21 de dezembro de 2016

Como viaja a água. Juan Díaz Canales (Arte de Autor)

Este projecto a solo do argumentista da famosa série Blacksad é, a um só tempo, talvez estranhamente sem paradoxo, uma obra niilista e uma esperança positiva. Apesar de podermos falar de um protagonista, o velho Aniceto, de 83 anos, a verdade é que as acções estão concertadas numa geometria de afectos muito particular, numa primeira escala entre os compinchas de Aniceto, e em segundo lugar, em círculos complexos de distância e proximidade, o seu filho e o seu neto, e a mulher grávida deste. Com efeito, a uma primeira visão, a acção dirá respeito às acções levadas a cabo por Aniceto, Longinos, Urbano, Godofredo e Teodoro (nomes que numa pincelada quererão revelar um outro momento da história de Espanha) e que os colocará numa senda algo perigosa. Noutra escala, tratar-se-á das relações que Aniceto estabelece com os seus familiares, alimentadas de tensões, incompreensão, boa vontade, pequenos erros e todos aqueles pequenos desastres que alimentam a vida de todas as famílias. Mas é o coração de Aniceto que informa toda a trama, no fundo. (Mais) 

Através de uma desculpa de cariz policial, o livro cria uma espécie de retrato social da Madrid contemporânea e tenta introduzir vários temas sem os tornar centrais na sua intriga: o abandono social dos velhos, o esquecimento do papel activo destes em nome de uma suposta “idade de ouro” que deveriam agora aproveitar, mas cuja indolência é experienciada como uma prisão, o trabalho de voluntariado, o contrabando e o pequeno crime (os velhotes “divertem-se” a vender produtos roubados ou piratados), e as pequenas redes de cumplicidade que se estabelecem entre os vários agentes, enfim... uma panóplia que se pretende arregimentar de forma a tornar “relevante” esta pesquisa. Todavia, a sua secundarização em nome da trama central, a diluição desta num tratamento algo débil e oblíquo não permitem uma eficácia dessas mesmas dimensões.

A trama tem a ver com as mortes sucessivas e violentas dos companheiros de Aniceto, adensando as implicações com a vida do pequeno crime em que estão envolvidos. Ao avançarmos na história, apercebemo-nos de que o que une esse grupo de amigos é um segredo que partilham e provavelmente lhes dita a fortuna. Todavia, quando finalmente esse segredo é revelado é, de certa forma, anti-climático, e que apenas um entendimento delicodoce e róseo do mundo poderia fingir não compreender, para depois o exagerar como se pudesse ditar o tal pendor niilista que mencionámos acima. Além do mais, as razões do “crime”, digamos assim, mantêm-se opacas, pouco explicadas e até algo patéticas, debelando então o edifício que nos parecia ter sido construído com algum cuidado e atenção para com os pormenores psicológicos e sociais das personagens.

Neste projecto, Canales procura aproximar-se o mais possível de Will Eisner. São várias as “assinaturas gráficas” que o autor espanhol parece mimar, ou pelo menos seguir, do criador de The Spirit, numa fase mais tardia, circa 1980. a narrativa é introduzida por uma cena “anti-realista” que pode ser lida como um intróito alegórico. As cenas de contraluz, nos escuros esgotos da cidade, ou sequências sem matéria verbal parecem de facto serem extraídas do autor norte-americano, muitas vezes reduzindo as figuras a talhadas de pincel próximas da xilogravura, ou então com uma acumulação de linhas excessivas que querem sublinhar o dramatismo e a moralidade da cena. E até mesmo a quantidade de cenas em que temos uma perspectiva “parada” sobre um mesmo espaço onde depois se desenrola a acção, em transições momento-a-momento, são reminiscentes dessa referência. Canales não mergulha de forma tão drástica nas poses teatrais e melodramáticas de Eisner, o que abona a seu favor, inflectindo uma certa tranquilidade nas personagens e os eventos que protagonizam, mas não deixa ainda assim de haver um desejo de manipulação a certos efeitos chocantes.


A forma como a “justiça” é levada a cabo, em relação directa ao agente dos crimes, e depois a relação que se estabelece entre o “segredo” e os restantes personagens e o “final feliz”, tem um laivo que confirma todas estas leituras algo debilitadoras, pois moralizantes. As personagens acabam por ficar algo subsumidas ao programa e fito do livro, e não emergirem de forma mais completa e livre. Algo não muito distante do que ocorrera no último Blacksad, mas aqui mais vincado pela forma.  
Nota final: imagens colhidas na internet (imagem de Madrid montada por nós).

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