Este livro vem assinalar, de certa forma, um aniversário
“redondo”, uma vez que os primeiros passos do movimento Oubapo, ou Ouvroir de
la Bande Dessinée Potencielle, ou “Ateliers da Banda Desenhada Potencial”,
foram dados há um quarto de século, tendo dado a uma colecção de volumes por
esta editora, colectivos e projectos individuais, mas igualmente workshops um
pouco por todo o mundo, com ou sem os seus agentes originais, discussões
académicas, estratégias integradas na produção “normal”, etc. Influenciados
pelo mais famoso movimento literário da Oulipo, a Oubapo tenta criar formas de
trabalho que partem não tanto de uma “ideia diegética” ou “representacional”,
mas antes de uma qualquer formulação estrutural, formal, que deve ser resolvida
depois. Um jogo de regras pré-estabelecidas que depois se deve solucionar. Um
labirinto construído pelos próprios ratos que devem escapar (Queneau). Tudo
palavras dos intervenientes… Em larga medida exercício de salão, não deixa
ainda assim de provocar um pensamento reflexivo sobre esta arte em particular,
acto de extrema importância quando esta linguagem corre o risco de parecer
“demasiado familiar”. (Mais)
Com efeito, existirão muitos leitores que pensarão que a banda
desenhada somente pode existir num sentido narrativo ou representacional. “Tem
de dizer alguma coisa” ou “contar uma história”, impedindo-a de ter uma
respiração tão livre quanto outra disciplina estética qualquer. Quer dizer,
deixá-la ser verdadeiramente arte,
com o seu jogo livre entre a razão e a imaginação, como Kant indicava, e não
confinada às categoriais já expectáveis. Aliás, se o novo objecto se vem
encaixar de forma demasiado clara nas categorias que já conhecemos, em que
sentido é que as faz abrir? Como se a exploração formal, artística, estética
fosse compreendida como estéril, e não como uma reflexão particularmente acesa
de si mesma. Enfim, uma pobreza intelectual, a nosso ver, pensar assim.
De resto, e como tão bem aponta Matt Madden no seu próprio
site, toda a banda desenhada (enfim, poder-se-ia dizer que toda e qualquer
arte) emerge sempre no seio das suas próprias restrições: materiais, formais,
sociais, económicas, etc. A questão está porém em identificar formas lúdicas de
maior “aperto” para com isso conseguir atingir outros modos de libertação. Já
numa outra ocasião havíamos feito a comparação com uma camisa-de-forças. Por um
lado os movimentos ficam restringidos, mas por outro obrigarão a pessoa a
imaginar como se mover, como encontrar uma elegância de movimentos nessa
limitação. Muitas são as metáforas passíveis de comparação.
Pensemos numa, algo arriscada e falha, como todas as
comparações, mas que poderá explicar o valor diferencial desta via de criação.
O compositor Béla Bartók tem uma série de 153 peças sequenciais para piano que
fazem confluir toda uma série de desafios para intérpretes desse instrumento,
começando em estruturas muito simples e progressivamente tornando-se mais
complexas, desde manobras de principiante a peças de concerto. Basicamente são
um complexo, rico, método pedagógico do piano, de uma inteligência
estrutural insuperável. Essas composições estão juntas sob o título Mikrokosmos.
Cada um desses exercícios permite explorar toda uma série de problemas ou
questões específicos, como os das posições correctas dos dedos, as depressões
dos pedais, estilos (regionais e históricos), simetrias, entrelaçamentos,
modos, e aspectos teóricos, evitando armadilhas facilitistas, como melodias
simples ao ouvido, ou “traduções” da linguagem musical em algo mais simples. Há
mesmo quem descreva Mikrokosmos como um método que desenvolve a
capacidade auditiva através da vista e não do ouvido, melhorando assim essa
mesma capacidade. Por outras palavras, obriga a que se evite percorrer caminhos
expectáveis e já-familiarizados pelas categorias preexistentes, para convidar a
“ver com olhos de ver” ou melhor, “ver com olhos de ler” (para reempregar uma
expressão de Domingos Isabelinho, que havia, e bem, corrigido uma frase
proferida quando do Verbd).
Ora, é esse o cerne dos resultados dos esforços da Oubapo.
Além desta nova lavra, o volume apresenta ainda uma pequena
história do movimento, contada de forma oblíqua, claro, e outros documentos de
apoio e informação. A parte final, de uma grande importância mas projecto
impossível de finalizar, é uma pesquisa sistemática de formas “oubapiannas”
fora do movimento em si. “Plágios”, enfim, se bem que não somente “por
antecipação”. Vasculhando por entre a produção de banda desenhada dos últimos (dez?)
anos, o dossier preparado por Lécroart e Madden sublinha aqui experiências de
alguns suspeitos do costume, como Chris Ware, Marc-Antoine Mathieu, Ruppert
& Mulot, Jason Shiga, Richard McGuire mas igualmente autores tais como
Ludovic Rio, Shintaro Kago, Rafael Coutinho, e Stéphane Blanquet, todos eles
tendo provocado segmentos ou projectos inteiros que parecem ter nascido deste
tipo de abordagem “pela forma”, apesar de não serem membros oficiais do
movimento (sendo que um artista apenas se pode tornar membro por decisão do
demais, sem que seja necessário ser informado antecipadamente). Desta forma,
vemos igualmente uma perspectiva aberta, que abarca projectos extra-banda
desenhada, ou passíveis de serem englobados, como as “Pictologias” de Matteo
Civaschi e Gianmarco Milesi, e um número de fanzines ou livros-objecto. Um
balanço lato, inteligente e provocador, gesto esse que faz sempre o cerne da
importância deste projecto.
Contudo, seria possível, houvesse
oportunidade para ler cada exercício individual, erigir uma crítica da
subsunção quase sempre assegurada de todo e qualquer exercício a legibilidades
narrativas. Isto é, parece muitas vezes que o fantasma da narrativa tem de ser
imposto em toda e qualquer estrutura, não havendo muito espaço para explorar
outro tipo de estruturações formais. Salva-nos, todavia, Gerner, que com as
suas “recradages” – isto é, reaproveitamentos de pormenores de vinhetas de
certos clássicos da banda desenhada – cria redes de comparação imagética e
composicional com toda uma história da arte, que inclui a pintura, o cinema e a
literatura, mas acima de tudo prevendo outro tipo de “leituras” desta mesma
disciplina.
Como os próprios editores-autores pretendem, as “peças”
advindas da experiência Oubapo não é tão-somente um produto derivado da banda
desenhada, como o seriam t-shirts, tote
bags ou lancheiras ou até mesmo cartas de jogar. Noutro contexto, é
possível que a fabricação de cartas de jogar, dominós e dados com as figuras de
personagens retiradas de projectos de banda desenhada fossem apenas produtos
laterais, derivados, de exploração comercial. Mas o que os autores da Oubapo
tentam cumprir é uma experiência de expansão de estruturação material da
própria banda desenhada através desses novos formatos ou meios. Assim sendo, os
dados (Coquetèle), o dominó (Domipo) e até mesmo uma espécie de Scrabble (Scroubabble) devem ser vistos enquanto exemplos de banda desenhada
“expandida”. Como escreve Côme Martin, estes objectos acabam por participar de
ambas as naturezas – banda desenhada propriamente dita e produto derivado – se
bem que possam trazer crises ao “prazer lúdico da leitura”, assegurado em qualquer
texto, oubapiano ou não. Mantendo-se
no papel, todas as peças deste novo volume da Oupus (alguns, na verdade, escapam de vários modos) fazem abrir
possíveis caminhos desse desenvolvimento. A imitar, portanto.
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