Si Lewen, que viria a falecer algum tempo depois da produção
deste livro, foi um pintor norte-americano que é muitas vezes agregado a essa
imensa família do “expressionismo abstracto” desse país, se bem que não conste
da primeira linha de artistas que usualmente se citam. Não tendo o mesmo papel
no palco internacional que outros nomes mais sonantes, a sua presença não é de
forma alguma displicente nesse contexto, e algumas das suas obras ocupam um
espaço interpelante, vincado, significativo, e até original, mesmo que esta palavra tenha hoje um valor diluído. Oscilando
entre a figuração e a abstracção, herdando dos cubistas muitas vezes a presença
dupla dessas forças num só plano de composição, os jogos de referencialidade
com o mundo, e jamais abdicando do “sentido”, transmitido quer pela figura,
quer pelo título (se bem que muitas telas sejam baptizadas com “Sem título”)
quer pela coordenação de séries, Lewen é um autor que, descoberto de atacado,
faz-nos ponderar até que ponto a História da Arte, tal como é estruturada e
transmitida pelos seus canais mais usuais, não é ainda um projecto de uma
incompletude estrondosa, quiçá mesmo impossível. Acresce a isto a produção de
objectos ou obras que possam ser re-agregadas pela História da Banda Desenhada,
e ainda se torna mais complicada a sua integração… (Mais)
A razão deste livro é a reedição de The Parade, um livro de
imagens, organizadas de acordo com uma sequência, que é passível de ser lido
como uma proto-graphic novel (precisamente
a forma como está a ser comercializada esta edição, lançada pela colecção Comicarts
da Abrams). “Descoberta” por Spiegelman, ou por ele re-apresentada ao grande
público num contexto mais receptivo a este tipo de textos, este volume é
apresentado sob a forma de acordeão, estando no verso desse livro uma outra
parte, intitulada “An Artist’s Odyssey”, que dá conta da vida e obra deste
artista de origem polaca e judaica. Jesaja (isto é, “Simão”) Lewin nasceu em
1918 em Lublin, e faria parte desse imenso contingente humano que se viu
obrigado a abandonar a sua terra natal pela sombra do nacional-socialismo, e
nessa inscrição toca as raias de uma experiência colectiva que se vê reflectida
em vários traços em muitos outros autores. Não poderá haver surpresas,
portanto, a que haja coincidências de tratamentos temáticos, posições
políticas, preocupações identitárias e até estratégias matéricas e estruturais
irmanáveis com outros artistas da diáspora, e não será obra do mero acaso,
naturalmente, que seja Art Spiegelman a estabelecer o ponto de contacto entre
Lewen e o dito mundo da banda desenhada (num sentido de “art world”, de H. S. Becker).
Prancha a prancha, o livro inicia-se com uma cena diurna,
solar, de crianças a ocuparem uma avenida, e onde toda a população se junta
para celebrar a passagem dos militares. Todos abanam bandeiras e pavilhões e
exultam à vista das baionetas e capacetes das cabeças erguidas e as botas bem
engraxadas. Num livro sem texto, apenas uma imagem revela as palavras de ordem
dos estandartes, algumas das quais semi-visíveis: “honra”, “verdade”, “justiça”,
“liberdade”, “paz”. Não é necessário qualquer contexto específico, qualquer
quadro económico ou social, são esses os princípios que importa defender, mesmo
pela morte. Viva a morte!, como diziam os falangistas. Alguns dos jovens
alistam-se no exército, por uma figura que tem tanto de maternal como de Morte.
Aptos, lançam-se ao combate frenético nas linhas da frente, e onde de um lado
as mães deles despediam-se, no outro são outras mães por eles feridas. Seguem-se
cena e cenas de toda a mortandade e excesso e destruição, algumas das quais
talvez ecoando outras composições consabidas (é impossível não compreender o
fantasma de Guernica), mas onde a
noção física, estrutural, de “parada” continua sempre a imperar: nas fiadas de
pés de mortos, no fio onde estão penduradas cabeças decepadas, nas fileiras de
mãos esquálidas erguidas mas ainda com força para abanar bandeirinhas. E,
claro, as paradas propriamente ditas, o concurso de corpos dos fugitivos, dos
capturados, dos concentrados, dos moribundos, dos desesperados, dos estropiados,
dos ratos, dos seres já despojados da sua humanidade.
