Depois do grande gesto autobiográfico de Memória de Elefante, é possível que Caeto
se sentisse tentado a dar continuidade a essa mesma pesquisa, e expressão de
si, a um grau mais afastado do âmago da primeira aventura. Se ali havia uma
concentração maior na figura do pai, da morte deste e a relação conturbada ao
longo de anos, Dez anos para o fim do
mundo espraia-se em várias direcções, tentando que elas se tornem agregadas
num gesto comum. Neste livro, então, Caeto revisita a sua infância e
adolescência, as mudanças de casa, de escolas e de ambiente económico, as eleições
de 1990 e as implicações que isso tinha na sua paisagem social, as primeiras
experiências sexuais, com drogas e de criação de quadrinhos, e depois o seu
casamento, a lua-de-mel, o nascimento do primeiro filho, a mudança de casa e a
separação da mulher, assim como a fabricação do próprio Memória.
Exposto desta forma, parecerá talvez que haja uma
arrumação cronológica, mas isso não é verdade. Todos estes episódios visitam-se
de forma desordenada, com saltos prolépticos e analépticos, criando antes uma
trama temática ou pelo menos de questões recorrentes que e vão alimentando
entre si. Como se a preocupação em construir uma imagem de si não pudesse
organizar-se de forma linear, mas antes seguisse as respirações livres das
marés da memória. Em muitos aspectos, Dez
anos tem um tom elegíaco, mesmo
quando os episódios são de uma felicidade extrema. Uma vez que o autor
atravessou várias sessões de terapia para combater uma depressão, advinda pelo
confronto emocional e intelectual que estava a nutrir pela criação de Memória de Elefante, obrigando-o a rever
momentos dolorosos do passado e da relação com o pai, essas sessões acabam por
funcionar como uma espécie de, não tanto “moldura narrativa”, mas pelo menos de
uma estrutura que subjaz à junção destes troços. É até o seu fim, dessas
sessões, que acaba por funcionar como uma espécie de pré-fecho do volume. (Mais)
Não deixa de poder ler-se este livro como uma
espécie de ajuste de contas, mas desengane-se o leitor que pensa ser esse
ajuste contra os outros (os pais, os
amigos, a mulher, os sogros, etc., mesmo que Caeto não esconda o conflito com
todas essas pessoas e as agravações que ele julga criadas na relação com essas
pessoas). Na verdade, parece ser antes uma espécie de esforço catártico contra
si próprio: uma forma de apontar e solidificar em palavras e imagens noções de
si mesmo para que o próprio autor se consciencialize delas. É ele uma boa
pessoa? Ou uma má pessoa? No fundo, é o que sempre acontece nestes gestos:
revela ser uma pessoa.
Todavia, não deixa de ser algo desestruturada a
apresentação de todo estes materiais. A leitura acaba por ser por sacudidelas,
em cada nova parte surge de rompão, sem linhas subtis que as façam deslizar
umas para as outras, e se que haja movimentos de retorno temático que depois “puxassem”
esses episódios para uma maior coerência. É como se o autor trabalhasse antes
por (des)troços recuperados dessa memória alargada e fosse criando cada parte sem
um grande núcleo central agregador que encaixasse tudo num só corpo vivo. A leitura
é fragmentária, mas não há propriamente uma elegância na coordenação desses
fragmentos. Essa relativa fraqueza é agravada ainda pela abordagem do desenho,
que é ainda mais esquemático e sumário do que no caso anterior. Se os episódios
mais recuados são feitos com linhas de grande contraste, quase talhadas,
sólidas, há muitos outros momentos em que é claríssimo o aproveitamento de registos
fotográficos, possivelmente mesmo manipuladas pelo desenho, o que traz à tona
uma certa qualidade empedernida que destoa do resto, da urgência até, destas
recuperações.
A catarse, como se sabe, é obrigatória, impulsiva,
uma torrente, mas nem sempre significa uma satisfação partilhável com o leitor.
Gesto necessário, todavia, quando terminado, far-nos-á imaginar o que reserva o
futuro, não termine o mundo de Caeto.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do
volume em pdf, da qual foram retiradas as imagens com marca de água.
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