Se tivéssemos acesso directo ao mundo
interior das nossas vidas, que escolhas faríamos? Se pudéssemos
manipular os sonhos, corrigi-los, que cursos estabeleceríamos? Se
pudéssemos apagar fantasmas, interrogar os mortos, recuperar
memórias, esclarecer dúvidas e esquecimentos, reforçar a
recordação de modo a que meras impressões fugazes ganhassem corpo
de certezas, a que tipo de aventuras nos entregaríamos nesses
territórios? Todas essas perguntas são puras especulações,
impossibilidades não apenas pela matéria da realidade, da
tangibilidade científica, mas até das próprias condições de
possibilidade de ser humano. Nada obsta, todavia, a que através da
fantasia não possamos explorar tais possibilidades. Cemitério
dos Sonhos é uma viagem a essa possibilidade. (Mais)
Este livro, idealizado, escrito e
editado por Miguel Peres, vem não apenas reforçar o desejo do autor
na sua afirmação autoral, como consolidar um projecto editorial que
se adivinha significativo para a variedade de agentes no panorama
nacional, e sobretudo no diálogo reforçado entre autores
portugueses e brasileiros. Tal como ocorreu em relação a A vida
oculta de Fernando Pessoa, de André Morgado (co-editor da Bicho
Carpinteiro com Peres), o autor português contou com a participação
artística de autores brasileiros para a “faixa das imagens”, em
si mesmo uma colaboração a celebrar.
Em contraste com Cinzas da Revolta,
uma prestação problemática em termos quer de representação
política quer de estruturação estética a vários níveis,
Cemitério dos Sonhos é uma obra mais coesa e dirigida. A
“simplicidade”, ou pelo menos “a unidade de acção”, está
garantida, pelo confronto do jovem Dre com o misterioso e conflituoso
mundo da sua existência interna. Técnico de testes de máquinas de
lavar roupa (num gesto ecoando talvez uma influência de José Carlos
Fernandes pelo absurdo, já que esta profissão existe mesmo
mas não opera desta forma), Dre encontra um objecto mágico, o qual,
através do seu avatar físico, uma rapariga com aparentes poderes
mágicos chamada Coral, lhe dará acesso ao mundo interior da sua
mente e à novela familiar… Nele, Dre confrontar-se-á com certas
heranças psicológicas da sua vida, em direcção a uma resolução
feliz.
Cemitério é, então, uma
confluência curiosa entre uma narrativa psicológica, que nasce de
um confronto interno ancorado em experiências quotidianas, mas
igualmente um livro de fantasia e de aventura, subsumido a uma
ligeireza que torna a sua leitura descomplicada e afecta aos
acontecimentos de cada passo da intriga. Esta não apresenta
propriamente enigmas irresolúveis, ou surpresas, e parece centrar-se
na possibilidade uma “cura” directa e franca do hipotético
trauma familiar que subjaz à história de Dre.
A intriga transforma alguma da
topicalidade instituída por Freud – o chamado “primeiro sistema
topográfico do inconsciente” – em territórios físicos
transitivos, o que leva o protagonista a, na sua senda pelo mundo
maravilhoso a que ganha acesso, atravessar várias etapas, fazendo
corresponder cada lugar a um desafio particular. Esses desafios
revelam-se, de um modo mais ou menos expectável, ser os seus medos,
traumas, conflitos internos, cada um “traduzido” em formas
igualmente claras para o leitor, uma vez que assumem formas já antes
apresentadas: o gato, os relatórios das máquinas de lavar, etc. Há
até mesmo uma personagem chamada “Jung”! Isto torna muitos dos
passos, obstáculos e mesmo territórios, algo simplificados,
naturalizados, reforçando a unilinearidade da narrativa. Os próprios
diálogos, desde as exposições e explicações de Coral, e as
legendas internas de Dre, são bastante explícitas em relação ao
significado das acções e etapas, por vezes mesmo de uma maneira que
derrotam a fluidez e naturalidade das acções.
Um dos problemas identificáveis na
estruturação da narrativa tem a ver com um certo grau de
indulgência em “fugas para a frente”. Isto é, a organização
dos eventos segue esquemas pré-determinados ou clássicos na
estruturação e relacionamento entre as forças actanciais
(protagonista, deuteragonista, antagonistas, etc.), mas existem uns
quantos “buracos” que revelam alguma fragilidade na respiração
da narrativa: os espaços e status do início não
correspondem aos do fim, deixando em aberto a relação de uma
comunidade de aliados com a outra (de onde surgem aqueles amigos no
final? Que ocorreu ao emprego?); em que medida a descoberta da
identidade secreta de Coral, no mundo psicológico de Dre,
influenciará a sua putativa relação com a personagem no “mundo
real”?; como será transformada a relação com a mãe? E, mais do
que tudo, se toda a aventura é estruturada no seio da sua vida
íntima, mental, como impactará a sua existência no mundo da
vigília?