Lewen haverá testemunhado muitas destas “paradas” militaristas
na Europa, e depois nos Estados Unidos, paradas de celebração antes dos conflitos, em que se assume a
soberba de uma superioridade (tecnológica, bélica, política, moral, humana) perante
o inimigo, e depois, vitoriosa e não
menos soberba. Mas o final de um conflito apenas prepara para o início do
próximo, como se a parada fosse uma ouroboros. O que justifica, desde logo, a
edição em leporello. The Parade faz parte de toda uma série de
textos que criam tessituras alegóricas em torno da suposta “universalidade” do
conflito violento dos seres humanos. Na animação, por exemplo, poderíamos
pensar em The Bead Game de Ishu Patel
(19777) ou no Cavallette de Bruno
Bozzetto (1990). Comparar com a animação não será assim tão estranho, não
apenas pela forma como apresentámos a sinopse, que convida a uma ideia de fluir
constante (e que um grupo de estudantes tentou formar, a nosso ver com alguma ineptidão),
mas igualmente dado os efeitos cinéticos que Lewen procura instilar nas suas
formas, com linhas mostrando efeitos de movimento, de repetição e padronização,
ou até a gestão da composição, de uma narratividade inegável, ou ainda o jogo
intenso de planos médios e aproximados, a parcimoniosa mas inteligente fuga das
molduras do papel, e outras técnicas. O desenho, feito a grafite, carvão e
tinta litográfica sobre papel com uma preparação de gesso, ganha uma
materialidade muito própria, feita de texturas minuciosas e poeirentas, sombras
acumuladas e zonas diáfanas, traços expressivos e sombrios aqui, e tule
esgarçada ali. Reproduzidas no mesmo formato que a edição original, mas
provavelmente numa resolução mais significativa, a leitura e manipulação do
livro pode-se tornar algo complexa, mas convida a uma leitura infinita ou a uma
exposição holística desta procissão.
A experiência de guerra de Lewen ressurgiria pela sua
participação na 2ª Guerra Mundial como parte dos “Ritchie Boys”, um imenso ramo
do exército norte-americano treinado para missões de inteligência, que incluiria
tradução, interrogação e investigação no terreno europeu, mormente alemão ou de
expressão alemã. As experiências agregadas quando dessa parte da sua vida
alimentariam algumas das suas futuras perspectivas sobre os conflitos bélicos,
não apenas em termos de imagem mas de mundividência e atitude. Toda e qualquer
imagem deve ser lida, então, não apenas na sua parcelar contribuição narrativa,
mas no seu papel simbólico. Esta edição conta ainda com algumas imagens que
acabaram por não fazer parte do ciclo, como uma imagem de crianças à frente de
uma montra vendendo espingardas de brinquedo, ou recebendo esses mesmos
brinquedos das mãos de um Pai Natal, o que ajudará a um só tempo a compreender
o programa alegórico de Lewen mas igualmente à sua capacidade de gerir a subtileza
e melodrama dessa mesma mensagem. Há, todavia, uma dimensão que não está
presente de todo em The Parade. O
humor. Se relermos Masereel, verificaremos que mesmo no interior das suas obras
onde o desespero humano é protagonista, há sempre um espaço para a esperança
positiva, o lado luminoso do pequeno gesto humano, a pequena redenção, mesmo
que tardia. The Parade parece-nos um gesto mais desesperado, onde apenas se pode
esperar um ciclo incessante de novas paradas com consequências absurdas. Aliás,
a própria escala humana é algo afastada uma vez que não se erige qualquer personagem
ao estatuto de protagonista, criando assim as possíveis redes cognitivas e
emocionais com o leitor. Toda e qualquer figura humana que surge está reduzida
à sua função momentânea e simbólica na economia dos acontecimentos
representados e nas relações entre estes, forçosamente lineares e finalistas.
Originalmente publicado em 1957,
e num circuito limitado, The Parade vem juntar-se ao número de obras de
“romances gráficos mudos” que muito se praticavam nas décadas anteriores e que
foram estudadas de forma mais sistemática por David Beröna. Faz parte mesmo do
que uma antologia desses trabalhos, por G. A. Walker, chamou de “testemunhas
gráficas”. Estranhamente, ou nem tanto, Spiegelman não menciona esse estudo e
muitos dos exemplos que agrega, preferindo manter apenas as ligações directas a
Frans Masereel (de que Lewen havia recebido uma cópia de Mein Stundenbuch, de 1919, em 1931, pelas mãos do pai quando fez 13
anos, e actuaria como modelo máximo) e a Lynd Ward (que é erguido como expoente
deste capítulo ou tipologia de livros nos Estados Unidos, e para a edição de
quem Spiegelman havia escrito um prefácio). Desta forma, a nosso ver, a
contextualização de The Parade é feita de modo mais
circunscrito, para sublinhar mais uma vez a “excepção”, o que confirma por sua
vez uma perspectiva da banda desenhada, das artes plásticas, enfim, de toda a
prestação das narrativas gráficas conforme, em vez de procurar as porosidades,
as tensões, o espectro dessa mesma produção.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.
As imagens foram colhidas da internet.
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