Tabucchi. O uso de silhuetas em muitas das cenas tanto serve para
sublinhar a intimidade das conversas de Pereira com outros, ou os
mistérios policiais que se vão adensando. A focalização está
sempre em torno do próprio Pereira, mas sentimos que há momentos em
que teremos direito, digamos assim, em perceber melhor a personagem
nas suas decisões e acções do que ele próprio.
Visualmente,
na verdade, o autor traduz de forma quase precisa e perfeita as
palavras que Tabucchi escreveu, sobre este Verão em que a vida
pacata de Pereira se vai transformar de forma radical. O “magnífico
dia de Verão, cheio de sol e vento, e Lisboa resplandecia.” está
patente nas bastas vinhetas largas e generosas que dão a ver os
cenários sob o céu claro de Lisboa, a forma como o azul irrompe por
entre os prédios, entrecortado pelas cantenárias, os vermelhos dos
interiores iluminados e quentes. De facto, as opções cromáticas
são reduzidas a uma paleta expressiva, de cores vincadas, quase como
se manchas planas representativas de várias forças – o céu azul,
a noite escura, os prédios laranjas e ocres, os corpos baços –
procurassem impor-se à vez.
Adaptação
singela, que nos devolve uma Lisboa exacta mas sob uma luz algo
surpreendente, de um tempo que, passado, não pode ser esquecido, e
de uma ficção que, a seu modo, nos mostra muita verdade, Pereira
prétend
é um livro que não dispensa a leitura do original, mas o faz
reluzir sob as suas próprias cores.
Nota
final: agradecimentos a M. T., pelo empréstimo do livro.
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