No entanto, estas perguntas por
responder poderão ao mesmo tempo apontar para uma certa abertura ou
convite feito ao leitor, o qual, munido com a felicidade ou
compreensão conquistada por Dre, imaginará como o personagem as
procurará obviar.
Estando em crer que haverá um facto de
economia e celeridade no uso de vários autores, cada qual com a sua
assinatura gráfica precisa, queremos também acreditar que a gestão
de Miguel Peres fez confluir essa circunstância na tessitura
narrativa e representativa da sua história. Nesse sentido, uma
comparação relativamente produtiva poderia ser estipulada entre
Cemitério de Sonhos e The Imaginarium of Doctor Parnassus,
de Terry Gilliam, no seu emprego de vários actores para o papel
principal, no qual cada “etapa” leva a uma transformação física
de Parnassus. A viagem “interna”, as travessias entre domínios e
existências de Dre justificam assim, narrativamente, as
transformações operadas ao nível da representação e estilo. Não
são apenas as opções de figuração e de composição, bem
distintas, mas igualmente com variações internas aos
acontecimentos, que se contrastam entre si, mas os esquemas
cromáticos, o que leva a compreender que Rodrigo Martins dos Santos
surja como o autor ideal para o ancoramento na realidade e nos
primeiros abalos dela, Marília Feldhues a escolha adequada para a
tranquila e diáfana confrontação com o trauma, Rômulo de Oliveira
o instrumento para a representação do conflito mais decisivo, e
Cinthia Fuji para o clímax da dissolução e regresso à realidade
“curada”.
Sendo difícil subsumir estes artistas
a uma mesma escola ou atitude, diríamos porém estarmos perto de uma
constelação muito variada de autores que trabalham a figuração de
uma maneira ligeira, estilizada e livre, muito próxima de tendências
a que mercados como os das adaptações da animação norte-americana
ou de banda desenhada para “tweens” tem cumprido (veja-se os Boom
Studios!, a Archaia, a First Second, etc.).
Pequena fantasia da reconquista de um
rumo, este é um livro que se pretende para um público universal e
transversal, e diversificado.
Nota final: agradecimentos ao autor e
editor, pela oferta do livro. Imagens colhidas na internet.
5 comentários:
Olá Pedro,
Obrigado pela crítica construtiva, gostei muito de ler e perceber quais as falhas que tenho neste livro para crescer como autor nas próximas obras. Mesmo sem te der dito grande coisa, acertaste numa que nunca contei a ninguém: a profissão do Dre Amos é claramente inspirada nas profissões absurdas das personagens de José Carlos Fernandes, do qual sou um fã confesso.
Abraço
Olá, Miguel,
Não quero estar a colocar-me em nenhuma posição de arrogância a dizer o que deves ou não fazer, mas há um claríssimo desejo de pesquisa da escrita revelado nos teus projectos, e isso é salutar pela diversidade de vozes na banda desenhada portuguesa, ocupem elas os nichos que ocuparem. Fico contente de ter "acertado" na referência, mas com efeito, bastará ler com atenção... o que nem sempre se faz, talvez.
Abraços!
pedro
Olá Pedro,
Quando vi a capa do livro e depois li a sinopse, afastei uma possível leitura, pareceu-me, por associar a inspiração para a profissão do protagonista ao "underwater welder" do Jeff Lemire. Agora vejo que onde eu pensava estar muito provavelmente um porta-aviões só havia água :-). Como bem dizes, não basta ficarmos pelas primeiras impressões, são sempre precipitadas, é preciso, pelos vários sentidos de preciso, ler com atenção.
Aquele Abraço.
José
Olá, José.
Bom reler-te.
Essa associação não é nada mal pensada, sim, senhor. Ambos os protagonistas estão a viver num presente tenso porque não resolveram algo do passado associado ao(s) pai(s) e é através de uma experiência do fantástico que conseguem regressar a uma possível felicidade. Naturalmente, o livro do Lemire é maior, por isso tem outro tipo de ritmos e estrutura, mas este volume tira partido dos seus instrumentos.
E, claro, a questão não é ler um livro a partir de uma categoria pré-fabricada por outro, mas antes lê-lo pelo que ele próprio pretende criar ou impor.
Abraços,
pedro
Olá José Sá,
Na altura que estava a produzir o livro (ainda levou uns anitos) lembro-me de ver o "Underwater Welder" do Jeff Lemire numa livraria. Tinha descoberto à relativamente pouco tempo o escritor e quando vi, tanto a capa como a sinopse, recusei ler, precisamente com receio de copiar a ideia ou ficar influenciado pela história. Sou um grande fã do Jeff Lemire e gostava de escrever histórias como ele e portanto fico contente com esta "comparação". Na construção da capa, é bem possível que inconscientemente tenha ido buscar essa referência :) Seja como for, espero que leia a minha BD e que se divirta.
Enviar um comentário