Este projecto a solo do argumentista da
famosa série Blacksad é, a um só tempo, talvez
estranhamente sem paradoxo, uma obra niilista e uma esperança
positiva. Apesar de podermos falar de um protagonista, o velho
Aniceto, de 83 anos, a verdade é que as acções estão concertadas
numa geometria de afectos muito particular, numa primeira escala
entre os compinchas de Aniceto, e em segundo lugar, em círculos
complexos de distância e proximidade, o seu filho e o seu neto, e a
mulher grávida deste. Com efeito, a uma primeira visão, a acção
dirá respeito às acções levadas a cabo por Aniceto, Longinos,
Urbano, Godofredo e Teodoro (nomes que numa pincelada quererão
revelar um outro momento da história de Espanha) e que os colocará
numa senda algo perigosa. Noutra escala, tratar-se-á das relações
que Aniceto estabelece com os seus familiares, alimentadas de
tensões, incompreensão, boa vontade, pequenos erros e todos aqueles
pequenos desastres que alimentam a vida de todas as famílias. Mas é
o coração de Aniceto que informa toda a trama, no fundo. (Mais)
Através de uma desculpa de cariz
policial, o livro cria uma espécie de retrato social da Madrid
contemporânea e tenta introduzir vários temas sem os tornar
centrais na sua intriga: o abandono social dos velhos, o esquecimento
do papel activo destes em nome de uma suposta “idade de ouro” que
deveriam agora aproveitar, mas cuja indolência é experienciada como
uma prisão, o trabalho de voluntariado, o contrabando e o pequeno
crime (os velhotes “divertem-se” a vender produtos roubados ou
piratados), e as pequenas redes de cumplicidade que se estabelecem
entre os vários agentes, enfim... uma panóplia que se pretende
arregimentar de forma a tornar “relevante” esta pesquisa.
Todavia, a sua secundarização em nome da trama central, a diluição
desta num tratamento algo débil e oblíquo não permitem uma
eficácia dessas mesmas dimensões.
A trama tem a ver com as mortes
sucessivas e violentas dos companheiros de Aniceto, adensando as
implicações com a vida do pequeno crime em que estão envolvidos.
Ao avançarmos na história, apercebemo-nos de que o que une esse
grupo de amigos é um segredo que partilham e provavelmente lhes dita
a fortuna. Todavia, quando finalmente esse segredo é revelado é, de
certa forma, anti-climático, e que apenas um entendimento delicodoce
e róseo do mundo poderia fingir não compreender, para depois o
exagerar como se pudesse ditar o tal pendor niilista que mencionámos
acima. Além do mais, as razões do “crime”, digamos assim,
mantêm-se opacas, pouco explicadas e até algo patéticas, debelando
então o edifício que nos parecia ter sido construído com algum
cuidado e atenção para com os pormenores psicológicos e sociais
das personagens.
Neste projecto, Canales procura
aproximar-se o mais possível de Will Eisner. São várias as
“assinaturas gráficas” que o autor espanhol parece mimar, ou
pelo menos seguir, do criador de The Spirit, numa fase mais
tardia, circa 1980. a narrativa é introduzida por uma cena
“anti-realista” que pode ser lida como um intróito alegórico.
As cenas de contraluz, nos escuros esgotos da cidade, ou sequências
sem matéria verbal parecem de facto serem extraídas do autor
norte-americano, muitas vezes reduzindo as figuras a talhadas de
pincel próximas da xilogravura, ou então com uma acumulação de
linhas excessivas que querem sublinhar o dramatismo e a moralidade da
cena. E até mesmo a quantidade de cenas em que temos uma perspectiva
“parada” sobre um mesmo espaço onde depois se desenrola a acção,
em transições momento-a-momento, são reminiscentes dessa
referência. Canales não mergulha de forma tão drástica nas poses
teatrais e melodramáticas de Eisner, o que abona a seu favor,
inflectindo uma certa tranquilidade nas personagens e os eventos que
protagonizam, mas não deixa ainda assim de haver um desejo de
manipulação a certos efeitos chocantes.
A forma como a “justiça” é levada
a cabo, em relação directa ao agente dos crimes, e depois a relação
que se estabelece entre o “segredo” e os restantes personagens e
o “final feliz”, tem um laivo que confirma todas estas leituras
algo debilitadoras, pois moralizantes. As personagens acabam por
ficar algo subsumidas ao programa e fito do livro, e não emergirem
de forma mais completa e livre. Algo não muito distante do que
ocorrera no último Blacksad, mas aqui mais vincado pela
forma.
Nota final: imagens colhidas na internet (imagem de Madrid montada por nós).
Nota final: imagens colhidas na internet (imagem de Madrid montada por nós).
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